Será o Homem naturalmente bom ou mau?
Pelo menos desde Rousseau(1) que esta dicotomia divide, no essencial, a
Esquerda e a Direita e, em boa parte, está na base das respectivas
ideologias. Sobretudo no Ocidente, pode até dizer-se que vingou
finalmente a tese da Esquerda.
Na verdade, qualquer ideia de um Homem
naturalmente mau horroriza hoje não só o pensamento oficial
politicamente correcto como a generalidade da opinião pública
massificada. Mesmo os católicos, face aos princípios da pedagogia
reinante, começam a entender mal que uma criança possa sequer nascer
maculada pelo pecado original…
De resto, e apesar do aguerrido folclore
partidário, a inevitável miscigenação entre as propostas
político-ideológicas da Esquerda e da Direita conduziu, sobretudo a
partir dos anos 50 e definitivamente após a queda do muro de Berlim, a
um tão vasto consenso democrático que hoje torna praticamente impossível
ao comum dos ocidentais descortinar qualquer substancial e fundada
diferença ideológica entre os partidos concorrentes ao poder. Com a
eventual excepção das franjas ultraminoritárias que nas pontas do
espectro partidário teimam ainda na dura ortodoxia do passado.
O resultado imediato desta simbiose foi a
ideia de que terminara o tempo das ideologias(2) e que começara uma nova
era de opulência e bem-estar à sombra maternal do Estado-providência(3).
Era agora o reinado dos tecnocratas e dos yuppies, despidos de
princípios e fins mas abastados de meios, tão incapazes de uma ideia
nova como exímios no partir e repartir(4) do bolo amorfo e aparentemente
inesgotável da sociedade de consumo.
Só que a ideologia, entendida como um
conjunto integrado de ideias que fundamentam e propõem um modelo de
sociedade(5), radica na própria natureza dos homens e fundamenta mesmo o
conceito de contrato social que está ou devia estar na base de qualquer
comunidade.
Por isso as ideologias não morrem. O que acontece,
justamente, é que do confronto entre ideologias dominantes resulta uma
nova ideologia consensual, que momentaneamente aparenta o fim do
confronto, mas que depressa gerará novas ideologias que a contradigam. E
assim sucessivamente.
Pode então dizer-se que está cumprida a
dialéctica hegeliana(6): à tese da Direita opôs-se a antítese da Esquerda,
conseguindo-se já hoje a respectiva síntese. O que significa que chegou
a altura de esta síntese se assumir como tese e enfrentar o
contraditório de uma nova antítese, que não tem nada a ver com as velhas
Direita e Esquerda e, pelo contrário, se opõe globalmente ao compósito
resultante de ambas.
Com o dobrar do milénio, chegou a hora
da nova ideologia da Modernidade. E a velha Monarquia – despida dos
arrebiques e adaptações às exigências de idos tempos históricos e assim
retornada à sua pureza inicial -, agiganta-se hoje como natural
corolário da ideologia que, quanto a nós, dominará este século XXI em
que entramos.
Mas quais são, afinal, as bases dessa
nova ideologia? Desde logo, conforme mais detalhadamente tive já a
oportunidade de explanar noutro lugar(7), o princípio da diversidade. O
qual nos permite, por exemplo, responder de uma forma totalmente nova à
tal questão inicial sobre a bondade ou a maldade natural do Homem, que
tão centralmente dividiu as ideologias do passado.
Para começar, não existe o Homem, essa
abstracção cinzenta, mas sim homens e comunidades de homens concretos. E
o que é Bem para uns pode ser Mal para outros. Por isso também não
existem o Bem e Mal absolutos e universais. Tudo é relativo à natureza
do homem concreto e ao projecto da comunidade orgânica em que se
integra. A velha questão que tanto dividiu a Direita e a Esquerda
torna-se assim completamente irrelevante para a ideologia da
Modernidade.
O que sobretudo importará à nova
ideologia é a possibilidade de os homens se agruparem em comunidades
autênticas e por isso diversas, construídas de baixo para cima, cada uma
segundo a natureza e o projecto de vida comum àqueles que livremente a
integram. Finalmente libertas das peias de um Estado tutelar,
omnipresente e massificador, cada uma dessas comunidades orgânicas,
entendidas como o conjunto daqueles que a integraram, integram e hão-de
integrar, traçará assim o seu próprio destino, sem precisar de o
consensualizar ou impor àqueles que com ele substancialmente divergem.
Radicalmente oposta à actual tentativa,
unicista e massificadora, de criar de cima para baixo uma pretensa
Humanidade standarizada, produzida em série e dócil ao dogmatismo
oficial, a nova ideologia aposta na devolução da soberania ao homem
concreto e ao seu grupo natural – sem o qual de resto o indivíduo não
pode verdadeiramente existir -, permitindo assim o desenvolvimento de
uma multiplicidade de experiências existenciais e, através delas, o
apuramento orgânico de comunidades verdadeiramente diferenciadas e, na
medida em que são a autêntica expressão do querer em comum, finalmente
felizes.
Quebradas as barreiras artificiais do
Estado jacobino, a nova ideologia propõe também o fim dos seus
instrumentos políticos, nomeadamente as mega-democracias
representativas, cujo princípio básico conduz, em alternativa, ao
consenso desvirtuador e inconsequente ou ao domínio de uma maioria sobre
uma minoria, absolutamente ilegítimo quando se trata de dirimir
questões centrais na opção de vida de cada uma das partes.
Defensora da verdadeira democracia
participativa, só possível em comunidades orgânicas onde todo o grupo
está de acordo naquilo que é essencial, a nova ideologia, justamente
porque permite o florescimento das mais díspares organizações
comunitárias, exige apenas, para além do óbvio respeito pelo ambiente,
recursos e natureza do planeta comum, o estrito cumprimento de dois
grandes princípios universais: 1) a liberdade de cada indivíduo
integrar, desde que por ela aceite, a comunidade da sua eleição, e dela
se desvincular sempre que quiser; 2) a rigorosa auto-sustentação de cada
comunidade e o seu absoluto respeito pelo espaço, opções e liberdades
de cada uma das restantes comunidades.
Longe da actual prática política da
sedução demagógica, a nova ideologia não se propõe impor a ninguém um
determinado modo de vida. Pelo contrário, permite que cada comunidade se
estruture organicamente à justa medida da natureza e vontade dos seus
membros, desde que não interfira minimamente com a liberdade de as
outras comunidades fazerem o mesmo. A não ser, é claro, pelo exemplo de
sua própria opção de vida.
E, num futuro assim marcado pelo
inevitável confronto entre esta nova ideologia e a actual prática dos
nacionalismos estatais, das mega-democracias massificadores, da cultura
do espectáculo de pacotilha e da economia da sociedade de consumo, é
óbvio o papel que a Monarquia, desde já, pode e deve desempenhar.
A estratégia
Na verdade, pode dizer-se que, do ponto
de vista da análise lógica, os novos tempos calçarão à Monarquia como
uma luva. Mas não é certo que, na prática, isso venha a acontecer,
principalmente se nada fizermos por isso. O passado está repleto de
exemplos em que as coisas se passaram exactamente ao invés daquilo que
devia e era lógico que acontecesse… Há, portanto, que analisar bem a
realidade e definir com lucidez e coragem uma estratégia que possa
irmanar a comunidade monárquica num verdadeiro projecto de futuro,
aproveitando da melhor forma o sentido da História.
Desde logo, importa entender o fenómeno
republicano e situá-lo no seu tempo histórico. Depois, há que
escalpelizar o movimento monárquico desde 1910, detectar-lhe os erros e
anacronismos mas, sobretudo, apontar-lhe as virtualidades, de forma a
que nos seja possível a todos perceber o que serve e o que não serve a
uma verdadeira estratégia monárquica para o século XXI. Aprendendo,
porventura, com a forma como a própria Monarquia caiu.
A verdade, é que à República de 1910
bastou uma ideia velha e a sensação inefável de que chegara o tempo
dela. Servida, na ponta do iceberg, por um punhado de homens onde se
misturava o burguês intelectual, o operário raivoso e até o nobre
desenraizado. Todos bem citadinos e ingénuos, mas voluntariosos e
decididamente irmanados na inabalável convicção de que o futuro lhes
pertencia. Por detrás deles, a corroer há muito o stablishment, lá
estava bem infiltrada a diligente Maçonaria, avançando sabiamente as
suas peças dissimuladas e preparando a jogada fatal do xeque-mate ao
Rei.
