Como os debates da Constituição Europeia e Tratado de Lisboa mostram, a
Europa vive uma grave crise de identidade. A origem profunda está num
antigo mito que o volume A Vitória da Razão (Random House, 2006; Tribuna
da História, 2007) do grande sociológico da religião Rodney Stark se
esforça por destroçar. O subtítulo indica-o claramente: "Como o
Cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o
milagre económico no Ocidente."
Esta ideia não surpreende. Dado
que a Europa criou os valores da sociedade moderna e é uma zona cristã,
seria muito estranho não existir uma relação estreita entre esta origem e
aqueles efeitos. Apesar disso é preciso afirmá--lo, porque segundo a
tese comum, a Igreja manteve o continente na obscuridade e miséria
durante séculos até que a emancipação, com o Humanismo e Iluminismo,
permitiu a ciência, liberdade e prosperidade actuais. Esta visão,
divulgada por discursos, livros de escola e tratados de História, é
simplesmente falsa.
Pelo contrário, a Igreja Católica, vencendo o
paganismo obscurantista e civilizando os bárbaros, foi uma poderosa
força dinâmica, estabelecendo os valores de tolerância, caridade e
progresso que criaram a sociedade contemporânea. A Idade Média,
conhecida como "Idade das Trevas", foi uma das épocas de maior
de-senvolvimento e criatividade técnica, artística e institucional da
História.
Os filósofos humanistas e iluministas posteriores
repetiram, em boa medida, ideias medievais. Esta tese está longe de ser
original (ver, por exemplo R. Pernoud, 1979, Pour en Finir avec le Moyen
Age, Ed. du Seuil; S. Jaki, 2000, The Savior of Science, William B
Eerdmans Pub. Co; T. Woods, 2005, How the Catholic Church Built Western
Civilization, Regnery Pub.), mas continua oculta debaixo do persistente
mito.
As razões desse engano são muito curiosas. Como explica
Stark, todas as ditaduras exploram o povo para criar obras grandiosas à
magnificência dos tiranos. Foi assim Roma e os reinos orientais.
Destroçado o despotismo com a queda do império, a Cristandade gerou um
surto de criatividade prática, pois as populações não temiam a pilhagem
dos ditadores. Assim as realizações da Idade Média resultaram em
melhorias da vida das aldeias, não em monumentos que os renascentistas
poderiam admirar. Por isso esses intelectuais posteriores, nos seus
gabinetes, desprezaram uma época sem mausoléus, enquanto louvavam as
tiranias de que só conheciam a arquitectura e erudição.
Os avanços
conseguidos na chamada Idade das Trevas são impressionantes, todos
dirigidos a melhorar a vida concreta (op. cit. c. II): ferraduras,
arado, óculos, aquacultura, afolhamento trienal, chaminé, relógio,
carrinho de mão, etc. A notação musical, arquitectura gótica, tintas a
óleo, soneto, universidade, além das bases da ciência, a separação
Igreja-Estado e a liberdade dos escravos (c. III) são também criações
medievais. Em todos estes avanços, e muitos outros, têm papel decisivo
mosteiros, conventos e escolas da catedral, bem como a confiança da
teologia cristã no progresso, contrária à de outras culturas.
Mais
influente, nos séculos XI e XII em Itália nasceu o capitalismo (c. IV),
sistema que suporta o desenvolvimento, e que tantos ainda julgam ter
origem oitocentista e protestante. A prosperidade mercantil e bancária
então conseguida gerou verdadeiras multinacionais que promoviam a
manufactura e comércio na Europa saída do feudalismo. Depois a peste
negra, a guerra e os déspotas iluminados, retornando à pilhagem
clássica, destruíram esse florescimento e levaram os filósofos tardios a
pensar ter descoberto o que os antepassados praticavam.
Nessa
reconstrução perderam-se alguns elementos centrais da versão católica
inicial. Por exemplo, no século XII, "cada vez que faziam ou reviam um
orçamento era criado, com algum capital da empresa, um fundo para os
pobres. Estes fundos aparecem registados em nome 'do nosso bom Senhor
Deus' (...) quando uma empresa era liquidada, os pobres eram sempre
incluídos entre os credores" (p.167).|
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