Caso persistissem dúvidas quanto à
inutilidade de um Presidente da República que não revela a menor
sintonia com as aspirações e comportamento dos portugueses nem com a
longevidade e resistência da soberania nacional, elas ficaram hoje
desfeitas, depois da promulgação da lei que extingue mais de um milhar de freguesias.
A conivência de muitos comentadores,
intelectuais, políticos e, até, de muitos cidadãos apressados sempre com
a propaganda debaixo da língua, com estas alterações feitas "em cima do
joelho" é mais um exemplo de como grande parte das reformas avançam à
força, - e só porque o país ficou entre a espada e a parede - sem
preocupações pela forma como são aplicadas e pondo em evidência a
impreparação dos técnicos que mais parecem carniceiros a lidar com os
assuntos que têm em mãos. O país parece manter-se na série
"Orgulhosamente sós", temporada pós 25 de Abril. Concorrência? Não mata
mas machuca. Liberdade de escolha no ensino? Afastem de mim esse cálice!
Fim de canal público de televisão? Que elitismo desenfreado...privar as
populações de edificarem o intelecto com tão distinta e imparcial
selecção de programas e informação. Autonomia de competências e de
financiamento local? Isso existe no mundo? Jamais! O povo é demasiado
tacanho e desorganizado.
A sensação que fica quando nos são
apresentadas as reformas deste governo é a de que estão a usar um
micro-ondas pela primeira vez e nem tiram a refeição da embalagem.
Parecem o Tarzan a usar faca e garfo depois de ser atirado para uma
sociedade civilizada. Sabem que precisam de avançar para algum lado
porque têm a vida por um fio mas avançam sem qualquer escrutínio às
populações porque, claro está, referendos são caros e só se justificam
quando os temas são assuntos menos decisivos e quando se esperam
resultados favoráveis. Cavaco Silva parece adoptar uma postura de "os
cães ladram e a caravana passa". Neste caso, os cães somos nós (desculpem, foi o que nos calhou).
Dão tiros nos pés se julgam que
menosprezar o potencial reservado nas freguesias lhes vai dar tempo de
vida ou meia dúzia de tostões. Enquanto isso, não hesitam em
providenciar tacho, no valor anual 3 milhões de euros, novos cargos executivos nas comunidades intermunicipais.
Um passo em frente e dois atrás, esta ilusão de usar o território
nacional para efeitos meramente decorativos, fiscais e eleitoralistas.
Aproveito para recuperar o que escrevi no Movimento Libertário, em Junho do ano passado:
O nosso ponto central é que
transferir funções para uma ordem superior, mais abrangente e distante,
quando essas funções podem ser executadas e um nível mais básico de
instâncias inferiores é uma deturpação do equilíbrio sustentado, no
tempo e no espaço, numa dada comunidade de interajuda e confiança. Essa
centralidade gera mais grupos capazes de desviar recursos para alimentar
megalomanias públicas ou interesses pessoais e se isso acontece a nível
local não há particular iniquidade nisto mas sim incentivos perniciosos
centrais que alastram até às instâncias mais básicas. (...)
Como será de fácil ilacção, o
desenvolvimento das freguesias não se deu ao acaso ou por decreto
superior. Deu-se adjacente às condicionantes que levaram à permuta de
serviços, emergência das actividades agrícolas possíveis, aproveitamento
e partilha de certos bens e equipamentos. Estas interacções só eram
possíveis perante a consciência da vantagem na colaboração e, tal como
agora, parece um argumento frágil apontar que a reforma no sentido do
fortalecimento e autonomia dos municípios envolveria mais despesa para o
Estado numa altura de contenção. Se a administração central deixar de
encerrar em si uma panóplia de competências passíveis de delegar aos
municípios, deverá deixar de utilizar os respectivos recursos, já que
esses ficariam afectos a quem ficar com as atribuições, sendo previsível
também que as despesas acabem por descer, a longo prazo, graças à
resolução menos complexa dos problemas, ao encurtar do tempo de
resposta, à menor perda de sinais de mercado e ao refreamento da
disfunção burocrática.
