Em ano de centenário da República Portuguesa há também que assinalar em
Macau um centenário que antecedeu em poucos meses a queda da Monarquia, e
a substituição do seu representante máximo no Extremo Oriente: – o
governador Eduardo Marques, monárquico convicto, que deu lugar ao seu
ajudante de campo, o comandante da marinha Álvaro de Melo Machado que
tal como o primeiro era igualmente convicto, mas republicano.
Trata-se de lembrar os combates de Coloane contra os piratas ocorridos durante quase todo o mês de Julho de 1910.
A efeméride, que chegou a servir de mote para o feriado municipal das
Ilhas até 20 de Dezembro de 1999, merece ser relembrada, não pelo que
tenha sido, em si, já que não se tratou de nenhuma campanha militar
digna de nota no cômputo geral ultramarino português, mas pelo marco que
constituiu na história de Macau.
De facto, num território que, segundo alguns, terá sido cedido pela
China aos portugueses em reconhecimento do auxílio prestado ao “Império
do Meio” nas lutas contra os piratas do século XVI, os combates de
Coloane assinalaram a última campanha militar digna de nota contra a
pirataria nos mares do Extremo Oriente.
Depois disso o que se seguiu foram casos de polícia de maiores, ou menores dimensões, mas que não mais passariam disso mesmo.
Aliás os confrontos de Coloane contra os piratas foram mais um conjunto
de actos políticos do que verdadeiramente militares e espelharam em
grande medida uma tentativa de afirmação da política ultramarina
portuguesa da monarquia que tinha sido ferida de morte com o caso do
“Mapa Cor de Rosa”, que culminou com o chamado “ultimato inglês” de 1890
e que tentava obter sucesso capaz de contrariar os achincalhos a que
era sucessivamente submetida no parlamento de Lisboa pelos republicanos,
nas ruas pelos sindicatos e igualmente nas chancelarias internacionais.
Neste caso tanto monárquicas como republicanas.
O “ultimato”, não tinha sido mais do que a consequência da supremacia
militar inglesa que se sobrepôs às “líricas” tentativas de Portugal de
tentar unir Angola e Moçambique numa só colónia do Leste ao Oeste
africano. Contra este desígnio opunha-se o de Londres que pretendia unir
as colónias inglesas de Norte a Sul, ou seja do Cairo ao Cabo.
Evidentemente que venceram os ingleses.
No extremo Oriente os ingleses já tinham vencido também, mas colocava-se
a questão suscitada ciclicamente, igualmente por Londres, mas
igualmente por Paris e Berlim, de que Macau serviria de quartel-general
aos piratas que assolavam os Mares do Sul da China. Nada estava mais
longe da verdade. Mas como a Inglaterra dominava a comunicação social o
que surgia estampado, nos editoriais dos jornais britânicos e ecoado nos
franceses, alemães, italianos e americanos, entre outros, era a
eventual verdade (diz-se que em política o que parece é). Ou seja
Coloane, onde actuavam de facto uns bandos de piratas que se misturavam
com a população, estava muito longe de ser o perigo que constituiriam os
grandes bandos que actuavam no vasto espaço geográfico do “Delta do Rio
das Pérolas” e mais para Norte, nas costa de Fujian e de Xangai, áreas
controladas pelas esquadras britânicas, francesas americanas e alemãs
que por ali navegavam. Diga-se que muitos apoiados oficiosamente pelas
potências intervenientes sempre que isso lhes servia.
O governador Álvaro de Melo Machado e o historiador Pe. Manuel Teixeira
descrevem muito bem a situação: – “Os piratas eram, de um modo geral,
bem acolhidos pela população de Coloane, que sabiam quem eram e lhes
davam asilo, a população acolhia com benevolência estes malfeitores pelo
dinheiro que generosamente gastavam; e as próprias autoridades
portuguesas, que de sobejo sabiam da existência desta gente,
toleravam-na, nunca fazendo diligências para a escorraçar”.
Por seu turno, o Padre Teixeira diz que “os piratas foram-se ali
infiltrando no decorrer dos anos: aqui montavam uma mercearia, além uma
loja de peixe; uns trabalhavam nas pedreiras, outros entregavam-se à
agricultura; por isso tinham de ter casas para as suas famílias. É
de crer que os seus vizinhos soubessem que espécie de gente eram eles,
mas não os denunciavam por duas razões: eles não os incomodavam, pois a
quadrilha fazia as suas operações em terra chinesa e para ali traziam os
seus roubos e as suas armas”. O negócio não era mau e pelos vistos não
incomodava ninguém!…
Nesse cenário de pretensa guerra que passava bem mais pelos cabeçalhos
dos jornais internacionais, do que pela realidade prevalecente, Portugal
não teve remédio senão levar a efeito uma demonstração de força.
Para o efeito foi aproveitada a presença do “Cruzador D. Amélia”,
transportando a bordo uma força de fuzileiros de cerca de duzentos
homens que efectuava o habitual périplo anual pelo Extremo Oriente que
costumava levar o vaso de guerra a uma patrulha que passava por Macau
incluía Xangai, com regresso a Lisboa pelos mares de Timor.
