O Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908, ocorrido na Praça do Comércio, na época (mais conhecida por Terreiro do Paço), em Lisboa, marcou profundamente a História de Portugal, uma vez que dele resultou a morte do Rei D. Carlos e do seu filho e herdeiro, o Príncipe Real D. Luís Filipe e uma nova escalada de violência na vida pública do País.
Antecedentes
O atentado foi uma consequência do clima de crescente tensão que
perturbava o aspecto politico português. Dois factores foram
primordiais: em primeiro lugar o caminho traçado desde cedo pelo Partido Republicano Português
como solução para a erosão do sistema partidário vigente, e em segundo
lugar a tentativa, por parte do rei D. Carlos como árbitro do sistema
político, papel que lhe era atribuído pela Constituição, de solucionar os problemas desse mesmo sistema, apoiando o Partido Regenerador Liberal de João Franco
(que viria a instaurar uma ditadura). Desde a sua fundação que o
objectivo primário do Partido Republicano era o da simples substituição
do regime. Esta atitude teve a sua quota parte de responsabilidade no
crime, mas os ânimos foram acirrados pelo estabelecimento de uma
ditadura administrativa, por parte de João Franco, com o apoio do rei,
em 1907.
O progressivo desgaste do sistema político português, vigente desde a Regeneração, em parte devido à erosão política originada pela alternância de dois partidos no Poder: o Progressista e o Regenerador,
agravou-se nos primeiros anos do Século XX com o surgimento de novos
partidos, saídos directamente daqueles. Em 1901 João Franco, apoiado por
25 deputados abandonou o Partido Regenerador, criando o Partido Regenerador Liberal. Em 1905 surge a da Dissidência Progressista, fundado por José Maria de Alpoim,
que entrou em ruptura com o partido Progressista, do qual se separou
com mais seis deputados eleitos pelo mesmo partido. À intensa rivalidade
entre os partidos, agravada por ódios pessoais, juntou-se a atitude e
acções críticas do Partido Republicano, contribuindo para o descrédito
do regime, já de si bastante desacreditado devido às dividas da Casa
Real.
Era esta a conjuntura quando D. Carlos se decidiu, finalmente, a ter
uma intervenção activa no jogo político, escolhendo a personalidade de
João Franco para a concretização do sempre falhado programa de vida nova.
Este, dissidente do Partido Regenerador, solicitou ao Rei o
encerramento do Parlamento para poder implementar uma série de medidas
com vista à moralização da vida política. Tal pedido já havia sido antes
feito ao monarca pelos líderes dos dois partidos tradicionais, mas este
sempre recusara, atendendo ao princípio que o rei reina, mas não
governa. Agora, no entanto, D. Carlos achou chegado o momento de
intervir, depositando a sua confiança no homem que julgava à altura e
encerrou o parlamento.
É evidente que o novo governo não podia ser bem recebido pelos que
dele não beneficiariam, pelo que se acirrou toda a oposição, desde os
partidos monárquicos aos republicanos. Estes, aos quais um renovar do
sistema politico monárquico retiraria protagonismo, ou mesmo razão de
ser, vão assumir uma atitude maquiavélica: Como então dizia Brito
Camacho, relativamente a João Franco, “havemos de obrigá-lo a
transigências que rebaixam ou às violências que comprometem”. Foram
eficazes os ataques pessoais, tanto a D. Carlos como a João Franco,
tanto da parte daqueles, como dos dissidentes progressistas, com os
quais se entenderam. Vão aproveitar a questão dos adiantamentos, logo em Novembro de 1906, visando principalmente um ataque à figura do monarca. Mobilizam-se particularmente com a questão da greve académica de 1907. O regicídio foi uma mera consequência indirecta dessa estratégia.[1]
Já marcadas novas eleições, e prevendo-se um resultado favorável ao
partido no poder, como era costume, decidiram-se os republicanos e os
dissidentes pela força, estes apoiaram indirecta ou directamente
organizações secretas como a Carbonária ou a Maçonaria. Esta tentativa
de golpe de estado fracassa, devido à inconfidência de um conspirador. A
28 de Janeiro de 1908 são presos vários líderes republicanos, naquele
que ficou conhecido como o Golpe do Elevador da Biblioteca. Afonso Costa e o Visconde de Ribeira Brava
são apanhados de armas na mão no dito elevador, conjuntamente com
outros conspiradores, quando tentavam chegar à Câmara Municipal. António José de Almeida, o dirigente Carbonário Luz Almeida, o jornalista João Chagas, João Pinto dos Santos, e Álvaro Poppe
contavam-se entre os noventa e três conspiradores presos. José Maria de
Alpoim consegue fugir para Espanha. Alguns grupos de civis armados,
desconhecedores do falhanço, ainda fizeram tumultos pela cidade.
