Maria
Adelaide de Bragança van Uden, neta do Rei Dom Miguel, será condecorada
na terça-feira com a Ordem de Mérito Civil, num jantar em Lisboa, no
qual celebrará cem anos.
A condecoração será imposta durante o jantar de homenagem à Infanta no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, pelo embaixador Pinto da França, chanceler da Ordem de Mérito.
A infanta Dona Maria Adelaide, que será agraciada com o grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito Civil, integrou a resistência austríaca aos nazis, esteve presa e veio viver para Portugal, onde criou a Fundação Nun’Álvares Pereira para apoio aos carenciados.
Maria Adelaide de Bragança “é um exemplo de vida pela estatura moral", disse à agência Lusa Raquel Ochoa, autora de uma biografia da Infanta editada em Maio passado.
Referindo-se à actividade de Maria Adelaide como resistente aos nazis, na Áustria, Raquel Ochoa considerou que é “um acto heróico, mas quando questionada sobre a questão, Dona Maria Adelaide apenas afirma que foi uma reacção natural com algo com que não concordava. Era-lhe impossível viver num mundo assim”.
“A resistência era como respirar, perante a educação que tinha tido e os ideais que tinha. Não resistir é que era uma violência contra ela mesma. Resistir era um acto natural”, explicou a biógrafa.
Maria Adelaide foi detida pelas tropas nazis, tendo sido salva de fuzilamento in extremis e após várias diligências de António Oliveira Salazar, então Presidente do Conselho de Ministros, que se indignou por terem prendido uma Infanta Portuguesa.
A autora sublinhou que Maria Adelaide de Bragança van Uden “teve outros actos heróicos” e referiu o seu trabalho “como assistente social em prol das populações desfavorecidas” na margem sul do Tejo, desenvolvido de “forma discreta”.
“Ela [Maria Adelaide] percebeu que através da discrição não era notada nem perseguida, além de, por educação, não gosta de fazer alarde do que faz, há zero de gabarolice nesta família, o que é a antítese da sociedade em que vivemos”, disse.
Esta acção social foi feita no âmbito da Fundação Nun'Álvares Pereira que se diluiu após o 25 de Abril de 1974.
Referindo-se à posição da Infanta ao regime que antecedeu a revolução de 1974, Raquel Ochoa afirmou que “reconheceu Salazar como quem pôs em ordem as contas do Estado, mas insurgiu-se sempre contra os métodos usados”.
Na obra, intitulada “D. Maria Adelaide de Bragança. A Infanta Rebelde”, com chancela da Oficina do Livro, Dom Duarte Pio de Bragança refere no prefácio que a Tia é “um exemplo”.
Público, 30 de Janeiro de 2012
Centenário. A vida extraordinária de D. Maria Adelaide de Bragança, princesa de Portugal
Adelaide de Bragança, a última neta viva do rei
D. Miguel, faz hoje 100 anos e vai ser condecorada pelo Presidente da
República. O monárquico João Távora faz o retrato.
Foi há pouco mais de dois anos que num dia soalheiro e húmido de
Novembro, por ocasião de uma entrevista para o boletim da Real
Associação de Lisboa, com alguma emoção tive o privilégio de privar com a
D. Maria Adelaide de Bragança, infanta de Portugal, que hoje completa e
festeja 100 anos de uma extraordinária vida.
Não deixa de ser algo irónico ter sido numa pequena moradia da “outra
banda”, onde fomos tão acolhedoramente recebidos, que nos encontrámos
com uma verdadeira princesa, tão ou mais encantada que as dos romances e
do cinema cor-de-rosa. Afilhada do rei D. Manuel II e da rainha D.
Amélia, por insólita conjugação de duas paternidades muito tardias e da
sua feliz longevidade, a infanta rebelde, como ficou conhecida, é neta, a
última neta viva, do rei D. Miguel, esse mesmo, o do tradicionalismo e
da guerra civil de 1828-1834.