A viagem do cruzador, que se arriscava a não passar, mais uma vez, de
uma espécie de cruzeiro simbólico, ensejo de fim de curso para os
cadetes da marinha praticarem as artes da navegação, seria aproveitada
dessa vez para uma verdadeira missão de guerra.
O pretexto foi o rapto de 18 crianças de uma escola da localidade de
Tong Hang, localizada a poucas dezenas de quilómetros de Macau por um
grupo de piratas que teriam a sua base em Coloane.
O caso foi denunciado em parangonas sucessivas pelo jornal “A Verdade”
de Constâncio José da Silva que, por acaso, era também advogado dos pais
de algumas dessas crianças e que exigia acção às autoridades.
Diga-se que Constâncio José da Silva era também republicano estrénuo e
não deixava de aproveitar “o seu caso” para denunciar as fraquezas da
monarquia que com um cruzador carregado de artilharia pesada e
fuzileiros fortemente armados postado a poucas milhas de Macau permitia
um desaforo tal sem fazer nada.
Face ao ambiente político que se adensava pelas diatribes de “A
Verdade”, pela pressão dos vizinhos ingleses de Hong Kong, e pelas
recentes tentativas dos alemães de ocuparem a vizinha ilha da Lapa
(1900) sobre a qual Portugal reivindicava direitos, o governador Eduardo
Marques não podia fazer mais nada senão requerer uma acção militar do
comandante do D. Amélia e teve-a.
As forças do Cruzador (150 fuzileiros?) desembarcaram em Coloane, com
apoio de artilharia. A canhoneira Macau, por seu turno, de mais pequeno
calado e a única que se podia aproximar verdadeiramente através dos
baixios da ilha, bombardeou a vila. Diz-se que a acção não passou de um
exercício de teste de pontaria da artilharia e uma demonstração
excessiva de força que provocou mortos e feridos civis desnecessários e
mais nada. Mas certo é que com força a mais, ou a menos, no final da
operação as crianças foram resgatadas e vários piratas presos.
Nesse episódio a China ofereceu-se para colaborar nas operações navais,
mas o governo de Macau rejeitou a oferta e as canhoneiras chinesas
limitaram-se a pairar ao largo e a dar caça a juncos tresmalhados
suspeitos que singravam pelo dédalo de canais do Delta.
No final da “campanha” foram mais os estragos que os benefícios já que
não existem provas sólidas de que os piratas tenham sido erradicados de
Coloane. O que resultou de facto foi uma vila mais ou menos arrasada
pelas granadas e pouco mais.
O resto da operação foi constituído por um golpe de mão contra um grupo
de malfeitores que se tinha escondido numas grutas que hoje fazem parte
do campo de golfe do hotel “Westin Resort”, que envolveu um pelotão de
infantaria e que um cabo do exército com uma granada de enxofre bem
atirada para o interior das ditas do alto das arribas desalojou de
pronto sem necessidade de recurso a operações complicadas de estado
maior. O golpe completou-se em poucas horas com pleno sucesso já que não
se registaram baixas de qualquer dos lados e os bandidos acabaram
presos.
A monarquia não salvou na China, numa eventual epopeia bélica, como
pretenderia, a humilhação africana do “Mapa Cor-de-rosa” que tinha
sofrido vinte anos antes e afinal de contas quem ganhou pontos foi a
República que três meses depois se implantaria em Portugal.
O cruzador D. Amélia que tinha vindo essencialmente para afirmar a
pujança da marinha da monarquia portuguesa perante as potências
coloniais presentes na China registava ali a sua penúltimo missão de
relevo. Tinha sido construído em 1901 no Arsenal de Lisboa e nomeado em
honra de D. Amélia de Orleães mulher do malogrado rei D. Carlos I. Sendo
o primeiro vaso naval de grande porte construído em aço em estaleiros
portugueses durou pouco a sua história. Após a revolução de 5 de Outubro
de 1910, onde teve papel proeminente, foi rebaptizado passando a
chamar-se “NRP República”. A 6 de Agosto de 1915 acabaria por se perder
para sempre encalhando na praia da Consolação, a sul de Peniche.
Quanto à lancha canhoneira Macau durou mais alguns anos e teve uma história substancialmente mais curiosa.
Encomendada aos estaleiros Yarrow & Co. de Glasgow (Escócia) foi
entregue à marinha portuguesa em 1909. Um ano antes do bombardeamento da
Vila de Coloane. Seria abatida ao efectivo da marinha a 15 de Agosto de
1943, sendo entregue aos japoneses que ocupavam então a China por troca
de 10 mil sacos de arroz passando a navegar com o nome de “Maiko”. Em
1949 foi capturada, passando a fazer parte da marinha da China sob novo
nome. Desta vez “Wu Fang”. Não se sabe quando esta histórica lancha
canhoneira deixou definitivamente de efectuar serviço activo.
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