A Monarquia caiu em Lisboa como se
estivesse podre. Há 86 anos, uma mão cheia de republicanos decididos,
primeiro na capital e depois no Porto, actuou de golpe perante a minada
passividade geral, quer da própria enlutada Família Real quer da mole
imensa do Povo português, tão monárquico então como republicano hoje.
Com a honrosa excepção do bravo major Henrique de Paiva Couceiro, que
soube bater-se na Rotunda, quase sozinho, contra o golpe republicano.
«Revolto-me contra a República para salvar Portugal», disse ele, alto e
bom som, pondo o dedo na ferida: «O Povo tem o direito de escolher». Mas
a República nascente, suspeitando a verdade, temeu ir a votos. Só
restando a Paiva Couceiro, e aos honrados portugueses que o seguiram, a
restauração unilateral da Monarquia do Norte, desde logo também ela
minada por dentro e desautorizada pelo próprio Rei exilado D. Manuel II.
Longo e penoso foi depois o calvário dos
resistentes monárquicos. Mesmo face ao descalabro da 1ª República, mais
depressa se uniram na solução política do 28 de Maio do que na solução
institucional da restauração da Monarquia. Paulatinamente, a Causa Real
deixou de bater-se no campo concreto e prático da acção política para
passar e debater-se no espaço rarefeito e diletante da filosofia
política e das convicções íntimas. O monárquico típico começou a
parecer-se demasiado com aqueles poetas de fim-de-semana e das horas
vagas, de pantufas, depois do expediente…
Mesmo homens tão notáveis como António
Sardinha e outros, não vieram depois senão acentuar as características
quase religiosas do ideal monárquico, procurando arregimentar pela razão
e pela fé, mas nunca pela acção concreta. E com o tempo, ao contrário
do que aconteceu por exemplo em Espanha, em Portugal interiorizou-se
definitivamente a ideia, mesmo entre os mais indefectíveis monárquicos,
de que a Monarquia não era uma questão actual mas antes uma consciência,
um alter-ego que pode pairar bem acima e independente das opções e
comprometimentos políticos de cada um.
Espécie de fado sebastianista, que
haveria de voltar de motu próprio numa densa manhã de nevoeiro, a
Monarquia tornou-se para os monárquicos numa referência que remete muito
mais para o místico do que para o político. Mesmo depois do 25 de
Abril, portanto em democracia, a acção política concreta, como bem
comprovam os resultados eleitorais do PPM, nunca conseguiu unir sequer a
maioria dos monárquicos confessos, quanto mais os indecisos ou
potenciais apoiantes. Se exceptuarmos a Monarquia do Norte de Paiva
Couceiro, quando a República levava já nove dolorosos anos de idade,
toda a estratégia monárquica se tem centrado praticamente na divulgação,
ora intelectualizada ora sentimental, do seu evangelho.
Mesmo sem querer fazer juízos de valor
sobre esta estratégia, uma coisa é certa: não conduziu nem se vê que vá
conduzir minimamente à obtenção daquele que devia ser o seu objectivo,
isto é, a restauração da Monarquia. Mas existiria outra estratégia
possível? No passado, em boa verdade tinha sido possível aos monárquicos
portugueses actuar como a própria República tinha actuado. Foi esta,
aliás, a estratégia seguida em Espanha, ou seja: criar uma espécie de
maçonaria monárquica e minar por dentro a República, colocando
monárquicos nos lugares-chave da política, da cultura, da economia e dos
media, de forma a dar, no momento certo, o golpe final e sem
resistências numa República intestinamente apodrecida e desacreditada.
Entre nós, apesar de alguns se terem
deixado enganar pelo canto da sereia salazarista, que vagamente lhes
acenou com esta hipótese, a verdade é que nunca em Portugal os
monárquicos se empenharam verdadeiramente nesta estratégia e sempre
puseram os interesses imediatos das pequenas panaceias políticas à
frente da verdadeira solução institucional. E hoje, em plena democracia,
dificilmente esta estratégia, só por si, poderia conduzir a resultados
efectivos e duradouros.
Chegamos, pois, a um momento crucial
para a Causa Real. Partindo da evidência de que nem a estratégia da
divulgação nem a estratégia maçónica poderão hoje, só por si, conduzir à
restauração da Monarquia, põe-se inevitavelmente a qualquer monárquico
minimamente realista a questão de saber o que fazer. E a opção, por
muitas voltas que se lhe dê, não pode fugir desta coisa simples: ou
continua tudo como até aqui, e nos limitamos a passar, muito
discretamente, o facho sebastianista a cada vez mais reduzidas novas
gerações de monárquicos, ou decidimos que chegou o momento de definir
uma estratégia completamente nova e mais conforme à nova ideologia da
Modernidade. E agir em conformidade.
Em suma, há que decidir se vamos ou não lançar os alicerces que nos permitam sagrar um Rei dos Portugueses para o novo milénio.
O sagrado
Não é fácil, contudo, mais do que gizar
uma nova estratégia no espaço lógico de um raciocínio, fazê-la entender e
empenhar nela todos aqueles que são indispensáveis à sua implementação.
É o grande drama de todos os estrategas ou ideólogos que não tenham a
seu favor a autoridade e o carisma suficientes para contrabalançar os
anticorpos que qualquer ideia nova sempre cria, especialmente em quem a
não teve… Tentemos, por isso, ir por partes e por exclusão de partes,
assentando metodicamente os tijolos da evidência numa estrutura de
alicerces segura o suficiente para daí nos podermos lançar na construção
de um edifício audacioso, onde certamente o voluntarismo terá de
constituir o golpe de asa que nos há-de permitir erguer algo mais do que
o barracão do costume.
A primeira evidência, para além do
fracasso ou anacronismo das estratégias até agora tentadas, ficou já de
alguma forma aflorada: a característica muito mais religiosa do que
política da ideia de Monarquia em Portugal. Religiosa será porventura
uma palavra imperfeita para aqui aplicar, principalmente para quem a
identificar apenas com a sua Fé católica. Não é esse, porém, o sentido
que aqui importa sublinhar, mas muito mais a acepção sociológica que
identifica o fenómeno religioso com tudo o que implica um comportamento
individual fundado na fé de uma filosofia de vida e morte.
Na verdade, o fenómeno político
centra-se ou devia centrar-se na questão de saber o que é melhor para a
sociedade. Portanto, na gestão mais ou menos democrática da
conflitualidade social, quer no interior dos espaços limitados chamados
Estados quer na relação entre eles. No actual estádio de evolução, o
valor político das coisas mede-se, no terreno, pela adesão da parte mais
numerosa (em democracia) ou da parte mais forte (em ditadura). E as
mega-democracias representativas, na verdade, ainda não sabem mais do
que impor às minorias a vontade absolutista das maiorias. Pelo que a
Monarquia só tem politicamente valor se 51% dos portugueses não só
considerarem que a chefia do Estado está melhor entregue a uma Família
Real, como considerarem ainda que essa melhoria é suficientemente grande
para contrariar a inércia e justificar uma mudança de regime.
Mas será apenas esta questão técnica que
move os monárquicos? A Monarquia, para nós, não será bem mais do que
esta pequena contabilidade da eficácia da chefia do Estado? Em boa
verdade, não há toda uma mundividência, uma filosofia de vida, uma
mística, uma fé telúrica que inevitavelmente associamos à Monarquia? Não
tem o Rei, para nós, algo de sagrado? Por outras palavras: não se
assemelha o nosso monarquismo muito mais a uma fé, que temos às vezes
não se sabe bem porquê, do que a uma opção política a que chegamos
racionalmente pela fria análise das suas propostas institucionais? E não
é esta fé inicial que depois nos leva, na tentativa de convencer os
outros, a racionalizar e contabilizar as vantagens funcionais da
Monarquia?