Em resposta a este golpe, e como reflexo de um endurecer de postura por parte do regime, até aí dominado por um fair play que permitia aos republicanos intervenções livres, o governo apresenta ao rei o Decreto de 30 de Janeiro de 1908.
Este previa o exílio para o estrangeiro ou a expulsão sumária para as
colónias dos envolvidos no atentado, e tem sido durante muito tempo
considerado como a principal causa para o regicídio. Conta-se que, ao
assiná-lo, o rei declarou: ”Assino a minha sentença de morte, mas os
senhores assim o quiseram.” É de notar, no entanto, que o decreto,
assinado a 30 de Janeiro, só foi publicado a 1 de Fevereiro, e os
preparativos para o atentado datam com certeza de antes dessa data:
atente-se ao testamento feito pelo regicida Buíça, datado de 28 de
Janeiro.
O Atentado
O Rei, a Rainha e o Príncipe Real encontravam-se então em Vila Viçosa, no Alentejo, onde costumavam passar uma temporada de caça no inverno. O infante D. Manuel
havia regressado dias antes, por causa dos seus estudos como aspirante
na marinha. Os acontecimentos acima descritos levaram D. Carlos a
antecipar o regresso a Lisboa, tomando o comboio, na estação de Vila
Viçosa, na manhã do dia 1 de Fevereiro. Com cuidado para que a sua já
preocupada mãe não se aperceba, o Príncipe real arma-se com o seu
revólver de oficial do exército. Durante o caminho o comboio sofre um
ligeiro descarrilamento junto ao nó ferroviário de Casa Branca. Isto
provocou um atraso de quase uma hora. A comitiva régia chegou ao
Barreiro ao final da tarde, onde tomou o vapor “D. Luís”, com destino ao
Terreiro do Paço,
em Lisboa, onde desembarcaram, na Estação Fluvial Sul e Sueste, por
volta das 5 horas da tarde, onde eram esperados por vários membros do
governo, incluindo João Franco, além dos infantes D. Manuel e D. Afonso,
o irmão do rei. Apesar do clima de grande tensão, o monarca optou por
seguir em carruagem aberta, envergando o uniforme de Generalíssimo, para
demonstrar normalidade. A escolta resumia-se aos batedores protocolares
e a um oficial a cavalo, Francisco Figueira Freire, ao lado da
carruagem do rei.
Há pouca gente no Terreiro do Paço. Quando a carruagem circula junto
ao lado ocidental da praça ouve-se um tiro e desencadeia-se o tiroteio.
Um homem de barbas, passada a carruagem, dirige-se para o meio da rua,
leva à cara a carabina que tinha escondida sob a sua capa, põe o joelho
no chão e faz pontaria. O tiro atravessou o pescoço do Rei, matando-o
imediatamente. Começa a fuzilaria: outros atiradores, em diversos pontos
da praça, atiram sobre a carruagem, que fica crivada de balas.
Os populares desatam a correr em pânico. O condutor, Bento Caparica, é
atingido numa mão. Com uma precisão e um sangue frio mortais, o
primeiro atirador, mais tarde identificado como Manuel Buíça,
professor primário expulso do Exército, volta a disparar. O seu segundo
tiro vara o ombro do rei, cujo corpo descai para a direita, ficando de
costas para o lado esquerdo da carruagem. Aproveitando isto, surge a
correr de debaixo das arcadas um segundo regicida, Alfredo Costa,
empregado do comércio e editor de obras de escândalo, que pondo o pé
sobre o estribo da carruagem, se ergue à altura dos passageiros e
dispara sobre o rei já tombado.
