Por: Padre Gonçalo Portocarrero de Almada
Ser Rei é ser o primeiro na honra
mas, sobretudo, o primeiro no serviço. Mais do que titular de
privilégios e regalias, o monarca está, ao longo de toda a sua
existência, preso aos pesados grilhões dos mais penosos deveres. Por
isso, o Príncipe Real não foi educado para se passear nos salões, como
um cortesão ou um boémio, mas para ser o primeiro vassalo de El-Rei e o
seu mais destemido e sacrificado soldado, na contínua disponibilidade
para o serviço da pátria. (…) Não estranha, portanto, que o seu último
gesto, que por sinal lhe custou a vida, fosse um derradeiro acto de
nobreza e de serviço. Com efeito, depois de traiçoeiramente assassinado
El-Rei D. Carlos, com dois tiros disparados à sua retaguarda, o Príncipe
Real, que estava sentado à frente do monarca, levantou-se para
responder ao vil ataque em que já perecera o seu Pai e o seu Rei. Foi
então que ficou, ele também, na mira do regicida que, com um novo tiro,
atingiu mortalmente o Senhor D. Luís Filipe, que veio a falecer pouco
depois.
APRENDER A SERVIR
1. Introdução. «Jesus disse-lhes: ‘Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa’»[1].
O desconsolo desta observação de Nosso
Senhor, quando de passagem por Nazaré, bem podia reflectir o sentimento
de estupefacção e de revoltada tristeza que necessariamente nos invade
quando evocamos o hediondo crime em que pereceram Sua Majestade
Fidelíssima El-Rei D. Carlos I e Sua Alteza Real Dom Luís Filipe,
Príncipe Real, no dia primeiro de Fevereiro de mil novecentos e oito.
Com efeito, também as vítimas do
regicídio foram desprezadas na sua terra e, de algum modo, entre os seus
parentes e em sua casa, porque a casa do monarca é o seu país e, o seu
povo, a sua família alargada. Ao tombarem pela Pátria, El-Rei e o
Príncipe sentiram porventura aquele mesmo desprezo de que se queixa
Jesus Cristo, tanto mais injusto quanto procedente dos seus súbditos,
daqueles mesmo de quem seria de esperar uma atitude de gratidão ou, pelo
menos, de respeito pelo seu exemplar serviço à nação[2].
O pecado do Rei David que, ao recensear a
população, duvidou da providencial protecção divina, foi expiado pelo
seu povo, tendo perecido, por esse motivo, setenta mil homens, desde Dan
até Bersabé[3]. De modo análogo, o sangue divino do Filho de David, segundo a sua linhagem humana[4], a todos resgatou da culpa original dos nossos primeiros pais, como já vaticinara o seu régio antepassado: «a vossa mão caia sobre mim e a minha família»[5].
Foi também para remir a nação que foi derramado, no Terreiro do Paço, o
sangue real de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe D. Luís Filipe.
Se mais de um século decorrido sobre esta
nefasta efeméride nos reunimos em solene assembleia eucarística nesta
Igreja de São Vicente de Fora, junto ao Panteão Real, onde repousam os
corpos de El-Rei D. Carlos, do Príncipe e de outros membros da Família
Real, é não apenas para sufragar as suas almas, mas também para
agradecer a bênção do seu martírio e desagravar a nossa memória
colectiva da culpa de que foram inocentes vítimas. Por isso, com o
salmista, juntos rezámos: «Perdoai Senhor, a culpa do meu pecado»[6].
A História escreve-se com os grandes
feitos dos nossos santos e heróis, mas também com as sombras dos pecados
e traições dos nossos compatriotas. Se justamente nos orgulhamos de
pertencer à estirpe de um Egas Moniz, de uma Rainha Santa, de um São
Nuno Álvares Pereira, de uma Santa Beatriz da Silva, de um Dom Vasco da
Gama, de uma Dona Filipa de Vilhena, ou de um Henrique de Paiva
Couceiro, não podemos enjeitar a funesta herança daqueles nossos
concidadãos que, como os regicidas, mancharam a nossa História com o
sangue inocente de um Rei e de um Príncipe Real.
