O poder real não pertence a El-Rei: desce sobre ele.
Nada na natureza de El-Rei o está prometendo ou anunciando. El-Rei, por
natureza, tem poderes próprios de homem: físicos e espirituais, mas só
humanos.
1. A primeira imagem
que de El-Rei se pode ter é porventura a faustosa imagem da grandeza.
Assim ele anda pintado coloridamente na imaginação infantil e na de
todos os Povos. E no entanto, a quem detidamente o encare, El-Rei
aparecerá, por baixo da roupagem fulgurante, como homem nu de aparatos,
casado com a pobreza, violentamente atirado para longe dos próprios
desejos… Se o primeiro momento da imagem nos dava um Senhor poderoso, o
primeiro momento da ideia dá-nos um servo. El-Rei é um cativo.
Quem cativou El-Rei? – o Poder o encadeia: o próprio Poder que
assume. É ele que o arrasta a uma esfera que não é da sua natureza.
Homem, e mais nada senão homem, tudo nele está a clamar exigências e
pendores comuns. E, por contraste, tudo nele se passa: não à margem do
que é comum – o que seria ainda pouco – mas, dentro do comum, por um
modo diferente. A análise da vida de El-Rei manifestaria, uma a uma,
mil diferenças. Todas são resultantes de uma só causa: o Poder.
O poder real não pertence a El-Rei: desce sobre ele. Nada na
natureza de El-Rei o está prometendo ou anunciando. El-Rei, por
natureza, tem poderes próprios de homem: físicos e espirituais, mas só
humanos. O poder real é de outra ordem. Não vem da natureza: vem de Deus.
Decerto: nada do que existe tem outra origem que não seja Deus.
Criada por Deus a natureza humana, não há poder natural que não venha
de Deus; mas por modo indirecto. As causas segundas agem
plenamente; e tudo se passa (em certo sentido) como se não existisse
Causa Primeira. A esta regra se subtrai o poder político. É a este que
com perfeita adequação se aplica a fórmula bíblica: omnis potestas a Deo.
Esta ligação directa com Deus, este ter Deus como fonte imediata,
faz com que o poder político pareça aproximar-se de uma esfera que não
é política: a esfera religiosa.
Nada mais falso e nada mais grave que esta impressão sedutora! O
vínculo político enlaça com Deus o chefe, o Rei (ou, se quiserem, a
colectividade, mas como um todo). O vínculo religioso enlaça com Deus
todos os homens, um a um. O segundo é, o segundo não é exigido pela
natureza do ser vinculado. Religião e Política são irredutíveis.
A quem subir da ordem natural (em que o homem aspira ao Criador) à
ordem sobrenatural (em que, pelo mistério da Redenção, o Pai Se fez
presente ao homem e o faz seu filho), pode parecer agora que a Religião
se torna mais semelhante à Política, pois o vínculo sobrenatural enlaça
com Deus, antes de todos, o Pontífice. Mas esta semelhança formal a
nada conduz. O Estado é da linha da Criação. A Igreja é da linha da
Redenção. Além de que, mais ainda (se é possível) que na Religião
natural, aqui o que Deus procura é cada homem de per si, o que na ordem
política não tem sentido.
E no entanto, apesar de bem distinta do plano religioso, a esfera
política está mais directamente ligada a Deus que a esfera individual
ou a familiar (não sobrenatural) ou qualquer esfera simplesmente
associativa.
Assim ligado ao Criador por um nexo imediato, o Rei vive uma vida
que a sua natureza não continha nem fazia prever. A sua existência não
lhe condiz com a essência. Sendo mais nobre que ela, eleva o Rei ao plano do sagrado.
O sagrado não pertence apenas à ordem sobrenatural. E que outra coisa
é, na ordem natural, senão aquilo cuja existência ultrapassa a própria
essência?
