O recente debate sobre o federalismo americano e europeu, para o qual o derradeiro contributo, pelo menos por agora, veio do José Gomes André - e em particular, a teorização de James Madison
em que este ultrapassa algumas das premissas desenvolvidas por
Montesquieu -, levou-me a continuar a investigar sobre esta temática e
também sobre o pensamento republicano, de que Charles Louis-Secondat é
um expoente notável. Claro que quando falo em república ou pensamento
republicano é no sentido de res publica, à maneira de Cícero,
ou seja, coisa pública, e não no sentido de forma de governo. E dentro
do pensamento republicano, importa salientar a existência de duas
correntes principais, representadas por Rousseau e Marx, de um lado, e
Montesquieu e Madison de outro. Como não poderia deixar de ser, as
diferenças entre estas, às quais, grosso modo, corresponde o que se
costuma designar por liberalismo francês ou continental e liberalismo
anglo-saxónico, derivam essencialmente da forma como encaram a natureza
humana e o conceito de liberdade. Hayek faz notar as principais
diferenças: “Enquanto para a velha tradição britânica, a liberdade do
indivíduo no sentido da protecção pela lei contra toda a coerção
arbitrária era o valor principal, na tradição continental era a procura
pela auto-determinação de cada grupo em relação à sua forma de governo
que ocupava o lugar mais elevado.”1
Absorto nas minhas leituras e investigações, acabei por deparar com um artigo na Political Theory, da autoria de Annelien de Dijn, intitulado “On Political Liberty: Montesquieu’s Missing Manuscript”.
Como o próprio título indica, a autora debruça-se sobre um manuscrito
perdido de Montesquieu, que ajuda a melhor compreender o célebre livro
XI de Do Espírito das Leis, onde são tratados o conceito de
liberdade e o regime monárquico. A leitura do artigo vale bem a pena,
especialmente porque mostra um pouco do percurso intelectual de um dos
grandes teóricos políticos da modernidade, versando sobre as evoluções
em que este incorreu. O argumento principal é o de que os súbditos
monárquicos não estão necessariamente numa posição pior que os cidadãos
republicanos no que concerne à segurança das suas vidas e posses, e que,
na verdade, estas podem estar mais seguras numa monarquia do que numa
república. Distanciando-se da oposta corrente republicana, que ao
recuperar a noção de participação política da antiguidade clássica,
acabou por equacionar liberdade com autonomia ou auto-governo,
Montesquieu articulou uma concepção negativa de liberdade, procurando
desta forma defender a monarquia contra os sectarismos revolucionários.
Ao teorizar o conceito de liberdade, Montesquieu afirmou que um homem
livre é “aquele que tem boas razões para acreditar que o furor de uma
pessoa ou de muitas não lhe roubará a sua vida ou a posse dos seus
bens.” Estamos perante uma concepção conservadora e anti-revolucionária,
que nos traz imediatamente Burke e as suas Reflexões sobre a Revolução em França à mente.
Esta redefinição do conceito de
liberdade enquanto segurança obriga, no entanto, a colocar a pergunta
sobre como garantir esta segurança. A resposta de Montesquieu é dada ao
debruçar-se sobre a constituição Inglesa. Considerando-se discípulo de
Locke, acaba por aprofundar a teoria da separação de poderes,
fundamental para garantir a segurança e, consequentemente, a liberdade
individual. Partindo da sua famosa proposição de que “todo o homem que
tem poder é levado a abusar dele”2 indo até onde encontra
limites, Montesquieu considerou que “Para que se não possa abusar do
poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder”3,
o que nem sempre é conseguido por intermédio das leis “dado que estas
sempre podem ser abolidas, como mostraria a experiência dos conflitos
entre as leis e o poder, onde este sai sempre vitorioso”4.
Socorrendo-me aqui da articulação que José Adelino Maltez faz (a partir
de uma edição francesa da obra de Montesquieu), citamos o mesmo na
íntegra: “Assim, visionou um sistema de pesos e contrapesos, tratando de
limitar o poder no interior do próprio poder, onde, para cada faculdade
de estatuir (estatuer), o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo que foi ordenado por outro, deveria opor-se uma faculdade de vetar ou de impedir (empêcher), o direito de tornar nula uma resolução tomada por qualquer outro. Deste modo, considerava que, para formar um governo moderado, é preciso combinar os poderes (puissances), regulá-los e temperá-los.”5
Montesquieu preocupou-se em responder à
questão sobre como garantir um governo representativo que assegure a
liberdade e minimize a corrupção e os monopólios advindos de privilégios
inaceitáveis. A sua resposta vai no sentido de um estado
constitucional, que mantenha a lei e a ordem, como forma de assegurar os
direitos dos indivíduos6, recaindo a sua preferência,
naturalmente, sobre o sistema da monarquia constitucional britânica.
Relacionando o governo monárquico com um sistema de checks and balances,
segundo David Held, Montesquieu acabou por rearticular as preocupações
republicanas e liberais sobre o problema de unir os interesses privados e
o bem público, arquitectando institucionalmente a forma como estes
interesses se devem relacionar sem sacrificar a liberdade da comunidade7.
Esta institucionalização visa, por um lado, impedir a centralização de
poder, e, por outro, despersonalizar o exercício do poder político8.
E esta despersonalização está também em David Hume, que ao procurar
demolir a equação entre monarquia e despotismo, evidencia como as
monarquias civilizadas, modernas, constituem-se como um governo de Leis,
não de Homens. Também Locke teorizou no mesmo sentido. Ao contrário de
Jeremy Bentham, para quem a lei constituía uma infracção contra a
liberdade, para Locke, como para Hayek, conforme assinala André Azevedo Alves,
“a liberdade em sociedade não é, nem pode ser, ilimitada, antes
consistindo na sujeição à lei em alternativa à submissão a um poder
arbitrário”9, tratando-se, em suma, da acepção lockeana de que “onde não há lei, não há liberdade.”10
O corolário disto é a concepção de
Montesquieu de que a liberdade não está directamente relacionada ou
dependente da forma de governo, que um povo não é livre por ter esta ou
aquela forma de governo mas sim porque o governo é estabelecido pela
Lei, porque obedece ao estado de direito. Isto implica a invalidação do
muito utilizado argumento de que uma república garante mais liberdade
que uma monarquia. Na verdade, conquanto exista uma ordem constitucional
baseada na Lei, na separação de poderes e nos direitos individuais, uma
monarquia pode garantir o mesmo ou um maior grau de liberdade que uma
república, tal como acontece com a monarquia britânica, na qual
Montesquieu se inspirou.
1 - F. A. Hayek, New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1990, p. 120.
2 - Montesquieu, Do Espírito das Leis, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 303.
3 - Ibid., p. 303.
4 - José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p. 148.
5 - Ibid., p. 148.
6 - David Held, Models of Democracy,Cambridge, Polity Press, 2008, p. 65-66.
7 - Ibid., p. 67.
8 - Ibid., p. 68.
9 - André Azevedo Alves, Ordem, Liberdade e Estado: Uma Reflexão Crítica sobre a Filosofia Política em Hayek e Buchanan, Senhora da Hora, Edições Praedicare, 2006, p. 35.
10 - John Locke, Two Treatises of Government, Cambridge, Cambridge University Press, 2010, pp. 305-306.
publicado por Samuel de Paiva Pires em Real Associação de Lisboa
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