A História escreve-se com os grandes
feitos dos nossos santos e heróis, mas também com as sombras dos pecados
e traições dos nossos compatriotas. Se justamente nos orgulhamos de
pertencer à estirpe de um Egas Moniz, de uma Rainha Santa, de um São
Nuno Álvares Pereira, de uma Santa Beatriz da Silva, de um Dom Vasco da
Gama, de uma Dona Filipa de Vilhena, ou de um Henrique de Paiva
Couceiro, não podemos enjeitar a funesta herança daqueles nossos
concidadãos que, como os regicidas, mancharam a nossa História com o
sangue inocente de um Rei e de um Príncipe Real.
Se nos compete honrar a memória dos
heróis, a triste sina dos traidores à Pátria nos obriga a pedir perdão
ao Altíssimo pelos seus crimes e humildemente suplicar a Deus que nos
conceda a graça da fidelidade e nos faça dignos filhos da Igreja e desta
fidelíssima nação, a que nos orgulhamos de pertencer. «Vós sois o meu refúgio, defendei-me dos perigos, fazei que à minha volta só haja hinos de vitória»[1].
2. Cumprimentos. Antes
de prosseguir com a exegese dos textos proclamados na liturgia da
palavra desta celebração eucarística, importa saudar Suas Altezas Reais,
os Duques de Bragança, o Senhor Dom Duarte e a Senhora D. Isabel, que,
na sua qualidade de Chefes da Casa Real, são os representantes do
penúltimo Rei de Portugal e do seu filho primogénito, em cuja memória se
celebra esta Missa.
Este seu gesto, já habitual, releva não
só piedosos sentimentos cristãos, mas também um muito salutar
entendimento do seu patriotismo e da sua caridade cristã. Com efeito,
sendo o actual Chefe da Casa Real procedente de um outro ramo da Casa de
Bragança, seria compreensível que se dispensasse do encargo de
homenagear os penúltimos membros da linha primogénita da Família Real,
entretanto extinta, que esteve na origem do exílio e espoliação do
Senhor D. Miguel I e da sua augusta descendência. Contudo, numa atitude
que muito honra a sua condição cristã e o seu patriotismo, o Senhor Dom
Duarte cumpre anualmente com esta nobre devoção, que evidencia a sua
capacidade de antepor aos seus próprios sentimentos pessoais e às
vicissitudes históricas da Família Real, o superior interesse da
dinastia e da nação, como aliás sempre foi timbre da Casa de Bragança.
Ao Senhor Prior desta belíssima e
emblemática Igreja de São Vicente de Fora agradeço a disponibilidade
para esta celebração, assegurando-lhe a minha fraternal estima e uma
especial lembrança nas minhas orações.
Não posso deixar de agradecer também ao
Presidente da Causa Real a sua presença neste acto, bem como ao
Presidente da Real Associação de Lisboa que, ao mandar celebrar esta
Santa Missa, teve a amabilidade de me convidar, permitindo-me assim
prestar, na medida em que a minha condição sacerdotal o permite, a minha
humilde homenagem à Família Real e à Instituição que também os meus
maiores serviram. Cumprimento, com especial deferência, o Presidente do
Instituto da Nobreza Portuguesa e o Presidente da Associação da Nobreza
Histórica de Portugal.
Refiro ainda a já habitual presença dos
dignitários das Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila
Viçosa e de Santa Isabel, bem como os meus confrades da Soberana Ordem
Militar de Malta e da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém,
de que é Dama Grã-Cruz Sua Alteza a Senhora Infanta D. Maria Adelaide,
que ontem mesmo festejou o centenário do seu nascimento e a quem
felicito muito especialmente, em oração de acção de graças a Deus pelo
dom da sua vida e do seu notabilíssimo testemunho cristão.
Saúdo também as demais organizações aqui
representadas, com especial menção para os jovens monárquicos, prova
viva da perenidade do ideal que os anima. Abraço por último, mas com
igual afecto, todos os outros fiéis presentes, qualquer que seja a sua
filiação partidária porque, na casa de Deus, que é a sua Igreja, todos
somos irmãos na comunhão da mesma fé, esperança e caridade, qualquer que
seja a nossa raça, língua, condição social ou opção política, desde que
compatível com os valores cristãos.