Os monárquicos foram, de alguma forma,
habituados a esconder esta sua fé, este sentido sagrado e telúrico da
Monarquia, e a mascará-la com complicados e infindáveis raciocínios de
conveniência política, para consumo externo. Mas será que esta
estratégia funcionou? A prática não o tem demonstrado… De resto, porque
razão os outros haveriam de chegar racional e politicamente à Monarquia,
se não foi assim que inicialmente a maioria de nós lá chegou? É que,
verdadeiramente, não é monárquico quem quer; mas apenas quem é capaz de
sentir esse ímpar chamamento.
Não será, pois, preferível despirmos a
roupagem racionalista e assumirmos a Monarquia como quem assume uma
religião, onde não se contabilizam as pequenas e grandes vantagens
políticas, mas apenas a fé indizível de cada um e a alegria da comunhão
com os outros crentes?
Num mundo mediatizado, onde a própria
política se faz cada vez mais da sedução e do espectáculo e onde os
raciocínios consequentes vão caindo em crescente desuso; num mundo onde
as pessoas se sentem perdidas e desenraizadas no caos da massificação
desumana e muitas caiem na tentação de se entregarem de alma e coração
às mais inqualificáveis seitas; num mundo destes, não deve a Monarquia
desvendar a sua natureza sagrada, telúrica, emocional e mundividente?
Como noutro lado(8) já tive a oportunidade
de explicar mais detalhadamente, o futuro, das duas uma: ou não valerá a
pena vivê-lo ou terá de ser forjado, de baixo para cima, pelas
verdadeiras comunidades e à sua exacta medida. O abcesso jacobino do
Estado terá de ser extirpado para que o conceito de Povo possa ganhar de
novo a sua verdadeira dimensão. O nosso Rei desse futuro não poderá ser
nunca de Portugal mas sim dos Portugueses. Porque hoje os espaços
geográficos já pouco valem se neles e fora deles não vingar a identidade
de um Povo. O tempo das fronteiras europeias já passou. E mesmo para
quem o lamente, é estultice ficar agora a chorar sobre o leite
derramado. Cumpre-nos é aproveitar da melhor forma esse novo espaço de
livre circulação, para nele nos afirmarmos como Povo. Cientes de que só
um Rei, como um pai, pode unir e ser referência para todos aqueles que
não estão dispostos a perder o essencial, ou seja, a sua qualidade de
Portugueses, cultural e geneticamente claramente identificados.
A Europa Unida – estão disso bem cientes
tanto os seus teóricos como os políticos – terá de ser unida
essencialmente face à vastidão incontável dos bárbaros que a ameaçam do
exterior. Mas internamente, será tanto mais forte e viável quanto mais
assentar na livre e pacífica convivência das identidades dos
povos-irmãos que a compõem. É a diversidade destes povos que torna rica e
frutuosa a sua unidade.
Pelo que, a actual tendência universal
para a massificação deve na Europa, sob pena do seu estiolamento, ser
desde já invertida através dum acentuar da identidade diversa dos seus
povos e duma crescente autonomia e liberdade das verdadeiras
comunidades, onde vá sendo possível restaurar a democracia participativa
e extirpar os vícios fatais das mega-democracias representativas. E é
neste processo vital que a Monarquia ganha um novo alento, porque só ela
justamente remete para o sagrado e o orgânico que é a identidade e a
cultura de cada Povo.
Mas tudo isto, podendo ser explicado,
detalhado, somado e diminuído, tem sobretudo de ser sentido. Daí, desde
logo, que a nova estratégia monárquica tenha de ganhar autenticidade,
associando-lhe ao tradicional debate das suas vantagens racionalizadas a
força de um movimento de adesão intuitiva e emocional, a que
normalmente se chega sem muitas explicações mas com muita fé.
Sou porque sou e porque quero ser! – eis
uma adesão que pela sua natureza não pode sofrer contestação e que não
raro vale mais do que mil explicações.
Tudo se conjuga, neste limiar do
terceiro milénio, para que as coisas se venham a passar no futuro de
forma substancialmente diferente do que se passaram neste desgraçado
século XX. Se nada for feito para inverter a actual tendência,
aproxima-se a passos largos o inevitável ponto de rotura social,
ecológica, política e económica, para já não falar psicológica. A
massificação torna-se dia-a-dia mais incontrolável; os recursos, alguns
tão essenciais como a água e o ar, cada vez mais escassos; o consumismo
desenfreado, progressivamente mais estupidificante e dissolvente dos
mais elementares valores morais e éticos; a política, cada vez mais
corrupta e estúpida; o Estado, cada vez mais falido e omnipresente;
enfim, a sociedade prossegue uma fuga para a frente que apenas a pode
levar ao abismo.
Salva-se, neste caos alienado, sem
princípios nem fins, as espantosas potencialidades do digital em
particular e das novas tecnologias em geral, que poderão mesmo desvendar
a curto prazo o segredo da fusão a frio e, com ela, esse futuro
absolutamente revolucionário da energia virtualmente inesgotável, limpa e
de graça. Apesar das leis da entropia. Mas tudo isto são instrumentos.
Se abrem novas e impensáveis possibilidades, não dispensam o essencial.
E o essencial não é esse Homem abstracto
que ninguém conhece, mas sim os homens concretos, cujos interesses,
sonhos e opções diversas são cada vez mais sacrificados no altar daquela
abstracção. O essencial não são os Estados jacobinos e as suas razões
que o coração desconhece, mas sim as comunidades concretas, verdadeiros
grupos afins que traçam para si o seu próprio futuro, nessa diversidade
orgânica que é fonte de toda a vida e só na qual o indivíduo
verdadeiramente ganha sentido.
A Comunidade
Quer isto dizer que não basta aos
monárquicos defender as suas ideias e, mais do que isso, assumir
explícita e publicamente a sua fé. É preciso também que se constituam
numa verdadeira comunidade, capaz de se apresentar na sociedade como um
grupo diverso em muita coisa mas unido na certeza de que a sua
representação enquanto Povo se consubstancia na Instituição Real. Uma
representação que não é política, não é administrativa, não é religiosa,
mas que remete para esse indizível sagrado e telúrico que é a sua
identidade genético-cultural.
Trata-se de uma ideia claramente
inovadora. Por isso carece de uma análise profunda e um debate alargado,
na certeza de que os contornos exactos dessa comunidade monárquica
terão que ser definidos de baixo para cima, à medida dos próprios
membros que a formam. Mas é possível, desde já, balizar algumas
premissas e alinhar meia dúzia de ideias centrais que necessariamente
terão de suportar o projecto.
Desde logo, assentar que a
institucionalização desta comunidade monárquica se fundamenta
sócio-politicamente na convicção, já aqui salientada e mais
detalhadamente desenvolvida noutro lugar(9) de que a sociedade moderna só
se poderá redimir, e reencontrar os caminhos de futuro, se souber
aprofundar a diversidade e autonomia das múltiplas comunidades
autênticas que a constituem. É urgente reconstruir, de baixo para cima,
livremente, comunidades viáveis que reassumam o direito de traçar o seu
próprio destino colectivo, desde que este não colida com o direito de
outros fazerem o mesmo. A constituição desta comunidade monárquica é,
portanto, um direito elementar de soberania que assiste ao Povo que a
quiser integrar. Desde que, evidentemente, não a imponha unilateralmente
àqueles que com ela não se identificam. Que é, justamente, aquilo que
hoje nos faz a República…
O que nos remete para outra ideia
igualmente inovadora: a possibilidade política e legal desta comunidade
monárquica existir a par do Estado republicano, sem com ele
necessariamente conflituar. Na verdade, se bem que em limite esta
comunidade monárquica possa no futuro vir a ser integrada por todos os
que se reclamem portugueses – o que em última análise acabaria com a
República -, não é este o seu objectivo imediato.
Tal como a Igreja Católica já hoje sabe
que não precisa, para existir e cumprir a sua missão, de acabar com as
outras religiões ou com os agnósticos e ateus, também esta comunidade
monárquica não necessita, para existir e cumprir a sua missão, de acabar
com o Estado republicano. Porque o palpável e legal das funções de uma e
outro não são rigorosamente da mesma natureza.
