No meio da catástrofe que se abateu sobre Portugal e os portugueses,
uma tendência fetichista com a eliminação dos feriados emerge entre os
que nos vão sujeitando a uma penosa navegação à vista. Ilustrativa
quanto baste da perigosidade do Leviatã e dos que o manobram praticando o
velhinho princípio cesarista de "divide et impera", esta tendência
torna-se ainda mais preocupante quando colocada em perspectiva nos
contextos da intervenção internacional a que o consulado socrático
infelizmente nos trouxe e da crise da União Europeia que muitos parecem
querer ultrapassar com uma fuga para a frente em direcção a um
federalismo muito pouco federalista e democrático, o que me traz à
memória uma célebre gaffe de João Pinto, antigo jogador do Futebol Clube
do Porto: “Estávamos à beira do abismo e fizemos o que tínhamos a
fazer: demos o passo em frente.”
Não constando do memorando de entendimento com a troika ou do
programa do actual governo quaisquer referências à redução do número de
feriados, não deixa de ser intrigante assistir a esta tendência
apresentada como forma de penitência, visando a redenção perante os
parceiros internacionais e ajudando a reforçar ideias perigosas como a
de que em Portugal trabalha-se poucas horas, quando na verdade
trabalhamos mais horas que a média europeia, ou a de que a culpa da
crise que vivemos é da nossa total responsabilidade, quando se é certo
que os governantes erraram em muita coisa nas últimas décadas, também
não deixa de ser porque o sistema financeiro europeu e as políticas da
União Europeia contribuíram em larga medida para os desvarios que nos
trouxeram ao estado a que chegámos.
Primeiro foram os quatro feriados que o governo achou por bem
negociar em sede de concertação social, como se esta tivesse qualquer
mandato para tal – o que é revelador não só da falta de conexão entre as
confederações que ali têm assento e a nação, mas também dos tiques
autoritários que perpassam este governo. Há dias, foi notícia a intenção
do governo de tornar o 25 de Abril um feriado de celebração opcional
nas embaixadas, missões bilaterais e serviços consulares portugueses.
Sendo o feriado fundacional do regime, não deixa de ser estranho que a
sua celebração deixe de ser obrigatória nas representações externas do
estado português, o que em conjunto com a eliminação do feriado do 1.º
de Dezembro só vem agravar ainda mais a preocupante propensão para não
nos darmos ao respeito na arena internacional.
Mas mais grave que isto é este fetiche parecer-me estar enquadrado no
processo de apagamento da identidade portuguesa em curso, sobre o qual
escrevi no início deste ano. Como se não bastasse o absurdo Acordo
Ortográfico que vai desfigurando a língua portuguesa, o governo ainda se
considera no direito de dispor a seu bel-prazer de celebrações de mitos
que dão corpo à nossa identidade nacional, à nossa pátria, não
hesitando inclusive em enveredar pelo já referido dividir para reinar,
no qual caíram monárquicos e republicanos a respeito do 1.º de Dezembro e
5 de Outubro. Este processo não é fruto do mero acaso. Trata-se de um
ataque despudorado ao Estado-nação, que visa abrir brechas para
permitir, em primeiro lugar, o enfraquecimento e manipulação da
identidade nacional, e em segundo, o reforço da lealdade e identificação
com a União Europeia, o que poderá vir a reflectir-se na tentativa de
implantação de uma suposta identidade supranacional que muito
facilitaria o trabalho aos eurocratas que, não satisfeitos com a
fragmentação a que a maioria das nações e sociedades europeias foram e
estão a ser sujeitas, parecem apostados em dar o passo em frente em
direcção ao abismo. Não estou com isto a dizer que a União Europeia não
deve avançar no sentido de uma federação. Mas conhecendo-se o historial
do método comunitário, apenas suspeito fortemente que o processo que
levará a uma federação europeia aprofundará o défice democrático e terá
muito pouco respeito pelas identidades nacionais.
Desenganem-se os que julgam, como salienta Pierre Manent, que uma
nação “é um traje ligeiro que se possa pôr e tirar à vontade, ficando-se
na mesma.” Escreve o autor francês que “Ela é esse todo no qual todos
os elementos da nossa vida se reúnem e ganham sentido.” Como assinala
Roger Scruton, é a cultura que nos une e a pátria é o lugar onde
regressamos, nem que seja apenas em pensamento, no fim das nossas
deambulações. Por mim, continuo a subscrever Pessoa quando afirma que o
“O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado” e
apenas acrescento que a pátria está acima do estado, não podendo ser
aprisionada por este nem por nenhum de nós e sendo, na realidade, o mito
que fundamenta o burkeano contrato entre os mortos, os vivos e os ainda
por nascer. Porque recordando ainda Miguel Torga, a pátria é “o espaço
telúrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre
humana e civicamente. Só nele a sua respiração é plena, o seu instinto
sossega, a sua inteligência fulgura, o seu passado tem sentido e o seu
presente tem futuro.”
Que actualmente sejamos liderados por um governo que tem revelado
esforços muito tímidos quanto a fazer aquilo para que foi eleito e que
ambos os partidos da coligação prometeram em campanha eleitoral –
reformar o estado –, preferindo a velha e estafada receita do aumento de
impostos, parece-me ser uma vicissitude de um regime democrático, que
não deixa de reforçar o descrédito dos agentes políticos e,
consequentemente, do regime. Mas que numa das mais graves horas que
enfrentamos colectivamente, ainda sejamos sujeitos a uma ofensiva
anti-patriótica, é somente trágico.
publicado por Monarquia Lisboa em Real Associação de Lisboa
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