Os republicanos não faziam a menor ideia do que era governar, criando todas as
condições para o aparecimento de um Messias.
As comemorações do primeiro centenário da República, em que
esta é apresentada como a salvação de um país envolto no mais negro
obscurantismo, criarão nos espíritos menos avisados a ideia de que I República
foi um mar de rosas.
Ora não pode haver ideia mais enganadora.
O regime republicano, em lugar de salvar Portugal,
mergulhou-o numa crise profundíssima, criando todas as condições para o
aparecimento de um Messias.
Os republicanos e os seus sucessores detestam Salazar. Ora
Salazar não surgiu do nada. A subida de Salazar ao poder e o seu longuíssimo
consulado explicam-se pelo estado desgraçado e caótico em que a I República
deixou o país.
Do ponto de vista económico, do ponto de vista financeiro, do
ponto de vista da ordem pública, do ponto de vista do prestígio do Estado, em
suma, de quase todos os pontos de vista, a República foi uma autêntica
calamidade.
Comecemos por um tema pouco abordado, até por ser incómodo: a
violência.
A partir de meados do século XIX, a violência parecia
definitivamente afastada da vida política portuguesa. Depois das desgraças da
guerra civil e dos tumultos militares da primeira metade do século, Portugal
parecia ter entrado na rota da acalmia e do progresso. Mas a República, de mãos
dadas com a Maçonaria e a Carbonária, trouxe a violência de volta. A coisa
começou em 1908, com o assassínio do Rei e do príncipe herdeiro. O 5 de Outubro
nem foi violento - e a Monarquia caiu quase sem sangue. Mas a partir de 1915 é
que foram elas. Nesse ano deu-se a revolta que depôs Pimenta de Castro e fez
mais de 100 mortos, depois foi o atentado contra o chefe do Governo João Chagas,
os assaltos aos estabelecimentos em Maio de 1917 que provocaram mais de 50
vítimas, a Leva da Morte, o assassínio de Sidónio Pais, a Noite Sangrenta com as
suas rondas da morte e o massacre de alguns fundadores da República desiludidos
com o regime como António Granjo, Machado Santos e Carlos da Maia - isto sem
contar com um sem-número de revoltas que provocaram mortos e feridos e em certos
períodos atingiram um ritmo semanal.
E, como ponto alto deste período marcado pela violência civil
e militar, temos a famosa carnificina da Flandres, que custou ao país 15 mil
mortos de jovens na flor da idade, mandados para a frente de combate pelo fervor
ideológico de Afonso Costa e seus companheiros.
Perante este quadro negro, o movimento militar de 28 de Maio
e a ocupação do poder pela tropa, e sobretudo a subida de Oliveira Salazar à
chefia do Governo, seis anos depois, foram recebidos com um suspiro geral de
alívio. Finalmente o país tinha paz!
A República fundou-se em duas ideias, ambas erradas: que as
causas do atraso de Portugal estavam, em primeiro lugar, na existência de uma
Monarquia, e em segundo lugar na influência da Igreja Católica.
Ora, que a existência de uma Monarquia não impedia o
progresso, provava-o o facto de países avançados como a Inglaterra, a Bélgica ou
a Holanda não precisarem de depor a Coroa para se desenvolverem.
Mas os republicanos só tinham olhos para França e acreditavam
piamente que Portugal era atrasado porque tinha um Rei - o qual protegia os
padres, que tinham uma influência nefasta sobre o povo.
Assim, a primeira coisa que os republicanos fizeram, depois
de deporem a Monarquia, foi perseguir a Igreja, confiscar-lhe os bens, acabar
com o ensino religioso e, de uma forma geral, afastar a Igreja Católica da área
do poder e influência.
Só que, depois de terem feito tudo isso, os republicanos
concluíram com angústia que o país não se desenvolvia, pelo contrário,
definhava. Ou seja, verificaram que o país não era atrasado por causa do Rei e
dos padres mas por outras razões.
A República fez com que Portugal se tornasse mais pobre
porque o clima de instabilidade política e de violência assustou os industriais
e os banqueiros, travando os investimentos e dizimando os poucos embriões de um
Portugal moderno que existiam no princípio do século XX.
Na segunda metade do século anterior o país tinha conhecido
efectivamente um certo desenvolvimento, tendo surgido um grupo de industriais e
banqueiros com espírito capitalista - Alfredo da Silva, Burnay, Sotto Mayor,
etc. - que prenunciava a entrada de Portugal nos tempos modernos. Ora estes
embriões de um país desenvolvido foram dizimados no tempo da I República,
levando o país a andar para trás.
Perante um quadro tão negro, Salazar, quando subiu ao poder,
tinha tudo para vencer. Bastava-lhe fazer exactamente o contrário do que fizera
a República, ou seja: restabelecer a ordem pública e a autoridade do Governo,
equilibrar o Orçamento, normalizar as relações com a Igreja. Salazar só não
restaurou a Monarquia porque, embora sendo monárquico, viu que isso não era
decisivo e ia criar uma polémica desnecessária.
Além disso, Salazar percebeu que, à falta de uma classe
empresarial, tinha de concentrar no Estado o desenvolvimento do país.
Finalmente, substituiu o internacionalismo republicano, assente em ideias
importadas de fora, por um nacionalismo intransigente.
Com estas ideias e uma grande eficácia na acção, Oliveira
Salazar teve logo de início um apoio popular enorme. O que se percebe. No
próprio ano em que assumiu a pasta das Finanças (1928) equilibrou as contas
públicas e recusou um empréstimo da Sociedade das Nações, considerando as
condições humilhantes para Portugal. Por isso foi designado o mago das Finanças.
E rapidamente restabeleceu a ordem pública, tornando Portugal
de facto um país de brandos costumes . É certo que o fez à custa de uma Polícia
política execrável, da proibição dos partidos, da censura à imprensa e do mais
que sabemos. Mas, para termos uma ideia comparativa, durante o período que durou
o Estado Novo foram mortos ou morreram na prisão 50 militantes do PCP (o partido
mais fustigado pela PIDE). Isto, note-se, em 48 anos. Ora este número de mortos
era frequentemente alcançado numa só noite, nas constantes revoltas que marcaram
o tempo da I República.
O prestígio de Salazar ainda aumentaria quando, no princípio
dos anos 40, evitou a entrada de Portugal na II Grande Guerra. Aí, tornou-se um
Santo. E, mais uma vez, fez o contrário do que tinham feito os republicanos:
onde estes tinham mandado os soldados para a Flandres, mal equipados e pior
armados, para servirem de carne para canhão, ele seguiu o caminho oposto - e não
só optou pela neutralidade como convenceu o vizinho Franco a fazer o mesmo. E em
plena guerra na Europa ainda arranjou forças para organizar em Lisboa a grande
Exposição do Mundo Português (1940).
Da fugaz I República ficaram pois, quase exclusivamente, as
boas intenções. A intenção de educar o povo, de proteger o povo, de contar com o
povo. Mas esse mesmo povo abandonou a República no primeiro momento, talvez
pensando que de boas intenções está o Inferno cheio.
Isto também explica que a República tenha durado uns escassos
16 anos, enquanto o período seguinte (1926-74, dominado por Salazar entre 1928 e
1968) durou uns longos 48 anos, ou seja, três vezes mais.
Tudo somado, pode dizer-se que a I República não deixou
saudades. E se hoje se comemora com tanto fervor é mais por razões ideológicas -
e porque no poder está o partido que herdou a tradição republicana, o Partido
Socialista - do que pelas virtudes que mostrou.
(Fonte: 5 de Outubro, 2010, Semanário SOL, José António Saraiva)
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