Afinal, o que é que objectiva e
formalmente caracteriza a República? Não são certamente os órgãos
político-administrativos, como o Governo, o Parlamento ou as Autarquias,
que se podem manter exactamente iguais em Monarquia. A grande diferença
está, portanto, no órgão Presidente da República, cujos poderes
limitadíssimos se exercem apenas ao nível da chefia formal do Estado e
da consequente burocracia institucional. Em suma, o Presidente da
República é apenas o Chefe do Estado, essa coisa abstracta e sem futuro;
enquanto o que nós queremos é um Rei dos Portugueses, esta coisa bem
concreta a que justamente queremos dar futuro.
Um Rei, como se sabe, não governa. E se
num passado próximo foi também Chefe do Estado (e daí, provavelmente, a
queda de algumas Monarquias) não foi como tal que a Instituição Real
nasceu nem é como tal que a queremos para o futuro. A Família Real
consubstancia e é a representação personalizada dessa outra família mais
vasta que é o seu Povo. Por isso não pode ser eleita, como não
escolhemos o nosso pai ou a nossa família. A natureza representativa da
Instituição Real, além de inalienável, remete para o Povo e não para o
Estado. E essa coisa absurda, hoje muito propalada mas de clara
nostalgia monárquica, de um presidente de todos os portugueses, não só é
falsa e impossível como não tem qualquer fundamento político,
constitucional ou sociológico.
Para os membros desta comunidade
monárquica, portanto, não deve importar demasiado que o Estado seja
republicano se nele não se revirem minimamente. Devem, pois, encarar o
chefe desse Estado como mais um funcionário da Res Publica, como por
exemplo um primeiro-ministro. O Rei, para eles, será consequentemente o
seu representante pessoal no que concerne à sua identidade
genético-cultural como portugueses. Trata-se desse algo telúrico e
sagrado que felizmente escapa às malhas republicanas. O Rei reinará
nessa comunidade porque ela própria o quer e o aceita. Sem qualquer
coacção. Afinal, a mais perfeita forma de liderança.
Esta Monarquia nasce assim por livre
adesão das pessoas que se querem congregar nesta comunidade e com ela
constituir um corpo que se assume como tal e que pode hoje coexistir
pacificamente com o Estado republicano. Nada há de mais democrático, de
mais legal e, até, de mais conforme com a nova ideologia da Modernidade.
E para que serve exactamente esta
comunidade? Desde logo, para congregar o Povo monárquico e, no que a ele
diz respeito, permitir a restauração da Monarquia. O que será, só por
si, um passo de gigante no movimento monárquico. Na verdade, para essa
comunidade, se bem que despida dos arrebiques tardios do Estado, a
Monarquia seria restaurada. Pelo menos no que a eles diz respeito, o Rei
reinaria. E, o que não é de menor importância, o Povo monárquico
estaria organizado num corpo orgânico, capaz de tomar para si as
decisões que bem entendesse, cujo cumprimento pelo grupo seria
livremente aceite por todos e por cada um.
Quanto ao mais, uma comunidade como esta
poderia servir para tudo o que a própria comunidade quisesse fazer;
desde que, obviamente, estivesse de acordo com a sua natureza e não
infringisse as leis do Estado. De resto, a sua força política, social e
cultural seria potencialmente enorme. Dependendo da sua vontade, esta
comunidade monárquica pode, desde logo, dar aos outros o exemplo da sua
portugalidade e a si própria a alegria de uma fé partilhada. Pode
seguir, por adesão livre, princípios e práticas comuns de vida. Pode
mesmo criar escolas e universidades. Pode defender, recuperar e divulgar
o nosso património. Enfim, pode fazer um sem número de coisas simples
ou importantes, pequenas ou grandes, desde que o faça em liberdade e sem
contender com a liberdade dos outros. O que, só por si, já seria um
magnífico exemplo…
É claro, contudo, que uma comunidade
como esta não pode nem convém que nasça de absoluta geração espontânea. O
seu funcionamento deve obedecer a regras claras e transparentes, da
mais autêntica democraticidade, que actualizem e renovem as melhores
tradições da Instituição Real e da praxis e idiossincrasia genuinamente
portuguesas. A própria função do Rei tem de ser devidamente enquadrada e
impõe-se a criação de mecanismos que a todo o momento garantam a
representação orgânica dos membros da comunidade.
As Cortes
As Cortes, na melhor tradição
monárquica, seriam porventura um dos mais decisivos instrumentos, não só
para a criação desta comunidade e para a aclamação do Rei, mas também
para o seu subsequente funcionamento como grupo. O próprio conceito
orgânico das Cortes, mais ligado aos homens e às coisas concretas do que
às habituais abstracções massificantes e estupidificadas, revela-se
precioso como imagem de marca de uma comunidade monárquica. E
extremamente útil aos objectivos de democracia participada em que
assenta a verdadeira Instituição Real.
As Cortes prendem-se, portanto, com uma
das questões que nesta fase mais importa debater, ou seja: como lançar
publicamente o projecto da constituição de uma comunidade monárquica e
como, no concreto, levar a cabo a sua implementação? Pondo de lado, de
momento, outras considerações sobre a estratégia mediática a seguir,
penso que as Cortes se apresentam de facto como a mais adequada
resposta, ajustando-se até surpreendentemente aos objectivos propostos.
É óbvio que a comunidade monárquica que
se pretende criar só terá sentido se for exemplarmente participada e se
resultar da vontade empenhada dos seus membros. O que implica não só um
processo eleitoral, em plena liberdade, como a manutenção de uma
estrutura representativa que a todo o momento possa expressar a vontade
das pessoas. E isto, procurando não cair nos vícios desvirtuadores da
democracia representativa, periódica e de sufrágio universal. Ora, para
tanto, nada melhor que o processo orgânico das Cortes, em que tomarão
assento representantes das actividades e dos interesses das pessoas, bem
como das áreas espaciais onde vivem, num sistema rigorosamente
uninominal.
Quanto ao processo e às regras que
nortearão o lançamento das Cortes, defendo que devem ser o mais simples,
o mais livre e o mais desregulamentado possível. Na certeza de que as
próprias Cortes, uma vez reunidas, poderão depois legislar sobre a
matéria.
Em boa verdade, quer o processo de
constituição das Cortes quer o normal funcionamento da comunidade
monárquica vão exigir muita inteligência, muito tempo e muito trabalho, o
que dificilmente se compadece com o habitual amadorismo que reina nas
actividades monárquicas. Seria, pois, importante considerar a hipótese
de profissionalizar uma estrutura mínima, cuja dimensão exacta
dependeria da conjugação das necessidades com os meios disponíveis.
Escusado será referir, de resto, o
impacto mediático que um projecto deste tipo há-de suscitar É portanto
fundamental estabelecer uma estratégia rigorosa no que respeita à
mensagem que convém transmitir na sua fase de lançamento. Seria assim de
toda a conveniência que, para o efeito, fosse criado um jornal, de
preferência um semanário, cuja qualidade garantisse o duplo objectivo de
meio de comunicação e de auto-sustentação económica.
Aliás, a questão da viabilidade
económica do projecto é fundamental e vai requerer a elaboração de um
aturado estudo sobre o assunto. Desde já, contudo, é possível salientar a
importância económica de que se poderá revestir a existência de uma
comunidade monárquica organizada, que à partida julgo poder integrar
mais de um milhão de pessoas, já que todas as sondagem referem a
existência em Portugal de pelo menos 10% de monárquicos.
Considerada como mercado potencial, esta
comunidade tem um enorme valor, que com ciência e arte se pode
rentabilizar de muitas formas, e que à partida já constitui um crédito
considerável. Muito embora isso necessariamente dependa de uma decisão a
tomar pelas futuras Cortes, é também possível desde já perspectivar o
poder económico dessa comunidade monárquica e pensar na possibilidade de
um imposto (quota), livremente aceite, correspondente por exemplo a 1%
do rendimento anual de cada membro. E só com isto estaríamos porventura a
falar de um orçamento anual superior a dois milhões de contos. O que
nos permite pensar este projecto com uma dimensão insuspeitada.
Existe ainda a enorme potencialidade
económica de certos círculos da emigração, especialmente fora da Europa.