3. A virtude do patriotismo. «Jesus
dirigiu-se à sua terra e os discípulos acompanharam-no. Quando chegou o
sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes estavam
admirados e diziam: ‘De onde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que
lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o
carpinteiro, Filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de
Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?’ E ficavam perplexos a
seu respeito»[2].
Esta breve passagem de Jesus por Nazaré –
a terra de que tomou nome e em que viveu a maior parte da sua vida
terrena, embora fosse natural de Belém de Judá[3] – é rica em ensinamentos. O exemplo da vida familiar e do trabalho artesanal do divino «carpinteiro, Filho de Maria»[4], é uma lição para todos nós, também chamados à perfeição da caridade em e através dos nossos deveres domésticos e profissionais.
Em boa hora o recordou o Concílio Vaticano II[5],
cujo cinquentenário festejaremos no presente ano. A este propósito, o
Santo Padre Bento XVI convocou a Igreja universal para a celebração do Ano da Fé, que terá início precisamente no próximo dia 11 de Outubro, aniversário da solene abertura do referido Concílio ecuménico[6].
O aludido regresso de Nosso Senhor «à sua terra»[7], em que decorrera o seu crescimento «em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens»[8],
também nos ensina a necessidade de cultivar o amor à Pátria e a
necessidade de educar a juventude na escola dos valores cristãos e dos
exemplos da nossa História.
A pátria é, como o seu próprio
nome indica, a terra dos pais. Era tão vivo o apego dos israelitas à
terra dos pais que o Patriarca José, morto no exílio, quis ser sepultado
na terra prometida[9]. Pela mesma razão, os habitantes daquela
nação escolhida não se recenseavam no local da sua residência, mas no
lugar de proveniência da sua família. É esta a razão que explica a
viagem a Belém de Maria e de José, porque este «era da casa e família de David»[10].
E é, precisamente quando se encontram nessa pequena povoação da Judeia,
que ocorre o nascimento de Jesus, para que assim se cumprissem as
Escrituras[11].
O patriotismo é uma virtude moral exigida
pelo IV Mandamento da Lei de Deus, que impõe a gozosa obrigação de
honrar os progenitores. A veneração devida aos pais é extensiva à terra
que, por ser deles, é, em sentido etimológico, a nossa pátria. Este
sentimento patriótico é compatível com o respeito por todas as
nacionalidades, de modo análogo a como a piedade filial não se opõe ao
dever universal da caridade. Outra coisa seria um nacionalismo de
carácter xenófobo, absolutamente incompatível com a exigência do
Mandamento novo do Senhor[12], o qual atesta, ou não, a autenticidade da nossa condição de seus discípulos[13], ou seja, de verdadeiros cristãos.
Se o patriotismo decorre da piedade
filial, é razoável que aos pais corresponda, em primeiríssimo lugar, a
incumbência de instruir os seus filhos nos valores e tradições da sua
terra e das suas gentes. Com a naturalidade com que se transmitem os
princípios da religião, ou as normas da boa educação, as famílias devem
ter também a preocupação de legar às gerações mais novas as tradições
nacionais, que são expressão da identidade colectiva.
Nestes tempos, em que a História de
Portugal é uma matéria quase omissa nos currículos escolares, ou a sua
referência é feita em termos ideológicos que distorcem o seu verdadeiro
sentido, há que apelar para a responsabilidade dos pais e avós em
relação à formação religiosa e patriótica dos seus filhos e netos. É
preciso que a nossa memória, como nação, não se dilua nos meandros dos
projectos educativos de carácter global, que muitas vezes servem
obscuros desígnios de suspeitas ideologias e interesses mundiais. É
urgente que os exemplos dos nossos egrégios avós se conheçam nas nossas
casas e que os nossos santos e heróis, agora que parece que foram
expulsos dos calendários oficiais, continuem a ser as nossas principais
referências e os modelos em que se inspira, sem anacrónicos saudosismos,
a educação da nossa mocidade.
