Desde
há séculos que os vários povos e nações têm necessidade de evocar a sua
memória colectiva através de cerimónias carregadas de simbolismo, para
assinalarem factos marcantes do seu devir histórico e de um sentir e
agir comuns.
Numa
Nação independente como Portugal, oito vezes secular, a evocação de
momentos únicos da nossa História deve ter como objectivo essencial
servir de referência para o despertar da memória colectiva do nosso
povo, reafirmar a nossa identidade nacional no presente, e perspectivar o
destino futuro de Portugal no concerto das Nações.
5
de Outubro de 1143 - Completam-se hoje 867 anos sobre a fundação do
Reino de Portugal que, formalmente, se tornou um Estado independente
através do Tratado de Zamora. Em 5 de Outubro de 1143, Afonso VII de
Leão e Castela assinava a independência de Portugal na presença do
Legado Pontifício, Guido de Vico, reconhecendo D. Afonso Henriques como
Rei.
É
com um sentimento de profunda reprovação que constatamos que o Estado
Português, no dia 5 de Outubro, não comemora a data que assinala o
momento fundacional de Portugal como Nação, ou seja o dia em que foi
reconhecida a soberania portuguesa e quando o título de “rex” usado por
Dom Afonso Henriques desde 1140 foi confirmado pelo Tratado de Zamora.
Em
vez disso, as autoridades oficiais limitam-se a comemorar com pompa e
circunstância um facto da história ocorrido há cem anos que, em nossa
opinião, veio dividir os portugueses, lançando o povo em lutas
fratricidas que perduraram durante cerca de 16 anos, de 1910 a 1926, em
resultado da acção nefasta e persecutória do Partido Republicano
Português.
Em
nossa opinião, a forma como o Estado português está a assinalar os cem
anos da implantação da República é, no mínimo, redutora e distancia-se
em certa medida daquilo que foi a realidade dos factos.
Nos
meios de comunicação social e nomeadamente na RTP, a televisão oficial
do Estado, procura transmitir-se aos portugueses em programas
comemorativos do Centenário uma visão mitificada da 1ª República, como
tendo sido o advento de uma nova era de democracia, paz e progresso,
visão algo distorcida daquilo que foi a realidade dos acontecimentos e
que facilmente podemos comprovar através da leitura de inúmeros estudos
especializados que têm sido publicados nos últimos anos acerca desta
matéria.
Ao
consultar o programa oficial das comemorações do Centenário da
República, apercebemo-nos de imediato que o que está a ser comemorado e
exaltado neste centenário é o período da 1ª República, visto não se
fazer qualquer alusão pormenorizada ao período que decorreu entre 1926 e
1974, ou seja, período durante o qual vigoraram a Ditadura Militar e o
Estado Novo ou 2ª República.
De
resto, a referência a este período do século XX, foi hábil e
propositadamente omitida dos discursos proferidos no dia 31 de Janeiro
no Porto, tanto pelo Comissário para as Comemorações do Centenário, Dr.
Artur Santos Silva, como pelo Primeiro-Ministro, e também pelo
Presidente da República.
Através
desta omissão, alguns dirigentes e responsáveis políticos estão, de
certo modo, a truncar e a ocultar um período de quase meio século da
história da República, talvez por conveniência ou estratégia política.
Num
Estado de Direito democrático moderno como o Estado português, não é
aceitável que, por motivações ideológicas, se omita de forma deliberada
um longo período de quase meio século do Regime Republicano e que
correspondeu à 2ª República ou Estado Novo Corporativista.
Para
melhor interpretarmos o significado político, e sobretudo ideológico,
dos acontecimentos de 5 de Outubro de 1910 e as suas consequências
imediatas, analisemos, ainda de que de forma breve, os antecedentes
próximos e remotos da implantação da República.
Antes
de mais, importa referir um facto pleno de simbolismo, ocorrido dois
anos antes da implantação da República. Refiro-me aos tiros que a 1 de
Fevereiro de 1908 atingiram mortalmente El-Rei Dom Carlos e o Príncipe
Real Dom Luís Filipe.
Os
tiros dos regicidas atingiram também a História de Portugal, pois os
mentores do Regicídio pretendiam transmitir de forma violenta e
simbólica a toda a sociedade a ideia de que a Monarquia multissecular
estava prestes a ser derrubada.
Com
efeito, o Regicídio de 1908 foi consequência do fanatismo ideológico
alimentado pela utopia igualitária de que toda e qualquer forma de
hierarquia social é geradora de infelicidade nas relações sociais.
Segundo a concepção evolucionista da História, tornava-se necessário abolir da ordem social instituída, todas as monarquias.
A
utopia igualitária era o resultado directo da disseminação dos ideais
da Revolução Francesa de 1789, tendo registado muitos avanços e
retrocessos um pouco por todo o continente europeu ao longo do séc. XIX,
até que em finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, os herdeiros
ideológicos dos revolucionários de 1789 passaram a considerar a
necessidade de dar um passo mais radical na sua forma de actuação, com
vista à imposição de uma nova concepção de sociedade.