O conceito de Rei dos Portugueses, claramente desvinculado do Estado,
diz muito à emigração. Deve-se, a propósito, ter o máximo cuidado com a
questão do ex-Império. É um assunto delicado, principalmente em meios
mais passadistas. Contudo, a verdade é que, em rigor e na melhor
tradição monárquica, uma coisa são Portugal e os portugueses e outra bem
diferente os territórios e os povos que integravam o Império colonial. A
ideia ridícula de uma nação pluricontinental e pluriracial é uma
invenção republicana, mais concretamente salazarista, sem qualquer
fundamento no ideário monárquico e que entra em clara contradição com a
singela beleza e total modernidade do conceito de Rei dos Portugueses.
Enfim, quanto a uma resposta cabal à
questão de saber para que, concretamente, vão servir as Cortes, e por
extensão a comunidade monárquica, obviamente não me é possível dá-la
aqui. Pela simples razão de que ambas servirão exactamente para aquilo
que as pessoas que as consubstanciam quiserem, souberem e puderem fazer.
A ideia das Cortes convoca justamente a saudável diversidade do povo
monárquico. E fá-lo em nome daquele denominador comum que afinal o
congrega numa comunidade. Tão simples como isto.
Resulta assim evidente a imperiosa
necessidade de separarmos o essencial ou estrutural do acessório ou
conjuntural. Para, por um lado, não nos perdermos a discutir bagatelas
ou modismos e, por outro, cimentarmos num referencial de futuro tudo
aquilo que verdadeiramente importa à Monarquia e a distingue como um
valor tendencialmente perene.
A verdade é que este trabalho está
basicamente por fazer. E nunca, estou convencido, poderá ser devidamente
feito apenas com o contributo inestimável desse punhado de
incondicionais que vêm carregando com dedicação e esforço o pendão real.
Para tanto, parece-me indispensável
convocar todo o povo monárquico, em toda a sua luminosa diversidade,
para que, em conjunto com o Rei que o une e simboliza, possa globalmente
dar resposta cabal à magna questão da essencialidade monárquica. E,
mais do que isso, vivê-la em conjunto, organicamente.
Aqui importa, portanto, assentar
sobretudo no valor instrumental, estruturante e simbólico das Cortes. E
agir em conformidade, ou seja, procurarmos no fundo da nossa alma
monárquica o alento e a coragem necessários para levar avante, com
inteligência e rigor, um projecto de tamanha dimensão.
Se este deve ser para os monárquicos um
tempo de ideias, é preciso que seja também um tempo de acção conjugada,
diligente e continuada. Os rompantes de entusiasmos, por deliciosos que
sejam, são como água derramada: logo se somem nos interstícios das
circunstâncias adversas… Falta-lhes justamente um recipiente que os
receba, os integre e verdadeiramente os potencie num projecto. E as
Cortes podem e devem ser também, exactamente, esse recipiente que nos
falta.
O Rei
O casamento de S.A.R. o duque de
Bragança, herdeiro dos Reis portugueses, veio na verdade viabilizar todo
este projecto, doutra forma claramente coxo e inconsistente. Este feliz
acontecimento, ao mesmo tempo que arredava todas as enormes
preocupações com a questão da sucessão dinástica que consumiam os
monárquicos, veio tornar completa a figura do Rei, que só
verdadeiramente se dimensiona quando conjugada com a da Família Real.
Por outro lado, ao escolher para mulher
uma portuguesa, S.A.R. o duque de Bragança soube integrar-se da melhor
maneira no novo papel que hoje, principalmente na Europa Comunitária,
cabe às Famílias Reais. Na verdade, este novo conceito de Rei exige uma
grande identidade com o seu Povo, inclusive na questão central da carga
genética. Já lá vão os tempos em que os Reis europeus formavam uma
espécie de família única, uma casta à parte, geneticamente muito
distanciados dos respectivos povos. O que, estou em crer, terá mesmo
levado alguns deles ao exílio…
Mas uma coisa é ser herdeiro de Reis ou
pretendente ao Trono, e outra bem diferente e muito mais difícil e
exigente é ser Rei dos Portugueses. E é este grande passo que devemos
pedir a S.A.R. o duque de Bragança que faça o sacrifício de dar, a bem
do seu Povo. Claramente conscientes de que, para tanto, também muitos de
nós nos temos de sacrificar, ajudando a criar as condições
institucionais e operacionais para que isso seja possível.
Desde logo, acompanhando, enquadrando e
sustentando a sua actividade institucional, cuja importância e
requisitos formais exigem não só uma outra atitude pública, como uma
maior articulação com os órgãos que constitucionalmente devem acompanhar
e fiscalizar a acção do Rei.
Reinar é, de facto, uma missão difícil,
por vezes mesmo ingrata, que exige sempre uma total entrega pessoal à
coisa pública. Alguns maus exemplos recentes de Famílias Reais
estrangeiras advêm justamente de uma má compreensão das obrigações
reais, nomeadamente daquela, talvez a mais difícil, que conduz à
anulação do ser indivíduo face às exigências do ser símbolo, afinal
sagrado. Obrigação que se estende a toda a Família Real, essa verdadeira
matriz institucional. De resto, é precisamente por se tratar de uma
Família talhada ao longo dos séculos para esta missão que ela é Real.
Mas este passo, por difícil que seja,
impõe-se hoje mais do que nunca. Modernamente, o Povo Português precisa
muito mais de um Rei do que de um Reino; mesmo que esse Rei o não seja
para todos os portugueses. Até porque, enquanto se mantiver vivo e
actuante, bastará esse núcleo duro para garantir às gerações vindouras
que se não perderá, derramado na massificação europeia e ocidental, essa
estranha e única natureza de ser Português de raça.
E o seu exemplo, a sua conduta, a sua
autenticidade, enfim, a sua alegria de ser em comum, certamente
granjeará a essa comunidade monárquica muitos mais adeptos do que até
aqui o conseguiram mil e um discursos.
Por outro lado – é preciso não o
esquecer -, nenhum Povo verdadeiramente sobrevive sem elites. E se as
elites, à imagem do Rei, têm por missão servir e abrir caminho aos
outros, é preciso que sejam formadas neste quadro de referências.
E talvez a missão mais sublime a que
essa comunidade monárquica esteja destinada seja justamente a de educar e
preparar os Portugueses de amanhã. Sem nacionalismos bacocos e
ultrapassados (fundamentalmente de raiz republicana), mas intransigentes
na nossa autenticidade e no nosso direito à diferença.
Os monárquicos devem sobretudo valorizar
o essencial daquilo que os une. E dar, ao muito que naturalmente os
separa, o valor fundamental da diversidade. Transformando mesmo este
respeito pelo diverso numa das grandes bandeiras da Monarquia.
Valorizar o denominador comum torna-se
assim, mais do que uma simples medida de bom senso, uma verdadeira
estratégia de actuação monárquica. No exacto contraponto a esse
arreigado amor pela liberdade de todos e de cada um que, apesar das
aleivosias do historicismo jacobino e marxista, ao longo dos séculos fez
da Monarquia o mais humano dos regimes políticos.
Conforme já escrevi noutro lugar(10),
S.A.R. o Sr. D. Duarte, ao contrário do que alguns supunham, tem
conseguido desenvolver muito bem uma das mais importantes vertentes que
considero ser do papel de um Rei moderno: o contacto emocional com o
Povo e a capacidade não só de espelhar a forma de ser e estar desse
Povo, mas sobretudo de representar perante ele o intangível e sagrado da
sua própria identidade.
Dito doutra forma, o Rei tem de ser pai e
tem de ser símbolo. E S.A.R. conseguiu sê-lo, granjeando um
impressionante capital de simpatia e empatia com a generalidade do povo
português. Partindo de uma posição claramente desvantajosa, soube entrar
no coração das pessoas e aí permanecer como uma referência
simultaneamente familiar e telúrica. Como é habitual em pessoas que no
fundo nasceram para reinar, pode dizer-se que a intuição de S.A.R.
funcionou aqui perfeitamente.
Mas o Rei tem também tem de ser elo.
Sobre a indispensável diversidade democrática, o Rei tem de conseguir
ser aquele mínimo denominador comum que congrega o grupo e justamente
cimenta organicamente a comunidade como tal.
E aqui, como a História demonstra, não
basta a intuição real. O objectivo é difícil de atingir e requer não só
trabalho e estudo permanentes mas também aturadas decisões políticas, na
mais nobre acepção da palavra. Ou seja: aqui o Rei não pode dispensar a
colaboração institucionalizada dos monárquicos mais capazes; aqueles
que, como diria Camões, por feitos e obras valorosas se vão da lei da
morte libertando.