4. O difícil ofício de reinar. É significativo que São Marcos, que nos diz que Nosso Senhor foi carpinteiro durante os anos da sua vida em Nazaré[14],
não refira que São José também desempenhara a mesma profissão. Contudo,
não faltam referências bíblicas relativas ao ofício exercido por José, o
esposo de Maria, a que os demais evangelistas atribuem o mesmo trabalho
profissional exercido por Nosso Senhor, antes de iniciar a sua vida
pública[15].
Não será portanto descabido concluir que a
arte artesanal desempenhada pelo Filho de Deus durante quase toda a sua
vida terrena e no qual foi experimentado mestre, porque d’Ele disseram
os seus contemporâneos que tudo fez bem[16], foi um ofício
aprendido directamente de seu pai e no seu ambiente familiar. São José,
que era descendente, por varonia, do segundo Rei de Israel[17],
ao mesmo tempo que ensinava a Jesus a história e tradições da sua
nobilíssima estirpe, uma vez que era da casa e família do Rei David[18], também O instruía no ofício familiar, em que lhe viria a suceder.
Se é característico da Instituição real o
seu carácter acentuadamente familiar, como em celebração análoga já se
teve ocasião de recordar no ano passado, também é específico da
monarquia esta aprendizagem familiar do difícil ofício de reinar. Com
efeito, os reis, ao contrário de outros quaisquer titulares de cargos
públicos, recebem desde o seu nascimento uma formação específica, que os
prepara e habilita particularmente para o serviço da nação. O monarca
não é uma pessoa guindada ao topo da hierarquia social por nenhum
interesse particular, nem uma pessoa que chega à mais alta magistratura
política em virtude do resultado de uma qualquer consulta popular, que
nem sempre escolhe os melhores para as mais delicadas funções, mas
alguém que foi preparado desde o nascimento para a superior
representação do Estado, segundo a lógica do desinteresse pessoal e do
bem comum.
Não deve estranhar que assim seja porque,
com efeito, a chefia de Estado requer um apurado sentido patriótico e
uma esmerada formação moral. Tais atributos nem sempre são compatíveis
com os interesses partidários ou os arranjos eleitorais que estão,
muitas vezes, na origem da ascensão política de indivíduos que, pela sua
inexperiência ou falta de carácter, não dignificam a nação que
representam ao mais alto nível. Pelo contrário, como ensina a sabedoria
popular, «filho de peixe, sabe nadar».
Por isso, um presumível herdeiro do trono
é submetido, desde o início da sua vida, a uma intensa formação
específica, que o prepara para a eventualidade de um dia ser chamado a
reinar. Mas reinar, segundo o ensinamento evangélico[19], mais
não é do que servir e, por isso, essa instrução própria procura incutir
no candidato à função régia um acentuado espírito de sacrifício e de
abnegação: sacrifício, porque a sua existência há-de ser vivida apenas
na lógica do bem nacional, a que hão-de ceder quaisquer outros
interesses pessoais; abnegação, porque lhe está vedado qualquer
protagonismo que não decorra, com necessidade, do legítimo exercício do
seu poder.
Na medida em que o monarca, nos regimes
constitucionais, reina sem governar, é um elemento de coesão e de
unidade nacional, ao contrário dos líderes partidários que assumem a
chefia do Estado e que, em geral, são sempre um factor de discordância
política e de desagregação nacional.
A natureza não democrática, por assim
dizer, da realeza, não é no entanto razão para que a Instituição seja
vista com alguma reserva, por quem legitimamente defende a participação
activa do povo na governação do país. Não só porque o efectivo exercício
do poder executivo seria sempre confiada àqueles que demonstrassem
merecer a confiança popular, mas também porque os regimes democráticos
reconhecem que se faculte o acesso a algumas funções públicas de relevo
não por plebiscito popular, mas pela provada competência e integridade
da pessoa indigitada[20].
Ora a realeza, mais do que mero título ou
condição, tem carácter de verdadeira profissão, sendo por isso da maior
conveniência que, aqueles que são chamados para o serviço do bem comum
no exercício dessa magistratura, sejam para o efeito preparados desde a
sua nascença. E, como o exercício do poder real, mais do que uma
competência técnica específica, exige uma elevada preparação moral,
ninguém melhor do que a Família Real para incutir, no futuro monarca, as
virtudes necessárias ao bom desempenho da chefia do Estado[21].
