Um episódio comovente no quingentésimo aniversário (1510-2010) da Conquista e Fundação de Goa, por Afonso de Albuquerque.
Inexplicavelmente
impedidos de visitar o Navio-Escola Sagres, ancorado no porto de
Mormugão, em Goa, os pescadores e habitantes daquela cidade, saudosos da
secular presença portuguesa em terras da Índia, organizaram um festivo e
colorido cortejo de traineiras e barcos para saudar calorosamente o
emblemático navio das velas da Cruz de Cristo e a sua tripulação. Foi um
episódio comovente, que atesta bem o apreço que tinham por Portugal os
povos das nossas Províncias Ultramarinas, mesmo as mais longínquas. Leia
o impressionante relato do jornalista Joaquim Magalhães de Castro.
Estou
a bordo do navio-escola Sagres rumo a Lisboa nesta fase final da sua
viagem à volta do mundo, e hoje tenho uma bela história para vos contar -
que no espaço de uma hora me deixou com pele de galinha várias vezes e
veio reforçar a minha convicção quanto à cada vez mais urgente
necessidade de afirmarmos a nossa portugalidade no mundo, sem qualquer
tipo de complexos.
16
de Novembro, nove da manhã, uma hora antes da largada da Sagres do
porto de Mormugão, Sul de Goa. Dezenas de embarcações de pesca
engalanadas com balões, grinaldas de flores e bandeiras portuguesas,
repletas de centenas de homens, mulheres e crianças, muitas delas
envergando camisolas da selecção nacional, aproximaram-se dessa barca
construída num estaleiro de Hamburgo em 1937 mas que a Cruz de Cristo
faz nossa, e largaram a música, os panchões e a alegria que traziam com
sentidos vivas a Portugal.
Essa
manifestação espontânea apanhou de surpresa a tripulação que fazia os
preparativos para a largada, concentrada na recolha das lonas de
cobertura da ponte e do convés. Num repente, os marujos correram à
amurada e corresponderam com acenos e fotografias a tão carinhosa
manifestação de afecto.
Na
companhia do comandante Pedro Proença Mendes, o recém-chegado cônsul de
Portugal em Goa, António Sabido da Costa, também se mostrou atónito com
a inesperada despedida dos homens do mar. "É impressionante!",
exclamou. "E vê-se que é um sentimento genuíno." Concordei com o seu
comentário, mas estava preparado para aquilo. Sabia que muitos goeses,
impedidos de visitar a Sagres nos dois derradeiros dias da sua estada em
Mormugão, sistematicamente barrados pelas forças policiais, tinham
decidido agir por conta própria e fazer a ansiada visita, não por terra
mas directamente por mar, numa pacifica abordagem a bombordo, primeiro, e
depois a estibordo também.
E
lá estava, à proa de uma das maiores traineiras, de garrafa de cerveja
na mão e uma camisola vermelha com a palavra Portugal, Simon Pereira,
presidente da Associação dos Pescadores de Mormugão, responsável pela
colorida iniciativa. Atrás dele, uma banda a preceito interpretava
marchas populares, enquanto a aparelhagem de uma embarcação ali próxima
atirava cá para fora, em altos decibéis, versões goesas de conhecidos
temas populares da nacional canção.
Esta
manifestação traduzia bem o sentir dos goeses, que nunca deixaram de
ser portugueses. Numa das faixas exibidas bem alto podia ler-se "Viva
Portugal. Nós amamos o Portugal. Boa viagem Sagres". Noutra: "Adeus
Sagres. Viva Portugal. Goans love you."
A presença dos pescadores em festa foi a bofetada de luva branca nos denominados freedomfighters,
promotores das manifestações anti-portuguesas dos dias anteriores.
Curiosamente, um dos seus mais proeminentes dirigentes marcou presença
na recepção oficial que a Sagres ofereceu à comunidade local, marcada
pela ausência previamente anunciada do Ministro de Estado de Goa que,
intimidado pelos protestos dos fundamentalistas locais, inventou uma
viagem de trabalho a Deli para não estar presente. Foi uma recepção com
direito a fado com pronúncia local, vinho moscatel, cerveja Sagres
(claro!), presunto, queijo dos Açores, bacalhau e até uns deliciosos
pastéis de nata, confeccionados na cozinha da barca.
Nessa tarde, ao regressar do
porto, após as últimas compras na cidade, fui abordado por goeses que me
pediram que os ajudasse a entrar. Um senhor de provecta idade,
acompanhado de filhos e netos, protestava: "Somos portugueses, mas eles
não nos deixam visitar o nosso navio. Acha isto possível?". Outro homem,
também com muitas vivências para contar, limitou-se a entregar-me uma
carta para que a fizesse chegar ao comandante da Sagres, com os seus
"grandes parabéns a todos navegadores" e, em particular, ao "ilustre
capitão, senhor Proença Mendes, por ter navegado com coragem,
exactamente como o grande navegador e inventor do caminho marítimo para a
índia de então, o afamado Vasco da Gama", não hesitando em intitular
todos os portugueses, com aquela dose de exagero que só uma distância de
séculos explica, como "verdadeiros heróis do mar".
in PÚBLICO, 04-12-2010
Imagens:
1) Navio-Escola Sagres, da Marinha Portuguesa
2) Mapa parcial de Goa, com o porto de Mormugão, cuja construção foi iniciada pelos portugueses em 1624.
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