Assim, Monarquia e República
são hoje regimes que pouco se diferenciam, quer no piano nacional quer
internacional. Aproximou-as a democracia que ambos os regimes se
orgulham de praticar. Quanto a isso, não e possível voltar atrás,
espero…
Os Estados organizam-se de diferentes
formas, desde a mais remota antiguidade: impérios; monarquias, absolutas
e constitucionais; repúblicas, oligárquicas e democráticas, de acordo
com o modo como são organizados – e, depois, eleitos -os seus órgãos do
poder; as ditaduras, militares e civis, que podem ser autoritárias e
totalitárias, conforme o controlo do poder sobre os indivíduos e menos
ou mais absoluto.
O século xix, na sequência da
Independência Americana e da Revolução Francesa, ambas no fim do século
xvm, foi um tempo de liberalismo politico (não confundir com o
liberalismo económico, cujo sentido é diferente). O século xx, bem mais
violento e perturbado do que o anterior, foi o Século das Ditaduras,
militares e civis, autoritárias e totalitárias, como Hannah Arendt
definiu os regimes fascista, nazi e comunista. Foi ainda o tempo das
grandes guerras, das guerras civis, das guerras e dos conflitos
regionais e das revoluções. Finalmente, no final do século xx (1988-91)
deu-se a implosão do comunismo soviético e o triunfo – parcial da
democracia.
As ditaduras comunistas implodiram, sem
efusão de sangue, ao contrario das ditaduras nazi-fascistas, que foram
destruídas pelo exterior e em função da guerra que desencadearam. De
facto, em virtude da derrota, sem condições, da Alemanha, na Segunda
Guerra Mundial, e do colapso da Itália de Mussolini que a antecedeu, os
Aliados, a Inglaterra, a América, a França Livre e a Rússia ganharam a
guerra e estabeleceram a paz, em nome da democracia. For pouco
tempo. Veio, pouco tempo depois, a divisão do Mundo em dois blocos
ideológicos rivais, a seguir a Guerra Fria e as independências dos
países libertos do colonialismo.
Dilucidemos todos estes conceitos e
eventos, que são com efeito muito variáveis e complexas, para os tornar,
tanto quanto possível, transparentes.
Na antiguidade, tivemos impérios,
grandes impérios, em que toda a construção do Estado girava em torno da
pessoa do imperador: o poder militar, religiosa e politico, por ordem de
importância. O imperador concentrava na sua pessoa, divinizada, como se
fosse um Deus, todo o poder que exercia, através de um conjunto de
colaboradores-funcionários que Ihe obedeciam cegamente. Foi o que
aconteceu com os antigos impérios chinês, persa, egípcio, japonês e
outros, como o Império Romano. A Primeira Guerra Mundial pos fim, como
disse, a quatro impérios: o russo, o alemão, o austro-hungaro e o turco
ou otomano.
As monarquias europeias foram, inicialmente, de caracter absolute,
nacional e de direito divino indiscutíveis, como no tempo de Luis XIV de
Franca, o «Rei Sol», exemplo máximo de rei absolute – L’Etat c’est moi – mas
que, apesar disso, esteve longe de ser um imperador déspota ao estilo
oriental. Os seus antecessores e sucessores tiveram primeiros-ministros e
ministros que detinham de facto os principais poderes do Estado, ao
serviço do rei. Foi o período do chamado despotismo iluminado, com
figuras como Richelieu e Mazarin, em Franc.a, Caspar de Guzman, duque
de Olivares, no tempo de Filipe IV de Espanha, ou o Marques de Pombal,
em Portugal, no reinado do rei D. Jose, no século xvm. Eles mandavam em
nome do rei, que concentrava na sua figura todo o poder simbólico,
exercido de facto pelos seus validos. Curiosamente, Salazar, um ditador
civil do século xx, quando Ihe perguntaram como gostaria mais de exercer
o poder, respondeu (cito de cor): «como o primeiro-ministro de um
monarca absoluto», isto e, um déspota esclarecido…
Como disse, no capitulo anterior, o parlamentarismo nasceu no século
xvn – ou mesmo antes – em Inglaterra. Surgiu para regular as disputas
entre os senhores feudais e o rei e, depois, com o fortalecimento da
Câmara dos Comuns (House of Commons), dos representantes da burguesia,
que sucessivamente foi ganhando poderes para escolher o
primeiro-ministro – e o governo – e para os derrubar se per-dessem a sua
confiança. Dai que o parlamentarismo inglês tivesse sido sempre, ate
hoje, bicamaral com a Câmara dos Lordes e a dos Comuns, também
designadas por Câmara Alta e Câmara Baixa. Com o evoluir dos anos, a
Câmara dos Comuns tornou-se o centre do poder politico inglês. Porque,
segundo a máxima ainda hoje em use: «o rei [ou a rainha, como e hoje]
reina mas não governa».