5. Homenagem a Sua Alteza Real, o Senhor Dom Luís Filipe, Príncipe Real.
Seria porventura injusto afirmar que o breve reinado do Senhor D.
Manuel II se ficou a dever ao facto de não ter sido inicialmente
preparado para ocupar o trono, mas não restam dúvidas de que o seu
malogrado irmão, o Príncipe Real, estava extraordinariamente apto para o
desempenho do cargo que, não fora o regicídio, teria exercido
certamente com grande sabedoria e óptimo proveito para Portugal.
Tendo, no ano passado, prestado a minha
sentida homenagem às Rainhas de Portugal, sobretudo nas régias pessoas
da Senhoras Dona Maria Pia e Dona Amélia, sem esquecer a Senhora Dona
Isabel, quereria aproveitar esta circunstância para evocar brevemente
Sua Alteza Real o Senhor Dom Luís Filipe, o Príncipe Real, a mais jovem
vítima do trágico atentado de 1 de Fevereiro de 1908. Por razão da
circunstância de nunca ter reinado, embora tenha sobrevivido por breves
instantes a seu Pai, e ter o seu falecimento ocorrido no mesmo atentado
em que também perdeu a vida El-Rei D. Carlos I, o Senhor Dom Luís Filipe
parece nunca ter deixado a sombra correspondente à sua subalterna
condição de príncipe herdeiro e de vítima secundária do dramático
regicídio que pôs termo à sua tão jovem e promissora existência. Mas é
de justiça que o quilate do seu carácter, a sua lealdade à Pátria e a
sua valentia no serviço de El-Rei sejam recordados, muito sucintamente,
no âmbito desta homilia.
Sem ânimo de esgotar a sua breve
biografia, recorde-se que foi em Casa e sobretudo de seus augustos Pais,
que Dom Luís Filipe aprendeu que a principal nobreza não é a que nasce
das honrarias, ou dos títulos, nem a que se recebe pelo sangue, mas a
que se afirma pelo espírito e se demonstra nas obras de serviço. Embora
nascido em berço de oiro, o então Duque de Bragança não conheceu o
conforto e as facilidades de que se costumam rodear as crianças da sua
privilegiada condição, mas a exigência quase espartana de quem tem uma
árdua missão a cumprir e a enorme responsabilidade de ser, pela sua
vida, um exemplo e um modelo para os seus futuros súbditos.
Ser Rei é ser o primeiro na honra mas,
sobretudo, o primeiro no serviço. Mais do que titular de privilégios e
regalias, o monarca está, ao longo de toda a sua existência, preso aos
pesados grilhões dos mais penosos deveres. Por isso, o Príncipe Real não
foi educado para se passear nos salões, como um cortesão ou um boémio,
mas para ser o primeiro vassalo de El-Rei e o seu mais destemido e
sacrificado soldado, na contínua disponibilidade para o serviço da
pátria. Educado segundo o espírito do Colégio Militar, cujo batalhão de
alunos comandou, cedo conheceu o rigor das funções oficiais: fez o
juramento, como Príncipe herdeiro, aos 14 anos; tomou posse, em 1906, do
seu lugar no Conselho de Estado e assumiu a regência do Reino nesse
mesmo ano, por ocasião da viagem dos soberanos à Corte de Madrid. Na
companhia dos seus mestres e tutores, entre os quais cabe destacar
Mouzinho de Albuquerque, sacrificadamente percorreu, de lés a lés, o
império português, nomeadamente algumas das colónias ultramarinas.
Não estranha, portanto, que o seu último
gesto, que por sinal lhe custou a vida, fosse um derradeiro acto de
nobreza e de serviço. Com efeito, depois de traiçoeiramente assassinado
El-Rei D. Carlos, com dois tiros disparados à sua rectaguarda, o
Príncipe Real, que estava sentado à frente do monarca, levantou-se para
responder ao vil ataque em que já perecera o seu Pai e o seu Rei. Foi
então que ficou, ele também, na mira do regicida que, com um novo tiro,
atingiu mortalmente o Senhor D. Luís Filipe, que veio a falecer pouco
depois.