A rainha,
já de pé, fustiga-o com a única arma de que dispunha: um ramo de
flores, gritando “Infames! Infames!” O criminoso volta-se para o
príncipe D. Luís Filipe, que se levanta e saca do revólver do bolso do
sobretudo, mas é atingido no peito. A bala, de pequeno calibre, não
penetra o esterno (segundo outros relatos, atravessa-lhe um pulmão, mas
não era uma ferida mortal) e o Príncipe, sem hesitar, aproveitando
porventura a distracção fornecida pela actuação inesperada da rainha sua
mãe, desfecha quatro tiros rápidos sobre o atacante, que tomba da
carruagem. Mas ao levantar-se D. Luís Filipe fica na linha de tiro e o
assassino da carabina atira a matar: uma bala de grosso calibre atinge-o
na face esquerda, saindo pela nuca. D. Manuel vê o seu irmão já tombado
e tenta estancar-lhe o sangue com um lenço, que logo fica ensopado.
A fuzilaria continua. Dª Amélia permanece de pé, gritando por ajuda.
Buíça volta a fazer pontaria (sobre o infante? sobre a rainha?) mas é
impedido de disparar sobre a carruagem pela intervenção de Henrique da
Silva Valente, simples soldado de Infantaria 12, que passava no local, e
que se lança sobre ele de mãos nuas. Na breve luta que se segue o
soldado é atingido numa perna, mas a sua intervenção é providencial.
Tendo voltado o seu cavalo, o oficial Francisco Figueira carrega
primeiro sobre o Costa, que ferido pelo príncipe é atingido por um golpe
de sabre e preso pela polícia, e de seguida dirige-se a Buíça. Este
ainda o consegue atingir numa perna com a sua última bala e tenta fugir,
mas Figueira alcança-o e imobiliza-o com uma estocada.
Com os regicidas imobilizados, o zelo excessivo dos polícias
presentes levou a que acabassem abatidos no local, o que dificultou as
posteriores investigações sobre o atentado. Segundo alguns relatos,
Alfredo Costa já estaria moribundo, mas sabe-se que Manuel Buíça, mesmo
ferido, resistiu à sua apreensão pela polícia. Também vítima da polícia
foi um transeunte inocente, Sabino Costa, empregado de ourivesaria e
monárquico, provavelmente confundido com outro regicida oculto na
multidão. De facto, o condutor, a golpes de chicote, fez arrancar a
carruagem, virando a esquina para a rua do Arsenal, procurando aí
refúgio. É nessa altura que um atirador desconhecido ainda consegue
atingir D. Manuel num braço (segundo outras versões, o tiro de raspão
atingiu-o ainda antes de a carruagem virar para a rua do Arsenal, mas
esse tiro já não podia partir dos dois regicidas mencionados, já a
braços com a polícia). A carruagem entra no Arsenal da Marinha,
onde se verifica o óbito do Rei e o do Herdeiro do Trono. Quando o
Infante D. Afonso, que havia começado a correr desde o seu carro no fim
do cortejo, chegou ao Arsenal, teve como primeiro instinto acusar João
Franco como responsável pela tragédia. A mãe de D. Carlos, a rainha Dª Maria Pia
foi chamada ao Arsenal, onde encontrando-se com Dª Amélia lhe diz
desolada: “Mataram-me o meu filho.”, ao que esta respondeu: “E o meu
também.”
Julgando que se tratava de um novo golpe de estado, a população de
Lisboa refugia-se nas suas casas e a cidade fica deserta. Mas as tropas
permanecem nos quartéis e a situação permanece calma: o atentado não foi
um sinal para o golpe, que já havia sido frustrado, antes o acto de
quem ainda tinha armas na mão, porventura influenciados pela repressão
que se previa da parte do governo. À noite as rainhas e o novo rei foram
escoltados para o palácio das Necessidades,
pois temia-se novo atentado. Depois veio a tarefa macabra de levar os
corpos para o palácio, o que foi feito sentando-os em duas carruagens,
como se fossem vivos, a cabeça de D. Luís Filipe tombando sobre o ombro
do seu tio, o infante D. Afonso, agora o novo Príncipe Real. Não foram
efectuadas autópsias, sendo os corpos embalsamados sob a supervisão do
médico da Casa Real, D. Thomaz de Mello Breyner, tarefa penosa não só pela proximidade ás vitimas como também pelo estrago feito pelas balas.