A política
Se é verdade que a instituição
monárquica está, por definição, acima das lutas político-partidárias,
disso não devemos inferir que é possível preparar a Restauração sem um
aturado trabalho político e, sobretudo, sem uma visão política integrada
e coerente sobre as grandes questões que hoje se põem, de uma forma
prospectiva, à sociedade portuguesa em particular e à sociedade europeia
em geral.
Há, pois, que fazer política; não só
sobre o conjunto de questões que directamente dizem respeito à
Monarquia, mas também sobre todas aquelas outras questões que possam
contrariar ou favorecer o nosso ideal. Ou seja: há que estar atento e
actualizado e ser actuante.
Desde logo, há que inverter a ideia
generalizada de que a Monarquia é um atavismo anacrónico que, por razões
próximas do folclore, alguns países se dão ao luxo de manter. Pelo
contrário, é necessário que as pessoas passem a associar a Monarquia a
um movimento de vanguarda, pleno de modernidade, que nada tem de
passadismo mas que, quando muito, é demasiado avançado para os mais
reaccionários.
Conforme já referi noutro lugar(11), por
muito convencional que a data possa ser, o 3º milénio transporta consigo
algo de mítico e renovador que de algum modo predispõe as pessoas para a
mudança e até lhes cria o sentimento dessa necessidade. Mas a mudança
monárquica?
Se alguma coisa caracteriza o final do
séc. XX, são seguramente três coisas: as novas tecnologias, sobretudo da
comunicação; a concentração das superestruturas
político-administrativas e económicas em grandes núcleos sinergéticos
transnacionais; e a massificação social, que tende a transformar-nos a
todos num mercado consumista tipificado, mais ou menos alienado e
sobretudo movido pelos sentimentos.
Trata-se, contudo, de uma trilogia
instável, na medida em que um dos seus vectores, as novas tecnologias da
comunicação, se permitem, também combatem quer a concentração quer a
massificação. Na verdade, essas novas tecnologias funcionam aqui como um
factor autocorrectivo, afinal indispensável à própria sobrevivência do
modelo, numa dialéctica permanente, eu diria pós-hegeliana.
Assim sendo, é-nos possível antever as
linhas mestras que determinarão o futuro e, por isso, intervir no seu
desenvolvimento com a eficácia resultante da capacidade que tivermos, a
todo o momento, de aproveitar a vaga da História em vez de remar contra a
maré.
Não cabe aqui uma análise minimamente
detalhada desta problemática. Mas, justamente, a falta de espaço-tempo é
uma das características da comunicação moderna, imposta não tanto pelos
meios mas sobretudo pelos receptores, verdadeiramente bombardeados com
um volume de informação muito superior àquele que conseguem absorver.
Tendo tudo em consideração, a estratégia
monárquica tem de pautar-se pela coerência interna e fácil
compreensão/adesão sentimental do modelo proposto, pela reacção à
concentração/massificação e pela aposta na
diversificação/subsidiariedade. Aproveitando as potencialidades das
novas tecnologias da comunicação, deve afinar o seu discurso geral ao
perfil-tipo do receptor moderno e o discurso específico aos “nichos”
naturalmente predispostos a uma mudança que combata ou contrabalance os
efeitos nocivos da concentração/massifcação, especialmente sentidos ao
nível da liberdade/diversidade dos grupos. Em suma: a Monarquia tem
sobretudo de ser libertadora.
Por outro lado, mais do que teorizar
políticas, os monárquicos devem acima de tudo mostrar ao país que são
capazes de implementar na prática as suas ideias. E daí, desde logo, a
necessidade de avançar com a institucionalização da comunidade
monárquica.
Mas não só. Os monárquicos têm, antes do
mais, de se demarcar claramente da figura do cortesão e assegurar que
no interior do próprio movimento, enquanto tal, vigoram os
princípios-base de diversidade e da democracia orgânica e participada.
Ou seja: as grandes directrizes políticas do movimento têm não só de
garantir como fomentar, a todo o momento e em todas as circunstâncias, a
diversidade de opiniões, a participação nas decisões e a
representatividade devidamente legitimada.
E desta constatação resulta de imediato a
noção de que, mesmo antes da eventual institucionalização das Cortes,
os monárquicos devem criar um Conselho que os represente e que, por isso
mesmo, se venha até a pronunciar sobre a oportunidade da própria
institucionalização das Cortes.
Este Conselho da Comunidade Monárquica –
com este ou outro nome – deveria assim constituir-se como uma primeira
plataforma de representação dos monárquicos portugueses,
independentemente de serem ou não militantes nas Reais Associações.
Conforme já noutro local referi(12), há
entre 10 e 15 por cento de portugueses que se declaram monárquicos às
várias sondagens e inquéritos que têm abordado esta questão. Ou seja,
extrapolando estes números: cerca de um milhão e meio de pessoas, mesmo
sem o benefício de uma campanha eleitoral, dão livremente o seu
testemunho de amor ao Rei. Contudo, se olharmos para a exígua militância
monárquica, não podemos deixar de nos perguntar: mas afinal onde está
essa gente toda?
Ninguém os viu, mesmo nos momentos mais
altos da vida monárquica recente, como o casamento de S.A.R. o Senhor D.
Duarte ou o baptizado de S.A.R. o Senhor D. Afonso. Dir-me-ão que estes
eventos procuraram sobretudo cativar a República e não, como a meu ver
deveriam ter feito, reunir em festa o povo monárquico. É verdade; mas
também não sei se teria sido possível convocar, por exemplo no Santuário
de Fátima, um milhão de monárquicos para o casamento do duque ou o
baptizado do príncipe. Embora, creio, tivesse sido importante tentá-lo.
Como quer que seja, parece evidente que
existem muito mais monárquicos do que aqueles poucos que costumam
aparecer nas coisas da militância. O que não deixa de ser normal, se
considerarmos que a militância dos grandes partidos não chega a 1% dos
respectivos votos. O erro estará, justamente, em querer transformar esse
milhão de monárquicos em militantes.
O que, além do mais, significa, como
ficou dito, a necessidade de uma nova estratégia nacional que dê corpo e
alma a essa comunidade monárquica em potência, que até agora tem estado
desagregada e que das estruturas monárquicas, em boa verdade, não tem
recebido mais do que críticas pela sua alegada falta de empenhamento. A
Real do Porto, contra ventos e marés, tem procurado lançar este debate
e, o que é mais, empenhar todos os responsáveis, a nível nacional, num
projecto consequente, articulado e, sobretudo, democrática e
descentralizadamente orgânico. Infelizmente, pelo menos até agora, sem o
necessário sucesso.
Justamente porque, na minha opinião,
esses responsáveis ainda não perceberam que a esmagadora maioria desse
milhão e meio de monárquicos não quer ser militante de coisa nenhuma.
Basicamente, um pouco até por definição, são pessoas inteligentes,
práticas, necessariamente empenhadas nas suas vidas e nas suas
carreiras, que vêem a Monarquia não como um serviço ao Rei mas
justamente o contrário: um regime onde o Rei serve o seu Povo.
Ora, esta é precisamente a essência da
Monarquia. Donde, o mais importante não é pedir militância a esse milhão
e meio de monárquicos. Ao invés, é formar com eles essa tal verdadeira
comunidade, onde o grande militante seja, por definição, o Rei.
Dito de outra forma: S.A.R. o Senhor D.
Duarte, certamente consciente de que chegou o momento de dar um passo em
frente, em direcção à Restauração, não deixará de abraçar o esforço
conjugado dos monárquicos na criação de uma estrutura, esse tal Conselho
da Comunidade Monárquica, que terá o duplo e fundamental papel de
representar o Povo monárquico e assistir o Rei na construção e
desenvolvimento do projecto comum da Restauração.
Pode assim dizer-se que este Conselho
teria como principal missão a representação, digamos política, da
Comunidade Monárquica, que desta forma ultrapassava finalmente o seu
actual estatuto virtual. E daqui lhe nasce outro objectivo de igual
importância: assistir S.A.R. em todas as matérias de relevância política
e dar-lhe, a todo o momento, a mais exacta medida do sentir diverso e
plural da comunidade que politicamente representa.