Nele parece ter-se inspirado o poeta quando escreveu: «Raia-lhe
a farda o sangue / De braços estendidos,/ Alvo, louro, exangue,/ Fita
com olhar langue/ E cego os céus perdido./Tão jovem! Que jovem era!»[22].
A vida foi o preço que o Príncipe Real
pagou pelo seu patriotismo. E a valentia daquele desesperado ímpeto do
seu amor filial e da sua fidelidade a El-Rei é tanto mais digna de ser
celebrada quanto, naquela hora aziaga, foi a excepção à regra de muitas
cobardes omissões, também entre os que era de esperar uma maior lealdade
para com a Família Real.
Quero crer que é neste mesmo espírito
cristão de abnegado serviço à pátria que Sua Alteza Real, o Senhor Dom
Afonso, Príncipe da Beira, se prepara para a presumível representação
dos Reis de Portugal, sem esquecer as suas actuais responsabilidades
como imediato sucessor na chefia da Casa Real. Tem, decerto, em seus
augustos Pais, o melhor exemplo e os melhores mestres. Conta também com a
oração e o estímulo de todos nós, não apenas para que amanhã possa
restaurar o lustre da sua Casa e de Portugal, mas para que desde já
seja, pelo seu exemplo cristão e pelo seu patriotismo, uma referência
para todos os jovens portugueses.
6. Conclusão. «Não é Ele o carpinteiro, Filho de Maria […] ?»[23].
É provável que, ao ter ocorrido este episódio em Nazaré, Nossa Senhora o
tenha presenciado, prestando ao seu divino Filho a homenagem da fé e a
adoração que os seus conterrâneos Lhe negaram.
Mais longe do que podia a razão humana e mais fervoroso do que o querer dos homens, assim o entendimento e o amor da «cheia de graça»[24],
que nesta sua terra de Santa Maria veneramos especialmente como Nossa
Senhora da Conceição, terão sabido transcender aquela desventura
momentânea, na certeza de uma nova esperança. Também a tragédia do
regicídio desperta, em nós, a expectativa de uma nova era.
Seja Ela, a Senhora da Conceição, a nossa
intercessora junto de Deus Pai, de quem é filha, de Deus Filho, de quem
é mãe, e de Deus Espírito Santo, de quem é esposa. Seja Ela, Santa
Maria, a nossa voz junto de Deus, na inspirada prece do poeta: «Dá o
sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia -, /Com que a chama do esforço
se remoça,/ E outra vez conquistemos a Distância – / Do mar ou outra,
mas que seja nossa!»[25].
Assim seja!
[1] Salmo 31 (32), 7.
[2] Mc 6, 1-3.
[3] Cfr. Mt 2, 1; Lc 2, 1-7.
[4] Mc 6, 3.
[5] Cfr. Concílio Vaticano II, Constituição dogmática ‘Lumen Gentium’, capítulo V, Vocação universal à santidade na Igreja, nº 39-42.
[6] Bento XVI, Carta apostólica ‘Porta da Fé’, 11-10-2011, nº 4.
[7] Mc 6,1.
[8] Lc 2, 52.
[9] Cfr. Heb 11, 22.
[10] Lc 2, 1-5; cfr. 1, 27; Mt 1, 20.
[11] Cfr. Mt 2, 1-6; Lc 2, 5-7.
[12] Jo 13, 34; 15, 12-13, etc.
[13] Jo 13, 35.
[14] Cfr. Mc 6, 3.
[15] Cfr. Mt 13, 55; Lc 4, 22.
[16] Cfr. Mc 7, 37.
[17] O Rei David, que sucedeu a Saul no trono de Israel (cfr. Mt 1, 20).
[18] Mt 1, 1-17; cfr. Lc 3, 23-38.
[19] Cfr. Mt 16, 24-28; 20, 20-28; Lc 14, 7-11; Jo 13, 1-17, etc.
[20] O Chefe de Estado Geral das
Forças Armadas, os Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do
Tribunal Constitucional, o Presidente da Academia das Ciências, etc.,
não são sufragados pelo voto dos cidadãos e, contudo, ninguém nega a
legitimidade que lhes assiste no exercício dos cargos que exercem para o
bem da nação.
