Recentemente, chegou-me às mãos um documento curiosíssimo. Trata-se
da Carta de Compromisso do movimento Nova Cruzada. O que é esse
movimento? Vamos pois analisar a dita Carta.
Pelo que li, trata-se de um movimento de regeneração nacional com
sede no Santuário de Fátima, onde “o Líder Espiritual veio depositar a
Esperança e a Mensagem que nos mobilizará para os desígnios que nos
estão destinados”. Tem por objectivo “a vitória de Portugal, do
Portuguesismo, da Família e da Fé”. Conta com o apoio incondicional e
unânime dos “alheados, dos descontentes, dos desesperados e dos
resignados” e com a acção dos “conscientes e determinados”. O movimento
deseja mobilizar a Juventude Portuguesa “como forma de motivar a sua
participação na construção do seu futuro” e dar à mulher portuguesa de
volta o seu “nobre sentido maternal (…) e o enaltecimento dessa função”.
Diz ainda a Carta, que a Cruzada tem como protagonistas “todos os
portugueses que sentem esse forte sentimento de paixão pela sua Raiz,
que foi plantada num Território Sagrado (…), que vivem e não abdicam de
viver numa sociedade cujo pilar dominante é a Família (…) que acreditam
que Portugal é eterno (…) que sentem o seu Portuguesismo, que é
Patriotismo, Humanismo e Mundanismo (…) que rejeitam (…) o usufruto dos
bens materiais (…) e realçam o humanismo e a espiritualidade, (…) e que
acreditam (…) de que temos hoje, tal como tivemos no passado, um
desígnio a cumprir que nos enriquecerá e glorificará”. Tudo isto pela
crença de que temos, como país, “uma importante missão a desempenhar
hoje e no futuro”.
Mas estes Libertados (assim se chamam os integrantes do movimento)
erguem a sua voz contra o quê em concreto? A Carta é explícita.
Pretende-se “Uma mobilização colectiva contra a Mentira e a Manipulação
(…) contra o laicismo militante, (…) a corrupção e os compadrios (…) os
privilégios pessoais e partidários (…) contra a mediocridade da classe
dirigente (…), os espartilhos e condicionamentos da liberdade de
expressão (…) por melhorias no ensino público, Justiça e serviços
públicos (…) pelos direitos regionais (…) pelo direito à segurança (…)
igualdade (…) defesa do património, recursos e ambiente”.
Tudo isto parece muito bonito. Mas o que significa o texto da Carta?
Este movimento, tão grande que nunca tinha ouvido falar dele, coloca
sede em Fátima e ergue-se pela vitória da Fé Católica contra o laicismo e
a separação da Igreja e Estado. Esta linha de pensamento, arcaica,
fundamentalista, inquisitorial e de combate religioso, caiu em desuso no
nosso país ainda em tempos do Marquês de Pombal que, apesar dos seus
defeitos, sempre combateu tais obscurantismos. Estes Libertados parecem
ainda não ter percebido os benefícios da expressão “Cada macaco no seu
galho”, no tocante à Igreja e ao Estado. Pior, a sua luta pelo
Catolicismo significa que, se eu fosse muçulmano, não podia ser um
Libertado pois não era católico praticante e nem ia à missa ouvir o
burburinho e tosse das beatas encobrir a voz, sumida e monocórdica, de
um velho e pachorrento sacerdote a recitar o Credo de Niceia. Bem, sou
católico conservador, mas a ideia de associar Estado e Igreja mete-me
impressão de tão retrógrada e, segundo sei, nem a própria Igreja o
deseja. Portugal tem de andar para a frente, não para trás.
No tocante à Pátria, verificamos que os Libertados desejam a vitória
de Portugal e do portuguesismo, uma coisa que não sei o que é.
Portuguesismo? O que é isso? Ter um Galo de Barcelos “made in China”
sobre o frigorifico, uma garrafeira de vinho do Porto comprado por cinco
euros na mercearia onde o merceeiro rouba no peso, ouvir diariamente
doses quase mortais de Toy e Toni Carreira, cuspir para o chão na rua,
atirar piropos ordinários a cada rabo-de-minissaia, viver do rendimento
mínimo garantido, ter uma alimentação à base de cachorros, churros,
farturas e cerveja, acreditar piamente que Camões foi o primeiro rei de
Portugal e fazer o que for preciso para ir ao estádio apoiar o Clube e
partir o nariz da claque contrária caso se perca o jogo? Além do mais,
dado que vivemos num país atrasado, mal governado, inculto, falido e com
um eterno complexo de inferioridade face aos parceiros europeus, porque
não salientar o hábito, salutarmente português, de falar mal do próprio
país? Podemos ter tudo de mau e estar em péssima situação, mas se há
coisa que os portugueses têm de bom é isso: a autocrítica. Dizem ainda
os Libertados que rejeitam o materialismo em prol da espiritualidade.