As consequências imediatas
A Europa
ficou revoltada com este atentado, uma vez que D. Carlos era estimado
pelos restantes chefes de estado europeus, e ainda mais pelo facto de
não se ter tratado de um acto isolado, mas sim uma organização metódica.
Jornais de todo o mundo publicam imagens do atentado, baseadas nas
descrições, com elementos mais ou menos fantasiosos, mas sendo sempre
presente a imagem de Dª Amélia, de pé, indiferente ao perigo, fustigando
os assassinos com um frágil ramo de flores. Em Londres, os jornais
exibiam fotos das campas dos regicidas, cobertas de flores, com a
legenda “Lisbon’s shame!”.[2]
É preciso não esquecer, para além do próprio carácter do acto, que se
tratava de uma Europa à altura maioritariamente monárquica. No entanto,
no próprio país, a reacção não foi a esperada, valendo do rei de
Inglaterra, Eduardo VII, amigo de D. Carlos e do Príncipe D. Luis Filipe, a frase: “Matam dois cavaleiros da Ordem da Jarreteira na rua como cães e lá no país deles ninguém se importa!”
Após o atentado, pediu a demissão o Governo de João Franco, que não
impedira a morte do Rei. De facto, à imprevidência do chefe de governo
cabe a maior parte das responsabilidades pela falta de uma escolta
adequada, ainda mais tendo em conta o contexto de um golpe falhado,
quando civis armados ainda andariam pela cidade. João Franco sabia-se
alvo de atentados planeados, mas nunca desconfiou que o ódio visava
também o rei. Presidindo ao conselho de estado, na tarde de dia 2, com o
braço ao peito e envergando o seu uniforme de aspirante da marinha,
o novo rei D. Manuel II confessou a sua inexperiência e falta de
preparação e pediu orientação ao conselho. Este votou a demissão de João
Franco e a formação de um governo de coligação, a que se chamou o
Governo “de Acalmação”, presidido pelo independente contra-almirante Ferreira do Amaral.
Este ministério incluía membros dos partidos Regenerador e Progressista
além de independentes, e visava fazer o país voltar à normalidade
parlamentar, acabando-se o governo em ditadura. De facto abandonou-se
completamente a posição de força seguida por D. Carlos e pelo seu último
ministério: anularam-se as medidas ditatoriais anteriormente
publicadas, soltaram-se os presos politicos, amnistiaram-se os
marinheiros que se haviam revoltado em 1906, e consentiu-se que se
fizessem comícios republicanos em que se fazia a apologia do atentado e
se considerava os assassinos como beneméritos da Pátria. Outro facto
permitido foi a romagem de cerca de vinte e duas mil pessoas às
sepulturas dos regicidas. O evento fora organizado pela Associação do
Registo Civil, que fornecia as flores e dava além de 500 réis a cada
pessoa, 200 réis a cada criança que aparecesse junto das campas[3].
Esteve presente na reunião do Conselho de Estado que votou estas decisões, e do qual fazia parte, o Marquês de Soveral,
embaixador de Portugal em Inglaterra, e que por acaso se encontrava em
Portugal à altura. Próximo da família real, também votou pela demissão
de João Franco e pelo estabelecimento do Governo de Acalmação. Quando,
pouco tempo depois, reassumiu as suas funções de embaixador e se
encontrou com o rei da Grã-Bretanha, Eduardo VII, também este seu amigo
pessoal, o monarca britânico brindou-o com as palavras: “Então que raio
de país é esse, em que se mata um rei e um príncipe e a primeira coisa
que se faz é demitir o ministério? A revolução triunfou, não é verdade?”