Filha mais nova do duque de Bragança D. Miguel (II) e de Maria Teresa,
princesa de Löwenstein-Wertheim-Rosenberg, D. Maria Adelaide nasceu
ironicamente no dia 31 de Janeiro, em 1912, em St. Jean de Luz, no
exílio a que todos os da sua família estavam sentenciados, tendo
crescido em Seebenstein, na Áustria, em convívio com as mais influentes
famílias europeias, sonhando com o país que não lhe era permitido
conhecer. Vivia distante de Portugal mas era totalmente português o seu
coração. E cresceu com o rigor de orçamentos matemáticos e com o
estoicismo próprio dos exilados numa época histórica especialmente
conturbada. Uma verdadeira mulher do mundo, vem-lhe da infância a
curiosidade pelas questões políticas e humanitárias: a infanta
confidenciou-nos que ainda pequena se escondia atrás de um sofá na sala
para ouvir as conversas de seu pai com militares e políticos. Habitando
no olho do furacão que varria a Europa Central do início do século xx,
a pequena D. Adelaide de Bragança acabou por viver aventuras e
desventuras de pasmar: da Primeira Guerra Mundial recorda o racionamento
e as filas para aquisição dos alimentos que então rareavam. “A certa
altura, ainda eu era muito pequena, comíamos batatas ao pequeno-almoço,
que vinham de comboio e no Inverno congelavam. Uma batata congelada nem
um animal consegue comer: ficávamos sem a refeição.” D. Maria Adelaide
ressalva que não chegou a passar fome pois, por ser muito pequena,
sempre arranjava qualquer coisa quando passava na mercearia ou no talho.
“O meu irmão (D. Duarte Nuno de Bragança), esse sim: primeiro porque
não ‘pedia’, segundo porque não queria receber ‘assim’ os alimentos, e
repartia o pouco que tinha, em prejuízo da sua saúde”, que se
deteriorou, fazendo perigar os saudosos passeios de bicicleta que a
pequena infanta dava com o irmão, sentada no guiador, recorda. Muito
mais nova que as irmãs, não a atraíam brincadeiras e actividades
próprias das meninas da época: detestava bonecas, rendas ou culinária.
Em busca de subsistência, a família refugiou-se então numa propriedade
de um tio materno na Boémia, que no final da guerra acabou “requisitada”
pelos comunistas, com os quais se encantou, “com as suas boinas
vermelhas e cavalos altivos”.
Já em Viena, a jovem infanta estudou Enfermagem e Assistência Social, e
habitou numa residência universitária, “uma coisa já natural para uma
senhora na altura”. Cresceu de frente para um mundo em convulsão e
testemunhou a ocupação nazi, ainda em Viena, onde, como enfermeira,
acudia aos feridos entre bombardeamentos.
Apanhada pela Gestapo, foi presa, acusada de ouvir transmissões da BBC.
Interrogada, esteve na solitária e foi libertada mediante a intervenção
diplomática nacional, tendo-lhe sido concedido um passaporte português.
Essa experiência, contudo, acabou por determinar a sua adesão à
resistência organizada, no grupo O5, onde o seu nome de código era
Mafalda. Já perto do fim da guerra foi presa uma segunda vez, vítima de
uma denúncia que custou a vida a vários ingleses e judeus austríacos que
se escondiam na sua casa em Seebenstein. Foram extremamente penosos, de
fome e dor, os dias dessa prolongada prisão em Viena, então flagelada
pelos Aliados, nos derradeiros meses da ocupação nazi. Com os ocupantes
nervosos e em debandada, foi na iminência de uma execução sumária que a
infanta de Portugal foi libertada pelo exército soviético.
Entre correrias, bombardeamentos e aflições, sem nunca perder de vista a
assistência humanitária, conheceu um estudante de Medicina, de seu nome
Nicolaas van Uden, com quem casou depois da guerra. “Ele como médico e
eu como enfermeira estivemos para ir para África, mas pressionados pela
família acabámos por vir para Portugal”, por volta de 1949, ainda antes
da revogação da lei do banimento.
Instalada a família numa quinta em Murfacém, perto da Trafaria, D.
Maria Adelaide cedo se entregou a uma intensa actividade, tendo dirigido
a Fundação D. Nuno Álvares Pereira, em Porto Brandão, instituição de
apoio a mães pobres em final de gravidez e a crianças abandonadas,
dedicando a sua vida aos mais desfavorecidos. A sua forma de
relacionamento e gestão pouco convencional para a sociedade “chique” do
regime chocou algumas mentes mais puritanas, que a acusavam de
comunista, facto negado pela sua profunda devoção católica.
Longe das fugazes ribaltas e feiras de vaidades, a senhora D. Maria
Adelaide celebra hoje 100 anos. Celebra-os com uma missa de Acção de
Graças pelo dom da vida, na Igreja do Bom Sucesso, e um jantar simples
organizado por amigos e família no Centro Cultural de Belém. A Senhora
Infanta, como é tratada pelos mais próximos, além de constituir um
precioso testemunho vivo, directo e indirecto, da história dos últimos
duzentos anos, constitui um verdadeiro exemplo de profunda nobreza,
aliada a uma invulgar coragem e irreverência, que tanta falta faz nos
dias de hoje.
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