Por definição democrática, os deputados a uma Assembleia
representativa são representantes do Povo. Esta a teoria. Na prática,
porém, propostos à votação exclusivamente pelos partidos políticos, e
por estes assegurada a sua reeleição, os deputados são-no, por
conseguinte, dos directórios dos partidos e não do Povo, que não tem
nenhum papel na sua candidatura. Este facto altera o sentido
representativo e modifica toda a mecânica fantasiosamente prevista no
regime.
Uma vez eleitos os deputados, quaisquer que sejam as correntes de
opinião pública que se formem, ficam apenas dependentes da disciplina
partidária.
Suponhamos o caso de um partido que formou governo perder a confiança
do país. Mas como a moção de desconfiança que vale não é do país, mas
dos deputados na Assembleia, e estes têm de obedecer ao partido, o
governo mantém-se legalmente em funções. Por aqui se vê que em
partidocracia os deputados não interpretam necessariamente a vontade do
Povo, mas sim a dos dirigentes do partido a que pertencem.
A partidocracia pode ser, sem dúvida, uma forma de democracia, mas é
uma das formas mais viciosas de que esta se pode revestir.
O que move a democracia partidocrática é a abstracção das suas
ideologias e, sobretudo, o interesse dos partidos. As altas
conveniências nacionais ficam para terceiro lugar. Não seria assim se a
formação da Assembleia da República assentasse em bases
sócio-profissionais e regionais, e principalmente se os deputados
tivessem um mandato imperativo. As forças impulsionadoras seriam então
de outra natureza e outros os efeitos.
Com o Povo organizado por meio das suas associações vitais (e só
assim se pode verdadeiramente dizer que existe Povo), isto é, com a
representação dos organismos sociais, muito teria a lucrar. O eleitor
tornava-se incomparavelmente mais consciente no seu voto; os deputados
seriam fiéis às origens representativas; a Assembleia, perdendo o
carácter político-ideológico, adquiriria um carácter nacional; as
votações sectoriais e parcelares substituiriam, com economias de toda a
espécie, as agitações demagógicas das eleições gerais; de uma nova
ordem, natural e construtiva dentro de uma autêntica liberdade adviria,
como consequência lógica, um clima de facilitado entendimento.
...
As razões partidárias sobrepõem-se assim às razões justas. Ora nós
queremos deputados de toda a população na multiplicidade da sua
expressão; não apenas deputados de partidos políticos, mas também de
todos os "parceiros sociais".
Mário Saraiva in Sob o Nevoeiro (Ideias e Figuras) Edições Cultura Monárquica 1987
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