”Foi só então”, diria mais tarde o marquês de Soveral “que compreendi o
erro que tinhamos cometido.”[4]
De facto, ao demitir-se o ministério o regime deu aos republicanos o
argumento de que só eles é que tinham acabado com a ditadura. Depois da
hesitação inicial, em que se chegou a propor um pacto de colaboração com
o regime, cedo voltaram à carga, decidindo em congresso o derrube pela
força do regime: Congresso de Setúbal, 24 a 25 de Abril de 1909 [5].
Esta hesitação deveu-se aos próprios conceitos do partido. Aos
republicanos mais distintos, alguns dos quais ficaram verdadeiramente
chocados pelo crime, o regicídio não interessava a menos que fosse
acompanhado pelo triunfar da revolução. Temiam a reacção do povo rural
mais conservador, e estavam cientes do desagrado da Inglaterra para com
qualquer atentado à pessoa física do rei. No entanto, não podiam virar
as costas aos seus apoiantes, o povo miúdo da cidade de Lisboa, já
exacerbado pela propaganda republicana no seu ódio ao regime. Condenavam
o acto, mas como se fosse por obrigação enquanto piscavam o olho ao
povo que lhes enchia os comícios e se filiava no partido. Foi isto, mais
o idolatrar dos regicidas e o recurso à violência depois da Proclamação
da República, que fez incidir sobre o partido as suspeitas posteriores
da autoria do crime. Independentemente da questão de autoria moral, o
certo é que, face à fraca reacção, ou mesmo a falta dela, por parte do
regime, os republicanos organizaram-se nos seus propósitos de o derrubar
pela força, o que viriam a conseguir pela intentona seguinte, a de 5 de Outubro de 1910.
É de notar que por esta altura, e não tendo nem voltado ao expediente
da ditadura, nem evitado as suas costumeiras divisões, os políticos
monárquicos já haviam percebido o seu erro: como consequência deste
último golpe, o governo deu ao rei para assinar um decreto de suspensão
de garantias, para poder lidar firmemente com os agitadores.
Infelizmente para a monarquia, essa acção foi invalidada pela vitória
republicana no golpe. Embora geralmente mal vista devido às associações
negativas com o termo ‘ditadura’,
o governo de João Franco, ou um outro do género, apresenta-se em
retrospectiva como a única solução prática para a situação que tentou
solucionar: basta lembrar que a Primeira República
mostrou-se ainda mais ingovernável, e as únicas acções reformistas
efectivamente levadas a cabo pelo novo regime tiveram lugar durante a
vigência do Governo Provisório, que governou, efectivamente, em ditadura.
O Processo
Lançou-se um rigoroso inquérito aos acontecimentos, primeiro presidido pelos juízes Alves Ferreira e depois por José da Silva Monteiro e dr. Almeida de Azevedo que ao longo dos dois anos seguintes veio a apurar que o atentado, fora cometido por membros da Carbonária, que pretendia enfraquecer a Monarquia.
O processo de investigação estava concluído nas vésperas do 5 de
Outubro, e o começo do processo judicial estava marcado para 25 do mesmo
mês. Entretanto, tinham sido descobertos mais suspeitos do assassinato
como Alberto Costa, Aquilino Ribeiro,
Virgílio de Sá, Domingos Fernandes e outros. Alguns dos elementos
estavam refugiados no Brasil e em França, e dois pelo menos foram mortos
pela Carbonária. Todo este esforço acabou por ser em vão: logo a seguir
à Proclamação da República, o Juiz Almeida e Azevedo entregou o referido processo ao Dr. José Barbosa,
membro do Governo provisório que o levou a Afonso Costa, Ministro da
Justiça do Governo Provisório, e depois disso perdeu-se o rasto ao
documento. Sabe-se que D. Manuel II, no exílio, recebeu uma cópia,
facultada por um dos juízes, Almeida de Azevedo, mas essa também
desapareceu em consequência de um roubo à sua residência ocorrido pouco
tempo antes da sua morte, em 1932.