Assim,
a violência passava a ser defendida, entre alguns sectores políticos e
em círculos intelectuais liberais, um pouco por toda a Europa, como
forma legítima de se alcançar uma nova organização social.
Ou
seja, o modo violento de actuação passava a ser usado como um meio para
atingir objectivos políticos e ideológicos. A inspiração para esta nova
forma de actuação tinha as suas raízes na concepção da Revolução como
“missão” idealizada pelo conspirador da Carbonária, Giuseppe Mazzini, “que ele propunha como meta às novas gerações de conspiradores.”1
Foi
neste contexto ideológico que a Europa dos inícios do séc. XX assistiu,
num período de cerca de duas décadas, a uma série de violentos
atentados contra membros de Casas Reais.
Isabel
da Baviera, Imperatriz da Áustria, a célebre Sissi, era brutalmente
assassinada por um anarquista em Genebra a 10 de Setembro de 1898.
Em
Espanha, no dia 31 de Maio de 1906, o Rei Alfonso XIII escapou ileso a
um atentando à bomba perpetrado por um anarquista, no dia do seu
casamento com a neta da Rainha Vitória, a Princesa Vitória Eugénia de
Batenberg, quando o cortejo real regressava ao Palácio.
A
28 de Junho de 1914 o Arquiduque Francisco Ferdinando de Habsburgo era
alvo de um atentado fatal em Sarajevo, facto que desencadeou a Primeira
Guerra Mundial.
Na Rússia comunista, a Família Imperial foi barbaramente executada a 17 de Julho de 1918, por ordem dos dirigentes bolcheviques.
Em Portugal, o furor revolucionário teve o seu auge com o Regicídio a que nos referimos anteriormente.
Persuadidos
de que as suas ideias revolucionárias de uso da violência como forma de
atingir o poder eram necessárias para derrubar a Monarquia, vários
membros do Partido Republicano, entre eles Afonso Costa e António José
de Almeida, fazem a apologia declarada da violência como o atesta O
Mundo, órgão oficioso da corrente ideológica jacobina, onde se podia
ler: “
‘partidos como o republicano precisam de violência’, porque sem
violência e ‘uma perseguição acintosa e clamorosa’ não se cria ‘o
ambiente indispensável à conquista do poder’.” 2
A
versão oficial sobre a Revolução de 5 de Outubro de 1910 que é ensinada
actualmente nas escolas portuguesas, transmite de uma forma redutora
apenas algumas facetas da 1ª República. Ou seja, por um lado
propagandeiam-se à exaustão os propósitos idealistas dos mentores da
República, como sejam a questão do sufrágio universal, a liberdade de
imprensa, o mito da educação republicana, reformas cuja aplicação era
aguardada com expectativa por alguns sectores da sociedade, sobretudo
entre os intelectuais de alguns centros urbanos. Mas, por outro,
omitem-se deliberadamente os aspectos mais sombrios dos factos que
ocorreram nos meses e anos subsequentes à implantação da República, como
o atesta o seguinte trecho: “No
dia 8 de Outubro, três dias depois da vitória, o Governo Provisório
ordenava uma aplicação integral da legislação do marquês de Pombal e de
Joaquim António de Aguiar sobre associações religiosas e conventos, e
revogava o decreto de 18 de Abril de 1901, de Hintze Ribeiro que
autorizava a constituição de associações religiosas em Portugal quando
elas pretextassem dedicar-se à instrução, à beneficência, à propagação
da fé e da civilização, e desde que apresentassem os seus estatutos ao
Governo num prazo de seis meses.” 3
Na
tese de Doutoramento apresentada pelo Pe. João Seabra em 2008 na
Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Urbaniana, cujo tema era
A Lei de Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de 1911, pode
ler-se também: “
A 22 de Outubro, Afonso Costa e António José de Almeida publicam uma
portaria conjunta exigindo de todos os funcionários dependentes dos seus
ministérios a rigorosa observação do art. 137.º do Código Penal:
trata-se de uma chamada de atenção para que se vigiem os padres, os
sermões, os artigos que publicam nos seus jornais; se disserem alguma
coisa, o que quer que seja, contra a República, devem ser presos. ” 4
E
o que dizer dos assaltos e do fecho dos jornais monárquicos, prática
comum entre 1910 e Maio de 1911, e depois disso dos jornais católicos,
das prisões dos seus directores e colaboradores e da expulsão dos mesmos
das suas cidades e nalguns casos do próprio país?
Relativamente ao sufrágio universal é bom recordar que a legislação republicana chegou ao ponto de negar o voto às mulheres.
Enfim,
com avanços e retrocessos ao longo de 16 anos, mas actuando sempre de
acordo com uma lógica revolucionária a 1ª República teve 45 Governos e 8
Presidentes.