[21] Que o exercício do poder é,
de facto, a melhor escola de governação, parece provar-se pelo facto de
quase todos os chefes de Estado repetirem o inicial mandato, até ao
ponto de se eternizarem no poder, salvo que a lei constitucional o não
permita. Por sinal, não deixa de ser um princípio antidemocrático o que
veda um terceiro ou quarto mandato a um titular de um poder público, ao
mesmo tempo que uma envergonhada confissão de que o povo, quando livre,
opta pela continuidade e estabilidade dos mais altos dignitários da
nação, porventura manifestando deste jeito uma reminiscência histórica
do favor popular com que sempre foi agraciada a instituição monárquica.
[22] Fernando Pessoa, O menino da sua mãe, versos 6-12.
[23] Mc 6, 3.
[24] Lc 1, 28.
[25] Fernando Pessoa, Prece, XII, in Mensagem, edição clonada, Guimarães Editores S. A, 2009, pág. 67.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Lisboa, Igreja de São Vicente de Fora, 1-2-2012
Lisboa, Igreja de São Vicente de Fora, 1-2-2012
Notas:
[1] Mc 6, 5.
[2] Cfr. Salmo 40 (41), 10.
[3] Cfr. 2 Sam, 24, 15.
[4] Cfr. Mt 1, 1-17, Lc 1, 30-33.
[5] 2 Sam 24, 17
[6] Salmo 31 (32), 5c
[7] Salmo 31 (32), 7.
[8] Mc 6, 1-3.
[9] Cfr. Mt 2, 1; Lc 2, 1-7.
[10] Mc 6, 3.
[11] Cfr. Concílio Vaticano II, Constituição dogmática ‘Lumen Gentium’, capítulo V, Vocação universal à santidade na Igreja, nº 39-42.
[12] Bento XVI, Carta apostólica ‘Porta da Fé’, 11-10-2011, nº 4.
[13] Mc 6,1.
[14] Lc 2, 52.
[15] Cfr. Heb 11, 22.
[16] Lc 2, 1-5; cfr. 1, 27; Mt 1, 20.
[17] Cfr. Mt 2, 1-6; Lc 2, 5-7.
[18] Jo 13, 34; 15, 12-13, etc.
[19] Jo 13, 35.
[20] Cfr. Mc 6, 3.
[21] Cfr. Mt 13, 55; Lc 4, 22.
[22] Cfr. Mc 7, 37.
[23] O Rei David, que sucedeu a Saul no trono de Israel (cfr. Mt 1, 20).
[24] Mt 1, 1-17; cfr. Lc 3, 23-38.
[25] Cfr. Mt 16, 24-28; 20, 20-28; Lc 14, 7-11; Jo 13, 1-17, etc.
[26] O Chefe de Estado Geral das
Forças Armadas, os Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do
Tribunal Constitucional, o Presidente da Academia das Ciências, etc.,
não são sufragados pelo voto dos cidadãos e, contudo, ninguém nega a
legitimidade que lhes assiste no exercício dos cargos que exercem para o
bem da nação.
[27] Que o exercício do poder é,
de facto, a melhor escola de governação, parece provar-se pelo facto de
quase todos os chefes de Estado repetirem o inicial mandato, até ao
ponto de se eternizarem no poder, salvo que a lei constitucional o não
permita. Por sinal, não deixa de ser um princípio antidemocrático o que
veda um terceiro ou quarto mandato a um titular de um poder público, ao
mesmo tempo que uma envergonhada confissão de que o povo, quando livre,
opta pela continuidade e estabilidade dos mais altos dignitários da
nação, porventura manifestando deste jeito uma reminiscência histórica
do favor popular com que sempre foi agraciada a instituição monárquica.
[28] Fernando Pessoa, O menino da sua mãe, versos 6-12.
[29] Mc 6, 3.
[30] Lc 1, 28.
[31] Fernando Pessoa, Prece, XII, in Mensagem, edição clonada, Guimarães Editores S. A, 2009, pág. 67.
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