Os Responsáveis
Dos factos conhecidos não se considera geralmente o assassínio do rei
como a execução de qualquer decisão vinda dos republicanos, dos maçons e
da dissidência progressista, enquanto grupos. O que não quer dizer que
os mesmos grupos não tenham a sua quota parte de responsabilidade neste
crime. Admitiram como hipótese eventual esta consequência e não se
importaram que esta se concretizasse. Isto porque se os regicidas
actuaram por sua própria iniciativa, apenas se encontraram nessa posição
pela iniciativa daqueles que os mobilizaram e armaram para outros fins.
Certo é que os dois abatidos no local não eram nem os únicos aí
presentes, nem os únicos implicados, como se fez crer na altura. Estudos
recentes vieram trazer luz sobre os responsáveis e a sua motivação,
embora muito ainda esteja envolto em dúvida. Quatro autores são a base
principal sobre os factos que se apuraram: Raul Brandão, António de Albuquerque, Aquilino Ribeiro
e José Maria Nunes. Destes, os dois primeiros não estavam envolvidos no
atentado, tendo recolhido depoimentos de terceiros. Raul Brandão falou
com várias pessoas próximas à trama, e extraiu do líder dos dissidentes,
José Maria Alpoim, a confissão: “Só há duas pessoas em Portugal que
sabem tudo, eu e outra(…) Só eu e outro sabemos em que casa foi a
reunião, quem a presidiu e quem trocou ao Buíça o revólver pela
carabina.”[6]
António da Albuquerque, que estava exilado em Espanha após a publicação
do seu romance difamatório para a família real “O Marquês da Bacalhoa”,
recebeu o testemunho de Fabrício de Lemos, um dos regicidas presentes
no Terreiro do Paço, e transcreveu-o no seu livro “A execução do Rei
Carlos”.[7]
Aquilino Ribeiro, embora não tenha participado directamente, esteve
envolvido e conhecia o plano e os assassinos, como deixou testemunho na
sua obra “Um escritor confessa-se.”[8]
José Maria Nunes era também um dos regicidas e deixou o seu testemunho,
tendencialmente auto elogioso mas no geral credível, no escrito: “E
para quê?”[9]
Destes quatro testemunhos, só Aquilino é que refere o plano de
emboscar a família real como tendo sido adoptado na ocasião, derivado do
plano de assassinar João Franco, e tomado no local. Do testemunho dos
outros pode-se presumir que o plano teve lugar algures em fins de 1907.
Nesta altura, José Maria Alpoim associa-se à Carbonária o que leva,
consecutiva e complementarmente, a um plano de aquisição de armas, o
plano para um levantamento revolucionário, um plano para assassinar o
primeiro ministro e outro para assassinar o Rei.
Estes planos, segundo o testemunho de José Maria Nunes, teria sido
abordado pela primeira vez em Paris, no Hotel Brébant, no Boulevar
Poissóniere, entre 2 políticos portugueses e alguns revolucionários
franceses. O regicida não nomeia esses políticos, nem nunca se foi capaz
de identificá-los, mas os revolucionários franceses provavelmente
pertenceriam ao movimento anarquista internacional, dado que o
embaixador português em Paris chegou a avisar que se preparava um plano
contra a família real portuguesa vindo desses sectores. Os Dissidentes
foram os principais financiadores, tendo a Carbonária fornecido os
homens. Sabe-se que as armas usadas no regicídio foram levantadas do
armeiro Gonçalo Heitor Freire (republicano e maçon) pelo Visconde da
Ribeira Brava, um dos principais membros dos dissidentes. Aquando do
fracasso da intentona do Elevador da Biblioteca, estas armas, guardadas
nos Armazéns Leal, foram com sucesso transportadas para casa do dito
visconde, onde ficaram escondidas. No rescaldo do fracasso e reacção do
governo, sabe-se que um grupo de 18 homens se reuniu num velho casarão
de Xabregas[10], dia 30 ou 31 (os testemunhos são contraditórios quanto à data precisa) onde se decidiu pelo assassinato da família real.