Donde resulta, desde logo, uma exigência
na sua génese: a sua emanência de baixo para cima, consubstanciada num
processo eleitoral alargado a todos os que, assumindo-se monárquicos,
por um lado nele quiserem votar e, por outro, a ele quiserem concorrer.
Mas, sejamos práticos. Conforme já tive a
oportunidade de salientar(13), a recente experiência referendária veio
levantar uma questão que de sobremaneira importará aos monárquicos.
Tendo sobretudo em conta que a maioria defende a via do referendo como
única forma de restaurar a Monarquia em Portugal. Centrando mesmo toda a
estratégia de acção monárquica neste objectivo e na exigência da
necessária alteração da Constituição da República.
Julgo, contudo, que os resultados dos
dois referendos até agora realizados vierem demonstrar a impossibilidade
prática de algum dia se restaurar a Monarquia desta forma. Desde logo,
pela falta de participação: em nenhum dos dois referendos votaram mais
de 50% dos eleitores, o que retira aos resultados qualquer valor
vinculativo. E o valor político de uma maioria simples não seria nunca
suficiente, até do ponto de vista jurídico, para que a República se
auto-extinguisse.
Mas, mesmo uma maioria simples parece-me
que está absolutamente fora do alcance da Monarquia. Como se verificou
no referendo sobre a regionalização, não é possível colocar à consulta
popular assuntos tão complexos. A maioria da população pura e
simplesmente não tem nem a capacidade nem os conhecimentos para poder
verdadeiramente opinar sobre questões que ultrapassam em muito a sua
experiência.
E o resultado esteve à vista: por um
lado, a feira da demagogia torpe e desinformativa; por outro, o medo da
mudança e a colagem ao sentido de voto imposto pela disciplina
partidária. E todos sabemos como é fácil, aos republicanos em geral e
aos interesses partidários em particular, armadilhar qualquer discurso
sério sobre as vantagens da Monarquia. Como foi fácil fazê-lo contra as
regiões, ao ponto de muitos monárquicos, por exemplo, nem chegarem a
equacionar o facto de a grandeza da nossa Monarquia pré-Mouzinho da
Silveira muito ter ficado a dever, justamente, à sua organização
administrativa regionalizada em cinco províncias (Entre-Douro-e-Minho,
Trás-os-Montes, Beira, Estremadura e Alentejo) e um reino (Algarve).
Em suma, é bom que os monárquicos
atentem nesta experiência e procurem rapidamente elaborar e sistematizar
estratégias alternativas à miragem do referendo. Porque as há, e a RAP
já apontou algumas. A questão é juntar a suficiente massa crítica de
empenhamento…
O referendo sobre o regime não pode,
assim, ser um ponto de partida mas apenas um formal ponto de chegada. A
Restauração no novo milénio vai requerer um aturado trabalho, que, como
ficou dito, se deve iniciar com a institucionalização da comunidade
monárquica, do seu parlamento, as Cortes, e da sua direcção política, o
Conselho Monárquico, por ele democraticamente legitimado. E,
paralelamente, com a aclamação de S.A.R. o Sr. D. Duarte como Rei dos
Portugueses, senão imediatamente de todos, pelo menos daqueles que desde
já assim o reconhecem e que justamente constituem a comunidade
monárquica.
Com este passo, S.A.R. deixará de ser o
particular que hoje é, com tudo o que isso permite de liberdade
individual, para se assumir como Rei, com todas as obrigações e o
enquadramento institucional próprios da função. De resto, suponho que
todos os monárquicos consideram fundamental este tirocínio. O passo
seguinte a caminho da Restauração exige que, desde já, S.A.R. se integre
no quadro constitucional próprio das Monarquias modernas, introduzindo
assim no seu comportamento público a vertente do querer,
democraticamente estabelecido, do seu Povo.
Depois, obviamente, será essa estrutura
da simbiose Rei/Povo a determinar o caminho a seguir. O que não impede
que, desde já, se façam aqui algumas considerações de ordem estratégica.
Ou seja, tentar responder à questão central que trata de saber o que é
necessário fazermos em prol da Restauração.
Parece-me evidente que qualquer
estratégia que assente apenas numa base de apoio tradicionalista e num
discurso populista está destinada ao fracasso. E a prova, salvaguardando
as devidas distâncias, está por exemplo na incapacidade de o CDS/PP
ultrapassar o estatuto de pequeno partido.
Os monárquicos não podem teimar nesse
beco sem saída, tanto mais que a sua natureza nem é partidária nem, como
vimos, pode ser tradicionalista. Os tradicionalistas e conservadores de
hoje são os republicanos. Nós queremos a mudança, mas uma mudança
claramente de futuro, que pouco ou nada tem a ver com a Monarquia que
caiu em 1910.
Assim sendo, parece evidente que temos
de apostar sobretudo em quatro grupos sociológicos distintos, e por esta
ordem: os líderes de opinião, a juventude, a intelectualidade e as
massas populares. E, como é evidente, temos de saber comunicar com cada
um destes grupos, ou seja, ajustar o discurso a cada um
destes
arquireceptores.
Para tanto, é necessário, desde logo,
que o movimento monárquico, como já referimos, extravase as suas actuais
fronteiras da militância e ganhe a massa crítica que a tal comunidade
institucionalizada lhe garantirá. Depois, como um acto de livre vontade
dessa comunidade, tem de saber angariar, directa e indirectamente, o
orçamento mínimo indispensável à acção. E, a par disso,
institucionalizar uma direcção política, devidamente legitimada, capaz
de orientar e articular uma estratégia de curto, médio e longo prazo.
E as acções que imediatamente julgo que
se impõem, tendo em conta os referidos grupos-alvo, prendem-se sobretudo
com o ensino, a produção intelectual e artística e a comunicação
social. Ou seja, tal como a Igreja fez uma Universidade Católica e
mantém inúmeros estabelecimentos de ensino primário e secundário, também
nós devemos criar uma Universidade Monárquica e escolas de nível
inferior com a mesma orientação. Devemos igualmente criar uma Fundação
cujo objectivo seja apoiar a criação intelectual e artística que de
alguma forma se enquadre nos nossos objectivos estratégicos. Finalmente,
temos de lançar um jornal diário, uma estação de rádio e, se possível,
um canal de televisão que, muito embora mantendo os seus objectivos
profissionais e económicos de órgãos de comunicação viáveis, tenham das
coisas e do mundo uma perspectiva monárquica, ou seja, assente nos
valores do nosso denominador comum.
A Nobreza
A questão da Nobreza é incontornável
quando se fala de Monarquia. É ideia, aliás, que está muito mais na
cabeça dos que ainda estão de fora do que propriamente na dos
monárquicos. Mas tanto basta para que o assunto não possa ser aqui
esquecido, pois essa lacuna poderia dar azo aos mais disparatados
mal-entendidos.
Convém aqui, desde logo, tornar claro
que, com ou sem reconhecimento oficial, a Nobreza portuguesa existe e
existirá sempre. A República, de resto, cada vez se mostra mais
deslumbrada com a antiga Nobreza, verdadeira ou falsa. E criou ela
própria uma “nobreza” republicana, política e plutocrata, que
normalmente se caracteriza por ter muitos privilégios e nenhuns deveres…
A Monarquia, tal como a República, não
tem poder para negar os direitos históricos e a natureza da Nobreza
antiga. Porque a única forma de o fazer é eliminá-la fisicamente,
barbaridade que nem a nossa República cometeu. A questão, portanto, é a
de saber se a Monarquia deve manter cristalizada e portanto anacrónica
essa Nobreza, tal como fez a República, permitindo assim o surgimento,
sem rei nem roque, de uma classe plutocrata, exibicionista e consumista,
sem qualquer sentido social de serviço e de vanguardismo e, portanto,
verdadeiramente inútil.
Em suma, a questão reduz-se a saber se a
nossa Monarquia, tal como fizeram e fazem as Monarquias europeias, deve
enformar um corpo de elite, constantemente aberto a todas as
emergências, que não fique cristalizado no passado nem virado para o seu
próprio umbigo, mas que verdadeiramente esteja ao serviço do
desenvolvimento dos portugueses em particular e da portugalidade em
geral.