2. Embora, no conjunto dos poderes, vindos todos de
Deus, o poder real constitua excepção; embora a Causa Primeira aqui nos
pareça actuar directamente, dir-se-ia tão grande a força da lei
universal, que, olhando a certa luz, já o próprio poder político nos
mostra uma origem puramente natural.
O Poder, por essência, vem de Deus . Na existência, porém, é a História – o Povo na História – que o desenha e suporta.
3. Eis, pois, El-Rei duplamente cativo do Poder.
Para longe a roupagem fulgurante! Para longe a própria natureza,
exigente, em humana medida, de humanas ambições… Como a água cantante
que jaz cativa, porque há-de servir para sinal de Deus; como o cordeiro
que Abel sacrificou; como o pão e o vinho de Melquisedec – esse homem
foi distinguido dos outros, para ser, fora de si mesmo, numa esfera que
não é a sua, o senhor de todos: incluindo em todos aquele que ele próprio é.
Deus o cativou; a História o conserva cativo. Um vínculo, uma
servidão originária, que por geração se transmite como o pecado de
Adão, faz de El-Rei o homem mais despido de aparatos, companheiro da
pobreza, exilado de si mesmo… Para cumprir.
II
El-Rei é um cativo: prisioneiro de Deus e da História.
E, no entanto, aos nossos ouvidos soa a palavra triunfante: Rex noster libert est.
El-Rei é livre! E este é o segundo mandamento da ideia, contrastante
também com o segundo momento da imagem, que nos daria um Rei preso por
etiquetas, escravo de cortesãos ou do seu próprio orgulho…
Quem libertou El-Rei? Quem lhe quebrou as grades do cativeiro? Deus
e a História (a História, de que ele mesmo é agente). Quem o cativou,
agora o liberta. A servidão que El-Rei tem de cumprir; o seu cativeiro
e o seu serviço consistem em ser livre. É a ser livre que Deus e a
História o obrigam.
A sua liberdade nada tem que ver, no entanto, com a sua condição de
indivíduo. Livre, sim: porém, apenas como sumário, síntese e imagem do
Povo seu carcereiro. O grito de triunfo Rex noster líber est só tem um sentido: significa exactamente o mesmo que: Nos liberi sumus.
El-Rei não é livre para si próprio. Não são os seus instintos, os seus
desejos, as suas tendências de homem que se libertam. Ao contrário:
tudo isso se encontra sujeitado.
Para uma coisa é livre, e então plenamente, exuberantemente, loucamente: para que os seus súbditos possam afirmar, intrépidos: Nós somos livres! É esta a liberdade real: a liberdade de que está cativo.
Tão forte prisão é esta liberdade, que basta ao Rei deixar de ser
livre para deixar de ser Rei. «O Rei é livre» é uma fórmula de
identidade. No dia em que a liberdade individual de El-Rei, sepultada
na régia existência, revoltando-se deixar de coincidir com a liberdade
colectiva (que é a própria liberdade de El-Rei enquanto Rei), o
rompimento será fatal. Fatal, porque automático. Um Rei não livre é, ipso facto, um não-Rei.
III
Com os vínculos de que é prisioneiro, modela El-Rei a liberdade de
todos. O seu poder é essencialmente libertador. Nele, a natureza humana
está cativa, para que nos outros homens esteja livre. Libertador da
natureza, é às liberdades naturais que El-Rei se sacrifica; não à
entidade metafísica que um Humanismo unilateral imaginou. Deus suscitou
El-Rei para servir os homens; não para servir ideias.
Quatro aspectos se podem considerar no serviço político (ou poder político) que El-Rei desempenha, quando encarado sob o ângulo da liberdade:
a) Defende cada indivíduo ou cada colectividade
das abusivas intromissões alheias; está nisto o que legitimamente se
pode chamar o poder moderador de El-Rei: o Rei exerce o «poder
moderador» na medida em que limita ao seu âmbito próprio os poderes
naturais dos indivíduos e da sociedade, integrando-os na unidade
política da Nação. Aspecto negativo, nem por isso deixa de ser fecundo.
b) Por acções negativas e positivas, é próprio do
poder real garantir a cada indivíduo ou comunidade uma existência
conforme com a sua própria essência. Aqui se manifesta em supremo grau
a vocação de El-Rei para libertador da natureza.
c) Pela sua segunda natureza, que é o cuidado
político, El-Rei dispensa do zelo geral os homens e as sociedades.