Pelo depoimento dos dois já citados regicidas sabemos a identidade de
8 dos 18 membros. Destes, todos os 8 ou apenas 5 constituíam o primeiro
grupo, posicionado no Terreiro do Paço: Alfredo Costa, Manuel Buíça,
José Maria Nunes, Fabrício de Lemos, Ximenes, Joaquim Monteiro, Adelino
Marques e Domingos Ribeiro. O segundo grupo tomaria posição em Santos e o
terceiro em Alcântara, cobrindo assim todo o caminho até ao Paço das
Necessidades. Os atacantes não esperavam sobreviver ao atentado: Manuel
Buíça já havia feito o seu testamento e Alfredo Costa fez questão de
pagar uma dívida a um amigo. Mesmo assim, como é sabido, a maior parte
do primeiro grupo conseguiu fugir e esconder-se na multidão, e os outros
grupos não tiveram qualquer intervenção.
Pelo conjunto dos relatos pode-se concluir que o plano para matar o
rei já existia previamente, não de forma independente, mas como parte do
plano geral da revolta. No entanto, existe um factor curioso, provocado
pelo descarrilamento da carruagem real ocorrido durante a viagem para
Lisboa, referido acima. No dia do atentado, pouco depois das 4 da tarde,
a 300 Km da capital, em Pìnzio, perto da Guarda,
dois criados de José Maria Alpoim, regressando de carro depois de terem
transportado o seu patrão para e exílio em Salamanca, ficam sem
gasolina e são forçados a parar. Numa taberna local, e perante várias
testemunhas, afirmam que aquela hora já não havia rei em Portugal, pois
já tinha sido morto[11].
Como poderiam saber? Tal seria verdade se o comboio não tivesse
descarrilado. Até que ponto estava o plano já estruturado antes do golpe
do elevador como plano de recurso e até que ponto estava José Maria
Alpoim envolvido nisso? Estas questões permanecem sem resposta. Embora
os dois regicidas caídos tenham ficado com as maiores responsabilidades
na altura, o envolvimento dos dissidentes não ficou esquecido. Mal grado
a sua auto-promoção depois da implantação da República, não se
conseguiram livrar do efeito negativo que a suspeita de envolvimento no
regicídio lhes transmitiu, e que se nota pela alcunha de Buíssidentes
com que foram apodados. José Maria Alpoim e o visconde da Ribeira Brava
não conseguiram singrar no novo regime. O primeiro nunca passou de
adjunto do procurador e o ex-visconde foi governador civil de Lisboa mas
acabou vítima da “leva da morte” de Outubro de 1918.
Conclusão
Em retrospectiva, o regicídio é geralmente considerado como o fim
efectivo do regime monárquico constitucional, sendo o golpe de 5 de
Outubro de 1910 apenas a sua confirmação. Esta visão é exagerada, e
possivelmente foi alimentada pelos longos anos do Estado Novo, que era
adverso ao parlamentarismo (monárquico ou republicano), que era taxado
como decadente e ineficaz. Embora o acto do Regicídio tenha removido de
cena um estadista de importância que estava em posição de encorajar o
revitalizar do regime, e com ele o seu promissor sucessor, a questão não
ficou de imediato resolvida. O regime monárquico constitucional
continuou a funcionar por mais 33 meses, sofrendo de agitações e
carecendo de reforma, é certo, mas não mais do que anteriormente, e
decerto num grau de agitação muito menor do que a própria Primeira
Republica viria a conhecer. É inegável, no entanto, que a fraca e
permissiva atitude do governo de acalmação funcionou como um forte
incentivo para o Partido Republicano no sentido de tentar outro golpe
pela força. Ainda assim, mais do que decidir, o regicídio adiou a
questão para uma nova oportunidade. Esta viria concerteza para o regime,
no rescaldo de uma nova intentona republicana falhada, mas como se viu,
o golpe seguinte acabou por ser vitorioso, se bem que à justa. A visão
do determinismo do crime, tal como a da inevitabilidade do golpe, pode
ser produto da costumeira propaganda retroactiva com que os novos
regimes, sobretudo os que se impõem pela força, usam para justificar a
sua existência: os vencedores escrevem a História.
