A
chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, em 1807, foi um fato que
haveria de produzir uma cadeia de consequências benéficas para nossa
Pátria. Infelizmente, num país em que 75% dos formalmente alfabetizados
são, de fato, analfabetos funcionais incapazes de ler e interpretar um
texto de dez linhas, há muita ignorância e desinformação sobre o período
dito colonial da História brasileira.
Recordo que, há poucos
anos, um dos principais redactores de um grande jornal paulistano,
escrevendo sobre as origens do Brasil, referiu-se desinibidamente às
"três naus da frota cabralina", em evidente confusão com as três
embarcações de Colombo. E um colega seu precisava, eruditamente, que
Cabral havia partido "da foz do rio Tagus". Na realidade, foi com treze
embarcações que Cabral partiu de Lisboa, aqui chegando com doze, e a
partida foi de Belém, à foz de um rio que em bom português se chama
Tejo...
As gaffes desses jornalistas são bons exemplos
da ignorância que campeia por estas bandas sobre um período da nossa
História que durou nada menos do que 322 anos, e do qual a maior parte
dos brasileiros não tem senão noções muito genéricas, superficiais e
distorcidas.
Lamentavelmente, a historiografia oficial brasileira
-- em especial a posterior à proclamação da República, em 1889 -- com frequência subestima os grandes benefícios que trouxe ao Brasil a
civilização portuguesa, ou é flagrantemente injusta com relação à
Mãe-Pátria, faltando com a verdade por vezes de modo grotesco.
Felizmente não faltam historiadores sérios que, em estudos bem
documentados e bem escritos, que resistem a qualquer crítica
malevolente, fazem justiça àqueles heróis povoadores e missionários que
deixaram as delícias e as comodidades do "jardim da Europa à beira-mar
plantado", para virem "dilatar a Fé e o Império" nestas plagas então
inóspitas e cheias de riscos.
É verdade que seus livros nem
sempre têm toda a divulgação que mereciam ter. Mas eles existem, estão
bem conservados nas estantes das bibliotecas, e de futuro poderão
atestar que em nenhum momento deixou de haver bons brasileiros gratos ao
que nos trouxe Portugal.
Personagem particularmente visado pelos
pseudo-historiadores é D. João VI, o monarca posto pelas circunstâncias
no leme da nau do Estado luso-brasileiro numa hora particularmente
trágica, na qual, sem deixar de ser um homem bondoso, clemente, até um
tanto bonacheirão, foi um grande rei e soube desempenhar seu papel
histórico à altura das gloriosas tradições que representava.
Uma Europa em crise
Uma Europa em crise
Quando foi decapitado em Paris o Rei Luís XVI, em 1793, Portugal, então
governado pelo Príncipe-Regente D. João, e a Espanha, na qual reinava
Carlos IV, tendo como todo-poderoso ministro Manuel de Godoy, declararam
guerra à República Francesa. Na mesma entente figurava a Inglaterra.
Portugal enviou, para o Roussillon, região sul da França, uma divisão
composta por seis regimentos de infantaria; essa divisão lá permaneceu
quase dois anos, combatendo, com alguns sucessos apreciáveis, lado a
lado com os espanhóis, contra os princípios da Revolução Francesa. Mas
estes acabaram se impondo em Madrid, com a traição de Godoy (o chamado
"Príncipe da Paz"), e o governo espanhol fez a paz em separado com a
França revolucionária e passou a defender os interesses desta na
Península. Traindo os compromissos assumidos, voltou-se contra os
aliados da véspera, chegando a declarar guerra, sucessivamente, à
Grã-Bretanha e a Portugal. Estabelecida em 1801 uma paz iníqua e
precária, prosseguiu o mesmo trabalho de sapa por parte de Godoy, que
parecia empenhado não só em eliminar a independência de Portugal, mas
também em auto demolir o próprio trono de seu país.