Mas há coisa mais portuguesa do que passar fome só para manter um
Mercedes à porta da barraca, para fazer ver? Acredito que não.
Em relação à Família, que dizem os Libertados? Acreditando que é o
pilar basilar da sociedade, querem o regresso à típica família
portuguesa, em que a mulher, maternal e caseira, vive para fazer filhos,
educá-los e estar sempre pronta a servir o “seu homem” quando ele chega
a casa, prontinho para se alapar frente à televisão, cansado depois de
um longo dia sem fazer nada, no café, a discutir futebol e “gajas”, num
interessante e produtivo debate regado a finos e tremoços. E claro, o
jovem filho-família tradicional português, sempre interessado em
aprender, numa busca de conhecimento em prol do seu futuro que o leva a
incendiar metade da escola para aprender as propriedades combustíveis da
gasolina, ou a arrear tareias de cinto no professor que tentar limitar a
sua liberdade de expressão, que geralmente se limita ao acto de
insultar colegas, comunicar por monossílabos e perguntar “o k faxex lg a
tard” à colega mais gira da turma, por SMS, no meio da aula.
E, caso curiosíssimo, podemos também verificar que os Libertados,
além de não parecerem conhecer bem o país que dizem amar tanto, e de
terem um patriotismo irracional e arcaico, são ainda adeptos de uma
ideia por demais ultrapassada e bacoca, a de um Portugal Messiânico,
muito ao estilo da Mensagem do Fernando Pessoa, um indivíduo que hoje
reconhecemos como um génio, mas que teve a sorte de viver na época em
que viveu, fugindo à época actual, em que seria por certo rotulado de
bipolar ou maníaco-depressivo e internado no Júlio de Matos ou no
Magalhães Lemos, encharcado em Prozac até ao fim dos seus dias. Esta
ideia de um Portugal sagrado, inviolável, invicto, eterno e com uma
missão a cumprir é um mito sebastianista, ingénuo e infantil, mas que
tem perseguido os portugueses como uma assombração maligna que lhes
teima em puxar o tapete. Preferimos, como povo, esperar sentados pelo
Encoberto, sem nada fazer, à espera que o destino dado por Deus a
Portugal se cumpra magicamente. E preferimos ali continuar, à espera,
sentados até que as aranhas façam teias entre a nossa cabeça e o chão, e
o pó cubra os nossos braços, assim como o pó em que já se tornou o
Encoberto, nas praias marroquinas ou num túmulo decorado nos Jerónimos.
Preferimos sempre tudo isto porque tudo isto é mais fácil do que
arregaçar as mangas e trabalhar, sem descanso, dia após dia, por um
futuro melhor para os nossos, o que é de lamentar, pela burrice da
escolha. Pessoalmente, fico triste e surpreso por ainda haver quem assim
pense, no dealbar do século XXI.
Bem, a leitura desta carta fez-me em parte recordar um conhecido
discurso de Salazar, que transcrevo: “Não discutimos Deus e a virtude;
não discutimos a Pátria e sua História; não discutimos a autoridade e o
seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a
glória do trabalho e o seu dever. Assim se assentaram os grandes pilares
do edifício e se construiu a paz, a ordem, a união dos portugueses, o
Estado forte, a autoridade prestigiada, a administração honesta, o
revigoramento da economia, o sentimento patriótico, a organização
corporativa e o Império Colonial”. Estas breves linhas, de um discurso
datado de 1936, bastam para sintetizar o conteúdo da Carta de
Compromisso da Nova Cruzada. Espera-se o quê de alheados, descontentes e
desesperados? Ideias novas para o país? Nem por isso, apenas se
revisitam ideias antigas, para não dizer retrógradas, antiquadas e
desadequadas para a situação actual do país. Nunca pensei… Deus, Pátria e
Família, de novo na moda?
Filipe Manuel Dias Neto
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