As matérias relacionadas com a
história política só ganham plena inteligibilidade se encaradas numa
perspectiva absolutamente policial. Tal como o criminalista deve
possuir uma estrutura mental simétrica à do criminoso - os policias
são, à sua maneira, os únicos criminosos tolerados pelo Estado - os
analistas políticos agarrados à ficção do angelismo ou submetidos à
piedosa crença da predominância das ideias na vida política, nunca
compreenderão a verdadeira força que move os homens atraídos pelo
poder. A actividade política obedece, não às ideias e às crenças, mas às
forças cegas da rapacidade, da ambição predatória e do saque. A
intriga, a destruição do adversário-concorrente, a absoluta falta de
limites e regras no combate para atingir o poder ou garantir a sua
posse, é isenta de qualquer escrúpulo . Não, há, pois, qualquer moral
nem tão pouco regras, se bem que aqueles que à política se dediquem
sejam os mais prolíferos arautos da moralidade. Quem diz política, deve
ler também, o ofício de historiador.
Vem isto a propósito de uma
pequena historieta, sempre em voga entre aqueles que se interessam
pelas coisas da história contemporânea portuguesa, e que de tão
repetida ficou. A historieta voltou à baila há três ou quatro anos -
aquando do bicentenário da transferência da família real para o Brasil -
e resume-se a parodiar, escarnecer, diminuir, ridicularizar ou
desprezar a figura do então Príncipe Regente e futuro Dom João VI. A
historieta é velha, cabendo a parte de leão a Oliveira Martins, que era
homem de génio, mas também criatura venenosa que deixou centos de
assassínios de reputação nas belas páginas do seu Portugal
Contemporâneo. Pegando nos três maiores defeitos da alma portuguesa - a
inveja, a mesquinhez, a ingratidão - Oliveira Martins, logo seguido
dos Josés de Arriaga, dos Junqueiros e quejandos, pintou um retrato
devastador de Dom João e da Princesa Carlota Joaquina. Da estupidez de
um e do carácter de Messalina de outra não ficou, porém, qualquer prova
documental. Não há, de Carlota Joaquina, uma só das famosas cartas
pornográficas enviadas às irmãs, como de Dom João VI um só testemunho da
sua imbecilidade. Pelo contrário, de todos os documentos e memórias a
nós chegados - cito, arbitrariamente, o Copiador de Junot, as memórias
da receptadora Laura Junot, os relatórios dos secretários de Estado da
Marinha e Ultramar - transparece a imagem de um Príncipe Regente
inteligente, diligente, trabalhador e informado. De Carlota Joaquina, a
de uma mulher de armas, temível inimiga das maquinações das sociedades
secretas (de cariz francês, como das de obediência britânica) e uma
servidora da paz e da ordem.
Enquanto
um e outro foram vivos, os inimigos da Coroa não conseguiram uma
vitória. Havia, pois, que os eliminar. A Dom João VI eliminaram-no
fisicamente, com o veneno. A Dona Carlota Joaquina, infamaram-na após a
morte. Enquanto foram vivos, Dom Pedro e Dom Miguel - infelizmente
deixados ao Deus dará e de educação descurada - não foram usados pelos
grupos que se guerreavam para fazer essa bela obra que foi o tão
afamado liberalismo, o avô da bagunça de hoje.
Voltemos à historieta. Compreendo, agora, sem caricatura e sem "ideias", a razão da imagem (certíssima) de um Dom João VI tirando coxas de frango do bolso da casaca. Dom João VI sabia bem que na sombra se movimentavam forças assassinas capazes das mais atrevidas iniciativas homicidas. Dom João VI e Dona Carlota Joaquina viviam rodeados de traidores. Hoje, sabemos quem eram, que lhes pagava, a quem serviam. O tema é actualíssimo. Os jornais estão cheios de referências a essa curibecas. Assim, ele comia as coxas de frango porque temia ser envenenado. Tinha razão. Quando deixou de as transportar na sua casaca, morreu envenenado.
Miguel Castelo-Branco
Fonte: Combustões
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