Conforme já confessei(14), não me encontro
no número daqueles que se esforçam por afastar a Monarquia de toda e
qualquer ideia de elitismo. E isto, basicamente, primeiro porque
considero que a criação de uma verdadeira elite nacional talvez seja a
mais urgente tarefa da modernidade e, segundo, porque só a instituição
real me parece estar em condições de o fazer devidamente.
Para que não subsistam confusões, é bom
avisar desde logo que elite não é, nem pode ser por definição, um jet
set plutocrata e consumista, ou um grupo de sobranceiros e diletantes
privilegiados ou, sequer, uma Nobreza de sangue bolorenta e medíocre. A
elite, na verdade, é uma massa crítica dos melhores, ou seja, daqueles
que seguem na vanguarda do caminho comum e que, pelo seu exemplo e pelo
seu serviço, se dispõem, na medida das suas maiores capacidades e/ou
educação, a enformar o desenvolvimento global e interactivo da
comunidade. Sendo certo que, até por uma questão de eficácia social,
esta elite deve ser devidamente assinalada e reconhecida como tal.
A actual sociedade portuguesa, sem de
resto com isso fugir à regra ocidental, parece cada vez mais dividir-se
entre aqueles que fazem o espectáculo, seja ele político, televisivo,
musical ou doutra ordem, e com isso enriquecem, e aqueles que pagam e
que assistem a esse mesmo espectáculo, num círculo vicioso de degradação
mútua.
Encurtando razões: nenhum dos grandes
meios de comunicação de massas, pela sua própria natureza, está em
condições de auxiliar o desenvolvimento cultural dos portugueses. Pelo
contrário, esse circo de audiências puxará e será puxado cada vez mais
para baixo. Na verdade, deseducará; pois o seu objectivo é apenas e
tão-só entreter as massas, quanto mais alienadas melhor.
A educação e a cultura não se compadecem
com este imediatismo. Por isso, só uma elite devidamente formada e
consciente da sua missão pode, pelo serviço do exemplo, inverter este
plano inclinado em que hoje escorregamos. Mas esta elite não pode ser
política, ideológica ou mesmo intelectual. Tem de ser uma elite eu diria
integral, forjada no cadinho milenar da História. Só assim será
verdadeiramente nacional e orgânica.
E julgo que só uma Monarquia está em
condições de enformar essa elite, salvaguardando sempre a liberdade e a
diversidade, sem o que nenhum verdadeiro desenvolvimento é possível.
Pelo que se pode concluir que esta é mais, e não menos, uma razão para defender a Restauração.
As Reais
Cabe inegavelmente às Reais Associações e
à sua federação, a Causa Real, liderar e implementar todo este
projecto. Sem qualquer receio de secundarização e muito menos de que
novos órgãos lhe venham tirar espaço ou influência. Desde logo, porque
as Reais Associações e a sua federação não são um fim em si mesmo mas um
meio, um instrumento, para se alcançar a Restauração, após a qual, de
resto, perdem algum sentido.
Às Reais cabe dinamizar regionalmente as
comunidades monárquicas, potenciando as suas energias endógenas em prol
de um movimento que se quer levar a toda a gente, sobretudo à
juventude. Mais: cabe-lhes enquadrar o melhor possível a participação
dos seus associados, enquanto tal, na vida política das suas regiões,
quer em associações e movimentos de opinião pública de vária ordem, quer
nas próprias autarquias.
Questões que em boa medida atravessam
horizontalmente as formações políticas partidárias e constituem
verdadeiramente assuntos da cidadania, devem merecer uma tomada de
posição dos monárquicos enquanto tal. Se bem que em teoria a unanimidade
seja naturalmente impossível em matérias como estas, convém não
esquecer que os monárquicos enquanto tal (e não apenas enquanto
cidadãos, eventualmente até ligados a um partido político) estão numa
situação especial, desde logo porque se devem sobretudo preocupar com
uma estratégia que sirva os seus objectivos de Restauração.
Aceitar o irrecusável para podermos
centrar as nossas energias no que nos é possível mudar, eis uma regra
estratégica que os monárquicos deviam sempre prosseguir.
Vejamos um exemplo: conforme já tive a
oportunidade de referir noutro local(15), o federalismo europeu, de que a
moeda única foi mais um passo, conduzirá seguramente ao desprestígio e
fim dos Estados jacobinos nacionais tal como hoje são entendidos. E os
povos irmãos da Europa terão portanto, contra a indesejável alternativa
da massificação unicista, de se reencontrar com os respectivos Reis, a
única instituição que verdadeiramente pode, no actual ambiente
dissolvente e altamente entrópico, salvaguardar a identidade dos
respectivos Povos. Podemos, portanto, dizer que a Monarquia será uma
garantia da portugalidade no 3º milénio.Por isso, os monárquicos devem ser o
mais federalistas possível. E se aquelas razões lhe não chegaram, há
outras que qualquer Maquievel facilmente lhe apontaria. Ou seja: devem
defender aquele futuro previsível e irrecusável que melhor serve o seu
monarquismo.
E o que se passa com o federalismo
acontece por exemplo com a regionalização, essa verdadeira machadada,
agora dada por baixo, no mesmo Estado jacobino, republicano. Os
monárquicos, principalmente aqueles que permanecem presos à velha
dicotomia Esquerda-Direita, devem perceber o mais rapidamente possível
que a regionalização, para além de estruturalmente monárquica, serve à
causa real como uma luva.
Eu sei que esta liberdade de espírito
nem sempre é fácil para os que foram educados na chumbática ideologia
salazarista e que, de então para cá, se fartaram de assistir a muita
imbecilidade. Mas é por isso que a Monarquia pode ser redentora mesmo no
plano individual: justamente na medida em que permite o salto
estruturante com baixos custos de entropia.
São este tipo de questões – uma vez
definida a estratégia política pelo Conselho e, numa eventual segunda
fase, pelas Cortes -, que devem preocupar e motivar a acção das Reais
Associações, a par e simultaneamente com a divulgação do ideal
monárquico.
Já o Conselho da Comunidade Monárquica
(e a sua eventual 2ª fase, as Cortes) têm uma natureza completamente
distinta. Com efeito, as Reais Associações e a sua federação são ou
deviam ser sobretudo um instrumento de acção dirigida para o exterior.
Em muitos aspectos, teriam uma vocação muito próxima da dos partidos
políticos.
O Conselho, pelo contrário, está
sobretudo virado para as questões internas da comunidade monárquica e da
própria Instituição Real. Representaria não apenas algumas centenas de
filiados mas os milhares, senão milhões, que consubstanciam o Povo
monárquico no seu conjunto. Com funções muito específicas, que
justamente começamos agora a definir, mas que sobretudo se prendem com a
filosofia e estratégia políticas, o conselho a S.A.R. e a representação
democrática da comunidade monárquica. O Conselho (e depois as Cortes)
seria, enfim, um órgão da própria Monarquia.
Às Reais Associações e à sua federação, a
Causa Real, cabe pois a condução e implementação das estratégias
propostas. Passando, obviamente, à fase dos pormenores tácticos e
logísticos que seria despropositado aqui e agora esmiuçar e
calendarizar. Mas para tanto – infelizmente há que dizê-lo -, não pode o
movimento monárquico perder-se em querelas estéreis de capelinhas ou de
politiquices republicanas. A História está cheia de exemplos de
oportunidades falhadas porque faltou, aos homens de que se esperava a
indispensável liderança, a capacidade de se elevarem acima das tricas
internas e assim conseguirem motivar todos e cada um na obra comum que
se impunha. E o futuro não nos perdoará se o não fizermos.
Como diria Fernando Pessoa: É a Hora!
PORTO, 1999
5
Ideologia tem hoje geralmente este significado, muito embora o termo tenha
sido criado pelo filósofo francês Desttut de Tracy (1754-1836) para designar
a ciência que tem por objecto o estudo das ideias no sentido geral de
factos da consciência.
7
Vide «Estado de Coma», Porto 1995, de
Manuel Abranches de Soveral, Diogo Pacheco de Amorim, João Afonso Machado
e Rui Marrana.
Texto de: Manuel Abranches de Soveral
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