Essa política
de Godoy, levada habilmente por ele durante mais de 12 anos, conduziu às
invasões napoleónicas na Península. Foi nesse contexto que as tropas napoleónicas atravessaram o território espanhol e se precipitaram, em
três hordas sucessivas ? chefiadas por Junot, Soult e Massena ? sobre
Portugal. A reacção que tiveram então os povos ibéricos, na defesa das
suas liberdades e das suas tradições, foi heróica e grandiosa.
A resistência lusa contra os invasores franceses
No tocante à resistência portuguesa à primeira invasão revolucionária, o
historiador austríaco João Batista Weiss assim descreve o levantamento
nacional contra as tropas de Junot:
"Os portugueses desfraldaram a
sua bandeira nacional, ao repicar dos sinos, com júbilo festivo e fogos
de artifício na cidade [do Porto]. Como um fogo em erva seca correu
este movimento pelo país; a 11 de Junho de 1808 o antigo Governador de
Trás-os-Montes proclamou soberano o Príncipe Regente, e chamou às armas
os habitantes. Nas cidades e aldeias respondeu o povo: 'Viva o Príncipe
Regente! Viva Portugal! Morra Napoleão!'
"A 17 de Junho a mesma
aclamação ressoou em Guimarães, a 18 em Viana, a 19 o Arcebispo de Braga
fez retomar as prerrogativas pela Casa Real de Bragança, com grande
concorrência do povo; osculou a antiga bandeira, e abençoou o povo, que
cantou o Te Deum laudamus. Elegeu-se a seguir uma Junta, de que foi
presidente o Bispo.
"Em Coimbra ardia a juventude estudantil a
favor da libertação da pátria, e o templo da ciência converteu-se em
arsenal de guerra. No laboratório de química preparava-se pólvora. Os
estudantes espalhavam-se pelas aldeias, para incitar os trabalhadores
manuais a armar-se; eram recebidos com o repique dos sinos, fogos de
artifício e clamores de júbilo. Todos se armavam; os trabalhadores
brandiam as suas gadanhas, desenterravam-se canhões que se tinham
enterrado na última guerra de Espanha; frades com o crucifixo na mão iam
à frente das tropas. O clero era todo fogo e chamas pelo levantamento
nacional, mas impedia as crueldades que se tinham cometido na Espanha
contra os inimigos.
"A situação dos franceses tornou-se grave.
Junot conhecia toda a grandeza do perigo, não podia receber auxílio da
França, nem por mar, porque os cruzeiros ingleses o dominavam e vigiavam
ao longo de toda a costa, nem por terra, pois a Espanha estava toda em
armas e todos os correios eram interceptados. Com 24.000 homens não
podia dominar a sublevação de todo um povo" (História Universal,
Barcelona, 1931, pp. 262-263).
Sobre o conjunto das operações militares entre os anos de 1808 e 1814, escreve o Pe. Joaquim José da Rocha Espanca:
"Este ano de 1814 foi o último da guerra. Ganhou o exército anglo-luso
16 batalhas que foram as do Vimieiro, Corunha, Talaveira, Buçaco,
Fuentes de Honor, Albuera, sítios de Ciudad Rodrigo, Badajoz e
Salamanca, batalha de Vitória, dos Pirenéus, sítio de S. Sebastião de
Biscaia, Nivelle, Nive, Ortez (27-2-1814) e Toulouse (12-4-1814, quando
Napoleão já tinha abdicado). Para que se veja num pequeno quadro quanto
nos foi penosa a Guerra Peninsular, copio de um artigo de Augusto Pinho
Leal o seguinte resumo das operações desta luta gigantesca: 'Desde a
invasão de Junot até ao fim da guerra, o exército português entrou em 16
batalhas gerais, 210 combates, 14 cercos, 18 assaltos, 6 bloqueios e 12
defesas de praças. Total: 276 ações' (Veja-se o jornal A Esperança, n°
352 de 13-3-1879)" (Memórias de Vila Viçosa, t. 14, 1984, pp. 11-12).