Na América, com a independência, a Constituição optou por um Estado
republicano e deu ao Presidente – eleito directamente pelo povo – o
poder executivo. Por isso, a América não é uma democracia parlamentar,
mas antes uma Republica presidencialista. Apesar de o poder do Congresso
(Senado e Câmara dos Representantes) ser hoje bastante grande.
O parlamentarismo difundiu-se por toda a Europa, sob a influencia da
Revolução Francesa e do expansionismo napoleónico, durante o seculo xix,
que vindo a ser um império, completamente autocrático, difundiu por
toda a Europa, incluindo Portugal, as ideias da Revoluçãoo Francesa.
Curiosamente, depois de Waterloo (derrota de Napoleão), o movimento
constitucionalista (dito liberal) e o parlamentarismo progrediram a par.
As teorias de que a soberania reside no Povo – ou na Nação – e não no
rei, do «contrato social» de Rousseau e da separação dos poderes do
Estado expressa por Montesquieu – legislativo, executivo e judicial –
impregnaram o movimento constitucionalista, procurando dotar cada Estado
nacional de uma Constituição escrita, onde os poderes do Estado fossem
bem definidos e partilhados, para dar espaço aos direitos individuais
dos cidadãos, retirando sucessivamente os poderes ao rei, que passou a
ser um mero símbolo, representando, de algum modo, a unidade da Nação,
mas com poderes cada vez mais reduzidos.
A Constituição americana de 1787 proclamou a Republica, entregando os poderes, respectivamente: o legislativo) ao
Congresso (composto por duas Câmaras, a dos Representantes e o Senado),
dado a Constituição americana ter definido a América como um estado
bicamaral e federal – o Senado, cujos senadores, em numero igual por
cada estado, isto e, dois; e os deputados eleitos representando dois
parti-dos (sistema bipartidario), Republicanos e Democratas, que perdura
ate hoje, segundo a dimensão da população de cada estado; o poder executivo pertence
ao Presidente da República, eleito directamente pelo povo americano,
que detém todo o poder executivo, exercendo-o através dos seus
secretaries que, em conjunto, constituem o Governo; finalmente o poder judicial e totalmente
independente e ter um poder enorme, nos termos da Constituição. E o que
se chama um regime republicano, federal e presidencialista – modelo que
se mantém ate hoje e que inspirou quase todas as Repúblicas
latino-americanas.
As Constitutivos portuguesas foram, historicamente, muito diferentes
umas das outras: a primeira, de 1822, tendo como fonte a Constituição de
Cádis de 1812, e uma Constituição liberal típica, obrigando o rei, que
era D. João VI, e estava no Brasil, a regressar ao reino e a jurar a
Constituição. O que ele fez, embora perdesse muito do seu poder,
teoricamente, visto que era ate então absoluto e deixou de o ser. Veio,
depois da sua morte, a Carta Constitucional, outorgada por D. Pedro IV
(então D. Pedro I, imperador do Brasil e seu sucessor, como filho
primogénito), em 1836, portanto, sem depender de nenhuma Assembleia
Constituinte e em que os poderes reais eram limitados, mas alguns ainda
importantes.
A Carta Constitucional provocou uma divisão na família liberal entre vintistas (partidários da Constituição de 1822) e cartistas (mais
moderadores e partidários da Carta). Essa divisão foi abafada pelo
interregno absolutista de D. Miguel (1828-1834), visto que a guerra
civil passou a ser entre migue-listas (absolutistas) e liberais
(vintistas e cartistas). A chamada Revolução de Setembro de 1836 repos a
Constituição de 1822, ate que a Assembleia Constituinte fizesse uma
nova Constituição em 1838 (mais próxima da Carta Constitucional), visto
que conferia ao rei o chamado poder moderador (segundo a teoria de
Benjamin Constant). Mas só durou ate 1842, voltando a vigorar a Carta
Constitucional, que alias foi muito duradoura, dadas as emendas que
sofreu em três actos adicionais a Carta, de 1852,1885 e 1896. Durou,
assim, ate a proclamação da Republica, em 5 de Outubro de 191O. A
Republica organizou eleições constituintes e elaborou uma nova
Constituição: a de 1911. Uma Constituição progressista, para o tempo,
totalmente parlamentarista e bicamaral. O Presidente da Republica passa a
ser eleito pelas duas Câmaras (deputados e Senado), reunidas em
conjunto (Congresso) e, uma vez que era eleito por ambas, fica
dependente do Parlamento, com poderes meramente representativos e
simbólicos. O executivo – o governo – era também exclusivamente
dependente do voto do Parlamento, onde residia de facto o centre do
poder politico.