(...) Reconhecendo a necessidade de
cortar nas despesas que a nossa administração pública encerra, a solução
para este problema passa por dinamitar o foco que mais controla e mais
consome e, por outro lado, impedir uma táctica de "terra queimada"
promovida por Lisboa que tenta, a todo o custo, convencer o país de que
os pecados são cometidos por autarcas e que urge afastar os recursos do
egoísmo e irresponsabilidade das populações locais. Estamos conscientes
de que a prevalência de um modelo centralizado e autista em Lisboa gera
ainda mais distorções das capacidades regionais, (como pode ser
observado globalmente pela conhecida transferência de riqueza do Norte
excedentário e competitivo para a Lisboa, dominada pelo sector dos não
transaccionáveis e acumuladora de défice). Devemos, numa concepção que
privilegia o indivíduo e a continuidade das suas relações em comunidade,
defender uma extensão progressiva das competências a nível municipal
como centros de decisão facilitadores de negociação na provisão de
ensino e formação profissional, transportes, favorecimento de uma
política voluntária de ordenamento do território, laboral, colaboração
com empreendimentos empresariais, e gestão mais responsável do
património administrado pelas autoridades locais.
A capacidade do Estado central
captar receitas, no quadro preferencial da descentralização fiscal,
vê-se restringida pela acrescida vigilância dos indivíduos perante a
expectativa de retorno pois estes estarão mais conscientes dos montantes
tributados e da aplicação dos mesmos. Também controlarão melhor
usurpadores da renda alheia, em defesa da propriedade, abster-se-ão de
usurpar porque a punição social e a perda de prestígio social envolve um
custo irreversível e absurdo, e ainda, verão facilitada a comunicação
com os prestadores de serviços, favorecendo as alternativas mais
vantajosas. Gostos, capacidades produtivas, diversidade cultural,
características demográficas e aspirações diversificadas, insondáveis a
qualquer planeamento central, definem procuras e ofertas muito
específicas e a qualidade da resposta não se coaduna com critérios de
equidade, solidariedade e desenvolvimento económico nivelados e impostos
pela capital, especialmente quando Lisboa serve de altifalante à
embaraçada argumentação estritamente político-partidária que revela pura
resistência para conservar os cerca de 80% de funcionários concentrados
na administração central.
Numa época de proximidade,
imediatismo, trocas e deslocações encurtadas, valerá a pena repensar a
proximidade dos municípios e freguesias, não como empecilhos retrógrados
mas como células estratégicas em plena e prudente ligação com outras
unidades. Só conscientes das capacidades endógenas e perto da agregação
de interesses, como atenuante de alguns danos inerentes ao contexto
democrático poderão ser viabilizadas alternativas de mercado que desviem
o abusivo tentáculo do Estado. A diferença está em perceber que a
solução, mesmo no recente Documento Verde, não pode partir de cima mas
deve, isso sim, seguir uma coordenação territorial mais negociada entre
as partes no local, na posse de informação valiosa e que não esqueça a
importância do financiamento local como travão ao caciquismo. Quando a
vontade de colaborar com outros grupos parte da base, assente nas
próprias escolhas, reflecte a importância de laços familiares, redes de
contactos profissionais, comunhão dos mesmos cultos, trocas comerciais e
uma multiplicidade de outras relações civis que se cristalizaram num
certo território. Partindo dessas escolhas autónomas é possível então
explorar concertação horizontal e rede de parcerias voluntárias, na
formação de capital social. Será crucial perseguir este ideal mesmo se o
Estado central, amanhã, acenar com o lançamento do último "grito
tecnológico" da versatilidade na captação de informação, prometendo um
sistema de cálculo de outputs infalível e unificado que substitua os
elos de proximidade. Simplesmente porque a experiência histórica não
compactua com promessas paradoxais.
publicado por Daniela Silva em Estado Sentido
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