Pode-se considerar portanto o regicídio de duas maneiras: ou um
acontecimento natural no percurso decadente do regime monárquico, que
acabaria por cair de qualquer maneira, tendo o atentado apenas apressado
a sua conclusão, ou como o ponto de viragem que impediu a reforma e
sobrevivência desse regime. Neste último caso, então o atentado foi,
para o Partido Republicano embora este não tenha sido por ele
directamente responsável, um passo decisivo. Pode ter sido eficaz, mas
ensanguentou a futura vida da República, produziu novos magnicídios, e em ultima análise abriu a caixa de Pandora da violência como arma política que viria a minar e a condenar o novo regime.
O centenário do regicídio
Para celebrar o centenário do regicídio de 1908:
- Foi publicado um livro chamado “Dossier Regicídio“, onde explica e fala sobre o dossier de investigação e apuramento de responsabilidades do regicídio de 1908, do qual não se conhece os resultados.
- Foi inaugurada pelo Presidente da República, Cavaco Silva, uma estátua do Rei D. Carlos junto e virada para a baía da vila de Cascais, simbolizando, de certa forma, o estudo e o carinho que o Rei tinha pelo mar e pela Natureza, e o carinho pela vila de Cascais.
- De forma simbólica, D. Duarte Pio de Bragança e o seu filho primogénito, Afonso de Bragança, depositam uma coroa de flores junto ao local do regicídio, assinalado por uma placa aí existente. Seguiu-se uma missa em homenagem ao Rei D. Carlos e a D. Luis Filipe, na Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa, onde estão sepultados os seus restos mortais. Foi celebrada pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo.
- A RTP produziu uma série sobre o regicídio chamada “O Dia do Regicídio“, para comemorar o seu centenário.
Referências
- ↑ http://www.iscsp.utl.pt/cepp/governos_portugueses/1900-1910/joao_franco.htm Governo de João Franco (1906) site do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
- ↑ Nobre, Eduardo, 2004, “Duelos & Atentados”, Lisboa, Quimera Editores.
- ↑ Rio Maior, Marquesa de, 1930, “Memórias da Marquesa de Rio Maior”, Lisboa, Parc. A. M. Pereira.
- ↑ Lavradio, 6º Marquês de , 1947, “Memórias do Sexto Marquês de Lavradio”, Coord. Por D. José L. Dalmeida (Lavradio). Lisboa, Edições Ática.
- ↑ Proença, Maria Cândida, 2006, “D. Manuel II”- Colecção “Reis de Portugal”, Lisboa, Círculo de Leitores, pag 100
- ↑ Brandão, Raul, “Memórias” 2ª ed., Porto, Renascença Portuguesa, 1919; Lisboa, Relógio d’Água, 1998. vol II, pág. 153.
- ↑ Albuquerque, António de, 1909, “A execução do Rei Carlos: monarchicos e republicanos” Bruxelas.
- ↑ Ribeiro, Aquilino, 1974, “Um escritor confessa-se” Amadora, Bertrand.
- ↑ Nunes, José, 1918, “E para quê?”, Lisboa, Tipografia Ad. De Mendonça.
- ↑ Baêna, Miguel Sanches de, 1990, “Diário de D. Manuel e estudo sobre o regicídio”, Lisboa, Publicações Alfa.
- ↑ Cabral, António, 1931, “As Minhas Memórias Políticas – O Agonizar da Monarchia”, Lisboa, Liv. Pop. Franc. Franco. pp. 235-336
- Pinto, José Manuel de Castro, 2007, “D. Carlos (1863-1908) A Vida e o Assassinato de um Rei”, Lisboa, Plátano Editora, ISBN 978-972-770-563-4
- Nobre, Eduardo, 2006, “Amélia, Rainha de Portugal”, Lisboa, Quimera Editores, ISBN 972-589-165-1
- Nobre, Eduardo, 2004, “Duelos & Atentados”, Lisboa, Quimera Editores, ISBN 972-589-129-5
- Morais, Jorge, 2007, “Regicídio – A Contagem Decrescente”, Lisboa, Zéfiro, ISBN 978-972-8958-40-4
- Manuel II, D. , “Diário”, 21 de Maio de 1908
Ligações Externas
- Sítio Oficial do Centenário do Regicídio
- História Aberta – O Regicídio (filme)
- Site oficial da série “O dia do Regicídio”
Fonte Wikipédia