Com a Revolução de 28 de Maio de 1826, que derrubou a I Republica
(1910-26), foi suspensa a Constituição e passou-se a governar em
ditadura, chamada militar, na primeira fase, e national, na
segunda. Foi o regime do arbítrio, escolhido o Presidente da Republica
pelos militares, que governavam e detinham todos os poderes do Estado.
Quando Salazar, ditador das Finanças,
desde 1928, foi designado primeiro-ministro pelo general Óscar Carmona,
tentou mascarar o regime ditatorial. Para tanto, mandou fazer a
Constituição de 1933, que foi aprovada por um plebiscite singular, em
que as abstenc.6es contavam como votos a favor. Essa pseudo-Constituição
durou ate a Revoluc.ao dos Cravos de 25 de Abril de 1974. Em Abril de
1975 – exacta-mente um ano apos a Revoluc.ao – foram realizadas as
pri-meiras elei<joes livres, apos 48 anos de ditadura. A camara
eleita, com poderes constituintes, elaborou, legitimamente, uma nova
Constituic.ao, em 2 de Abril de 1976, que iniciou a II Repiiblica. E uma
Constituic.ao pluralista e pluripartida-ria, avangada no piano social,
que garante aos Portugueses o exercicio dos direitos humanos e, aos
trabalhadores, impor-tantes direitos sociais, de tipo
semipresidencialista e laica. E uma Constituigao que teveja emendas
(revisoes constitu-cionais, alias previstas no texto constitucional) e
que vigora ate hoje, a meu ver, muito satisfatoriamente.
Semipresidencialista e laica, porque?
Porque o Presidente e eleito directamente pelo povo, mas o
primeiro–ministro, indicado pelo partido com maior representa§ao no
Parlamento (unicamaral, isto e, a Assembleia da Republica), depende,
para se manter no poder, do voto maioritário par-lamentar. No entanto, a
maioria pode ser dissolvida, excepcionalmente, pelo Presidente da
Republica – e o governo cair – se o Presidente entender que «esta em
causa o regular funcionamento das instituições democráticas»,
seguindo–se a dissolução da Assembleia da Republica e a marcação de
novas eleições. Como disse uma vez, «o Presidente ter a bomba atómica
mas não dispõe das armas convencionais». Ter, contudo, o chamado «poder
moderador», a que tenho também chamado, desde que exerci essas funções,
«a Magistratura de Influencia».
Laico? Porque a separação do Estado e
das Igrejas, insita na Constituição, e clara – apesar da Concordata,
revista -, porque assegura a liberdade de todas as religiões, nas
condições de igualdade possível, respeita e não discrimina as minorias
religiosas, assegurando a todas uma total liberdade religiosa, na base
da lei do mesmo nome.
Com meio século de distancia, a I e a II
Repúblicas estão numa certa linha de continuidade histórica, apesar de
diferenças profundas e de um muito distinto contexto internacional. No
principio do século XX, o republicanismo tornou-se, em Portugal, uma
corrente avassaladora, que viria a destruir a monarquia, que – diga-se –
apesar do assim chamado «dita-dor» João Franco, em parte responsável
pelo regicídio, era uma Monarquia Constitucional. O fosso
politico-ideológico entre republicanos e monárquicos era profundo. Hoje,
não e assim. Reconheço-o como republicano confesso, filho de uma
família profundamente republicana. Porque as monarquias existentes na
Europa, hoje, são todas tão, ou mais, democráticas do que algumas
republicas. São monarquias constitucionais em que o rei só tem poderes
simbólicos e as aristocracias desapareceram ou estão em vias disso, em
função da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
Apesar disso, por convicção e por
experiência, sou republicano e não vejo que haja condições para que
Portugal deixe de ser uma Republica, e gostaria que aprofundasse a sua
jovem democracia e que reforçasse nela a sua componente social e
ambiental.
Mas isso e outra historia.
Assim, Monarquia e Republica
são hoje regimes que pouco se diferenciam, quer no piano nacional quer
internacional. Aproximou-as a democracia que ambos os regimes se
orgulham de praticar. Quanto a isso, não é possível voltar atrás,
espero…
Fonte : Livro Mário Soares – Elogio da Política, Sextante Editora
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