A
propósito da pretensa prática democrática do Regime Republicano, cumpre
citar algumas palavras do Prof. Rui Ramos, um dos mais prestigiados
historiadores e especialista na história política portuguesa do fim das
guerras liberais à consolidação do Estado Novo, na comunicação
intitulada Foi a Primeira República um regime liberal? apresentada em 2002 no Seminário Internacional Elites e Poder: a crise do Sistema Liberal em Portugal e em Espanha: “
A crise da República não foi a de um sistema liberal, mas precisamente a
crise de um sistema que não era liberal em dois sentidos históricos
precisos: não era liberal em relação ao passado da monarquia liberal
portuguesa, nem foi liberal (ou democrático) em relação às democracias
liberais europeias do pós-guerra. O regime republicano era um regime
revolucionário, entendendo-se por tal a dependência do poder em relação,
não a um quadro legal, mas a um movimento revolucionário que se
comportava como o factor de um golpe de estado permanente.”5
Em
resumo, os mentores da Primeira República que contestavam energicamente
a forma de organização do Estado corporizada pela Monarquia Liberal,
acabaram, eles próprios, por transformar toda a estrutura do Estado ao
ponto de controlarem todo o corpo social e de tentarem transformar os
usos e costumes da sociedade portuguesa com base em preconceitos
ideológicos.
Não
nos parece pois que haja grandes razões para justificar a comemoração
com pompa e circunstância de uma data, símbolo de um regime que, desde o
seu início, se caracterizou pela lógica do uso da violência e pelas
perseguições políticas e religiosas e que dividiu a sociedade
portuguesa.
Cem
anos após a implantação da República, importa sobretudo considerar o
momento que Portugal atravessa, atingido por uma gravíssima crise
política, económica e social e em que a situação do enorme descontrolo
das contas públicas resultante da incúria socialista pode estar a
conduzir o país para uma situação de pré-bancarrota, segundo a opinião
de vários analistas.
A
par dessa grave crise económica e social, muitos portugueses vão-se
apercebendo que estes últimos anos de governação têm sido caracterizados
por uma prática política reveladora de uma tentativa de condicionamento
das diversas esferas da sociedade.
Recordamos
as interferências do Governo em órgãos de comunicação social, públicos e
privados; a politização dos serviços de informação e a sua dependência
directa da Presidência do Conselho de Ministros; o crescente aumento da
carga fiscal, lesando gravemente a iniciativa e a propriedade privadas e
constituindo um entrave ao crescimento económico do País; a prepotência
das medidas que fizeram retirar os crucifixos dos estabelecimentos de
ensino oficial e que agora pretendem proibir a atribuição de nomes de
santos a tais estabelecimentos; a imposição de absurdas limitações à
assistência religiosa dos capelães nos hospitais; a imposição da
educação sexual nas escolas, a tentativa de modificação do código
deontológico dos médicos; o intervencionismo estatal com que o Governo
impôs o controlo de uma das mais importantes instituições financeiras do
País.
Ou seja, a omnipresença do Estado é cada vez maior, tanto na esfera económica, como na da vida privada de todos os portugueses.
Cem
anos após a implantação da 1ª República e após 36 anos de vigência da
3ª República, é frequente ouvir algumas vozes oficiais afirmarem que a
questão do Regime está resolvida e que estamos bem com a actual
República.
Recordamos,
no entanto, que cem anos após a implantação do regime republicano,
existe uma disposição na actual Constituição da República Portuguesa, a
alínea b) do artigo 288, segundo a qual é vedada a liberdade ao povo
português, a nosso ver de forma totalmente antidemocrática, de decidir o
seu destino pacificamente, através de um referendo ou de uma transição
constitucional.
Seria
oportuno que, durante a próxima Revisão Constitucional que deverá ter
lugar durante a actual Legislatura, os deputados à Assembleia da
República, numa atitude verdadeiramente democrática, discutissem a
questão da eliminação da referida disposição Constitucional, não
persistindo assim em negar ao povo Português o direito de poder optar
livre e democraticamente sobre a forma de regime.
1 ROBERTO DE MATTEI, Pio IX, Livraria Civilização Editora, (Porto, 2000), p. 38
2 PULIDO VALENTE, Vasco, O Poder e o Povo, Alêtheia Editores, (Lisboa, 2010), p. 14
3 MADUREIRA, Arnaldo, A QUESTÃO RELIGIOSA NA I REPÚBLICA, Contribuições para uma autópsia, Livros Horizonte, (Lisboa, 2003), p. 7
4 SEABRA, João, O Estado e a Igreja em Portugal no Início do Século XX, a Lei da Separação de 1911, Principia, (Lisboa, 2009), p. 59
5 RUI RAMOS, Foi a Primeira República um Regime Liberal, in Elites e Poder, A crise do Sistema Liberalem Portugal e Espanha (1918-1931), Edições Colibri e CUDEHUS-EU, (2004), p. 244
Fonte: Crónicas da Universidade
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