Evitando a triste sorte da Espanha, enganou Napoleão
O Príncipe-Regente D. João, não podendo resistir in loco, teve o bom
senso de transferir-se com toda a sua Corte para o Brasil -- executando,
aliás, plano muito antigo já esboçado desde o século XVI -- onde
desenvolveria uma acção benéfica extraordinária, com a qual muito
lucraria o Brasil. Menos feliz foi o Rei Carlos IV, da Espanha, que não
conseguiu realizar projecto similar de se transferir para o México, e
acabou caindo, juntamente com seu filho Fernando (depois Fernando VII),
nas mãos de Napoleão.
Certos autores modernos criticam
injustamente a D. João VI, acusando-o de covardia. Postas as coisas como
estavam, ele fez o que de melhor poderia ter feito. A transferência
para o Brasil foi um lance político muito sagaz, que não só evitou a
Portugal os vexames que sofreu a Espanha, reduzida a protectorado francês
com José Bonaparte no seu trono durante mais de 5 anos (de Junho de
1808 a Setembro de 1813), mas também proporcionou consideráveis
vantagens ao Brasil.
Vale a pena lembrar, a tal respeito, o
depoimento do próprio Napoleão Bonaparte. No Memorial de Sainte-Hélène, o
ex-todo-poderoso senhor da Europa fez justiça a D. João VI,
reconhecendo que sem a transferência da Família Real Portuguesa para o
Brasil a Inglaterra não teria podido romper o apertado bloqueio em que
se encontrava e tornar-se o agente principal da derrota final napoleónica (cfr. João Ameal, História de Portugal, Porto, 2ª ed., pp.
566-567).
Os tão comentados lances de hesitação de D. João nos
dias que precederam o embarque, ridicularizados e caricaturados por
certos autores, foram, na realidade, um recurso teatral que iludiu os
franceses que não estavam esperando por aquilo e ficaram, literalmente, a
ver navios... D. João precisava agir como agiu, fingindo estar
hesitando entre as duas alianças possíveis -- a da Inglaterra e a da
França -- porque havia, em Portugal, uma poderosa e influente facção
favorável a Napoleão. Também essa “quinta-coluna” foi iludida.
Tudo isso está bem documentado nas atas do Conselho de Estado
português, que comprovam que a transferência para o Brasil não foi uma
decisão precipitada e intempestiva, mas correspondeu a um plano
magistral, longamente -- e dissimuladamente -- executado. Em conferência
pronunciada no dia 26 de Março de 2007, no salão-nobre da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, o Príncipe D. Luiz de Orleans e
Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil, sustentou documentadamente
essa tese, diante de um auditório de mais de 800 pessoas. Falaram na
mesma sessão, e aduziram argumentação conclusiva, a esse respeito, o
historiador português D. Marcus de Noronha da Costa, Conde de Subserra,
membro da Academia Portuguesa da História e do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro; a Profa. Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias,
presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo; e o Prof.
Dr. João Grandino Reis, diretor da Faculdade de Direito da USP. Essa
sessão, que se revestiu de um brilho excepcional nos anais da própria
Faculdade de Direito, foi, acima de tudo, um ato de justiça prestado à
memória de D. João VI. Nela falou também, prestando homenagem a D. Pedro
I, o filho primogénito de D. João VI, o Prof. Dr. Daniel Serrão, médico
e cientista português de renome internacional, membro da Academia
Portuguesa das Ciências e da Pontifícia Academia de Ciências do
Vaticano.
É hora de se fazer justiça a D. João!
De fato, já é bem hora de recolocar no seu devido lugar histórico o
injustiçado D. João VI, que aqui chegou como Príncipe-Regente, em 1808;
que aqui foi coroado Rei, em 1815; que aqui assentou as bases de um
grande Império luso-brasileiro; e que aqui teria permanecido até o fim
de seus dias, se as circunstâncias lho tivessem permitido.
São
ridículas e carentes de qualquer fundamento histórico e são, mais ainda,
aberrantes do bom senso elementar, muitas das asserções frequentemente
feitas contra ele.