Todos devem dar para o Bem Comum a sua quota-parte. Todos devem ter o
Bem Comum como a suprema regra natural. Bem certamente! Mas o Rei lá
está, em nome de todos; substituindo, aos cuidados políticos dos outros
(que, por mais constantes, serão sempre acidentais), o seu cuidado
político substancial, que é o seu modo de ser enquanto Rei. É como
participantes do poder real que os participantes hão-de participar do
cuidado político, do zelo geral.
A El-Rei compete escolher os súbditos, não aos súbditos escolher
El-Rei. Mas essa escolha é a dos que em união com ele devem ser, na
esfera política, os promotores do Bem Comum. Nos seus planos
próprios, indivíduos, famílias, corporações, municípios, rasgam
entretanto os seus caminhos, escolhem democraticamente os que entre si
conhecem como melhores, vivem a sua vida… Porque El-Rei se consagrou ao
Bem Comum, todos podem consagrar-se aos bens particulares. E de tudo resulta a harmonia da Nação.
d) Livra a Nação do caos sempre possível dos
poderes desencontrados, fortalece-a, defende-a, enobrece-a. E, assim,
não apenas torna possível, mas realiza, a aspiração essencial de
qualquer nacionalidade: a independência. É esta, mais que todas, a
função real: dar à Nação a existência que a sua essência pede: a
existência política. A Nação é o Reino.
Deste modo cumpre El-Rei o seu destino de libertador. Ele é o que
desencadeia os poderes naturais. Mas há um poder que ele não pode
desencadear: o poder sobrenatural de cada homem se tornar filho de
Deus. Não o pode desencadear, porque esse poder não deriva do sangue
nem da carne, mas somente de Deus. Nenhum homem tem o poder de se
tornar filho de Deus. Por isso mesmo, não é possível a El-Rei libertar
esse poder. Não pertence a El-Rei dar liberdade ao seu Senhor. Mas Deus
espera do seu servo um supremo serviço: que desencadeie o poder que o
homem tem de corresponder àquele poder divino. Assim se cumpre o ciclo
sagrado da existência real.
Mas… ele? Qual o destino desse homem que, ao assumir o Poder, foi
assumido, absorvido, por ele? Para além da própria missão política, que
com ele morre, fica a pessoa, que no sacrifício do indivíduo encontrou a sua plenitude[1].
[1] De colaboração com Afonso Botelho foi pensado e elaborado este ensaio (1971).
Nota: não confundir o conceito cristão de “origem divina do poder” (omnis potestas a Deo)
aqui afirmado - ponto de filosofia acolhido por Henrique Barrilaro
Ruas – com qualquer conceito derivado da teoria do “direito divino do
reis” (detenção do poder régio por “mandato de Deus”), como foi
defendido pelo Marquês de Pombal, e em geral pelos iluministas, contra
a tradição da Monarquia portuguesa.
No texto de uma conferência intitulada «O Drama de um Rei» (D. Carlos I), publicada na revistaGil Vicente
em 1965, o Autor apresentou o conceito cristão de Poder Régio da
tradição portuguesa – conceito adoptado pelos integralistas lusitanos
– contrastando-o com as diferentes concepções da Realeza, desde as
remotas civilizações pré-clássicas até à era contemporânea do
ideologismo (nota desta edição).
(Henrique Barrilaro Ruas,A liberdade e o Rei, Lisboa, 1971, pp. 130-137)
Fonte Unica Semper Avis
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