Pasmem os leitores com o seguinte trecho, extraído
de um livro corrente no Brasil, a descrever o dia-a-dia de D. João VI:
"Seu dia de trabalho começava às 6 horas da manhã. Quase sempre vestia
um velho casaco sujo, puído, de grandes bolsos. Só em ocasiões especiais
trocava o paletó pela farda vermelha com as condecorações. Depois das
orações matinais, D. João quebrava o jejum com frangos e torradas.
Então, guardava no bolso alguns pedaços de frango que comia enquanto
concedia audiências aos fidalgos mais íntimos e ao pessoal da
administração" (Grandes Personagens da Nossa História, Abril Cultural,
S. Paulo, 1972, vol. II, p. 281).
É espantoso que dislates desses sejam postos ao alcance de qualquer leitor!
Os depoimentos isentos de estrangeiros que privaram nessa fase com D.
João VI vão em sentido diametralmente oposto. Vejam-se, por exemplo,
para citar apenas umas poucas fontes insuspeitas, o livro "O Rio de
Janeiro visto por dois prussianos em 1819", de Theodor von Leithold e
Ludwig von Rango (Cia. Editora Nacional, Série Brasiliana n° 328, São
Paulo, 1966, tradução de Joaquim de Sousa Leão Filho) e o relato "A
vinda da Família Real portuguesa para o Brasil", publicado inicialmente
em inglês, em 1810, pelo oficial irlandês Thomas O'Neill, e cuja
tradução acaba de ser lançada no Brasil pela Editora José Olympio.
Na realidade, D. João VI, talvez não tenha sido um homem excepcionalmente brilhante, mas foi um monarca que soube condignamente, e
até exemplarmente, desempenhar seu papel histórico. Uma das grandes
vantagens da monarquia é que não requer necessariamente homens
brilhantes, pois tal é a força da instituição e da continuidade que,
como nota Marie-Madeleine Martin em "Le Roi de France, ou Les grandes
journées qui ont fait la Monarchie", até mesmo monarcas medianos cumprem
suas funções históricas de modo admirável.
Mas D. João VI não
era apenas mediano. Ele estava muito acima da média e conseguiu, numa
fase muito difícil da História luso-brasileira, resultados excelentes.
Entre outros, fizeram justiça a D. João VI historiadores sérios e
conceituados como Oliveira Lima, Pandiá Calógeras e Hélio Vianna.
Na realidade, D. João, Príncipe-Regente e depois Rei, soube transformar
em apenas 13 anos um Brasil vice-Reino, que encontrou provinciano e
acanhado em 1808, num Reino-Unido a Portugal, estuante de vitalidade e
de virtualidades que até hoje, decorridos dois séculos, ainda não foram
suficientemente exploradas e ainda estão muito longe de se esgotar. Mais
do que isso, soube prever a separação do Brasil de sua antiga Metrópole
-- intencionalmente não falo de independência, uma vez que o Brasil
desde 1815, quando foi elevado à condição de Reino Unido a Portugal e
aos Algarves, já não era dependente de Portugal à maneira de uma colónia
ou mesmo de uma província.
D. João VI sentiu que essa separação
era inevitável, sentiu que as circunstâncias a estavam tornando
iminente. Soube prepará-la da melhor forma possível, deixando seu filho
como nosso primeiro Imperador. Conta-se que, ao partir para Lisboa, em
1821 -- aliás, a contragosto, pois pretendia ficar mais tempo no Rio de
Janeiro, consolidando sua imensa obra de criação de um império -- teria
dito ao filho: "Pedro, apanha essa coroa e põe-na sobre tua cabeça antes
que algum aventureiro lance mão dela".
O aguerrido e impetuoso
Pedro I seguiu à risca o conselho paterno. Sem a permanência da dinastia
brigantina no Brasil, teríamos tido o mesmo destino da América
espanhola: ter-nos-íamos fragmentado numa série de repúblicas e
republiquetas, dominadas por caudilhos e aventureiros.
Do nosso correspondente
Armando Alexandre dos Santos (*)
Armando Alexandre dos Santos (*)
(*) Historiador, jornalista profissional e escritor, director de publicações do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: aasantos@uol.com.br
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