A primeira lei de um país, a lei das
leis, a lei suprema ou lei fundamental é a Constituição, de acordo com a
qual terão de estar as leis e decretos-leis e demais legislação.
A nossa Lei fundamental não consagra
qualquer papel ao cônjuge do Presidente da República, nem sequer se lhe
refere, ignorando pura e simplesmente a sua figura. Logo o cônjuge do PR
não é um órgão de soberania nem tem qualquer relevância constitucional.
Se compulsarmos a Lei n.º 7/96 de 29 de
Fevereiro, aprovada pela AR nos termos dos artigos 164.º, alínea d) e
169.º, n.º 3 da Constituição, que define as estruturas
de apoio técnico e pessoal e de gestão patrimonial, administrativa e
financeira do órgão de soberania Presidente da República – a qual, como acima se disse, tem de estar de acordo com a Constituição – verificamos que
- o art.º 2.º indica como serviços de apoio directo ao Presidente da República a Casa Civil, a Casa Militar, o Gabinete, o Serviço de Segurança, o Centro de Comunicações e o Serviço de Apoio Médico, fazendo ainda parte dos seus serviços e órgãos um Conselho Administrativo e uma Secretaria-Geral. Não há qualquer referência ao cônjuge do PR .
- no art.º 4º escreve-se que a Casa Civil é um serviço de consulta, de análise, de informação e de apoio técnico ao Presidente da República e é constituída pelo chefe da Casa Civil e pelos assessores, adjuntos e secretários, em número a fixar pela legislação regulamentar e que integra ainda a Casa Civil um corpo de consultores, constituído por especialistas e que junto da Casa Civil funciona um núcleo de apoio administrativo. Também aqui não se refere ao cônjuge do PR.
Decorre da Lei n.º 7/96, que o Governo
proceda à sua regulamentação, o que acontece nos termos da alínea a) do
n.º 1 do artigo 201.º da Constituição o que aquele veio fazer através do
Decreto-Lei n.º 28-A/96, de 4 de Abril. Este Decreto-Lei do Governo de
António Guterres – que também tem de estar de acordo com a Constituição –
estabelece
- no artigo 4.º que, a fim de prestar apoio ao cônjuge do Presidente da República no exercício das actividades oficiais (?) que normalmente desenvolve, funciona, no âmbito da Casa Civil, um gabinete de apoio, constituído por dois adjuntos e um secretário, designados de entre o pessoal que faz parte da Casa Civil.
Ora, quais são as actividades oficiais consagradas na Constituição para o cônjuge do PR? NENHUMAS. Logo estamos perante uma aberração constitucional
da república, que a todo o custo pretende imitar a monarquia. Aliás,
para os mais puristas republicanos este diploma fere a Constituição, mas
em Portugal, tudo é possível e este diploma foi promulgado pelo próprio
interessado - o PR -, aquele que jurou cumprir e fazer cumprir (só aos
outros, pelos vistos) a CRP.
Se a monarquia é criticada pelos
republicanos, precisamente pela sua componente familiar, não entendemos o
motivo que leva a república a imitar o regime monárquico e a fazer
tábua rasa de um dos seus principais argumentos – a república não
sustenta uma família.
Consultando ainda a Lei n.º 40/2006, de 25 de Agosto, verificamos que no art.º 7.º, o qual enumera uma lista de precedências para efeitos protocolares do Estado português, não se refere ao cônjuge do PR.
Apenas o n.º 2 do art.º 8 alude “aos
cônjuges das altas entidades públicas, ou a quem com elas vivam em união
de facto, desde que convidados para a cerimónia, é atribuído lugar
equiparado às mesmas, quando estejam a acompanhá-las”. Como o PR é uma
alta entidade pública, inclui-se, neste caso, o seu cônjuge, mas é
necessário que este esteja a acompanhar o PR – e não sozinho – e que também tenha sido convidado para a cerimónia.
Acrescente-se que os nºs 2 e 3 do art.º
10.º desta mesma Lei estatuem que o PR “é substituído... pelo Presidente
da Assembleia da República” – e não pelo cônjuge – e que o PR “...não
pode fazer-se representar por ninguém” e qualquer delegado pessoal dele
não goza “de precedência sobre entidades mais categorizadas”.
O actual cônjuge do PR contraria as
posições assumidas pelas mulheres dos Presidentes da República, quer da I
República (1910-1926) quer da II (1926-1974), que não tinham qualquer
papel relevante, estando relegadas para segundo plano, de acordo com a
verdadeira tradição republicana.
Alguém sabe quem foram e como se
chamavam os cônjuges dos Presidentes da I e da II República? E que papel
desempenharam? Se exceptuarmos um ou outro caso verificamos que
desconhecemos por completo a identidade das mesmas, bem como se
participaram nalguma acção de carácter filantrópico, caritativa, etc.,
não existindo praticamente registos da sua passagem por Belém, uma vez
que só muito excepcionalmente apareciam em actos sociais públicos ou
associadas a eventos oficiais, já que a figura principal, a única a
destacar e tinha dignidade constitucional é a do Presidente da
República.
Ao invés, se folhearmos qualquer manual
de história de Portugal verificamos que as rainhas são figuras muito
conhecidas inclusive as que eram apenas consortes.
A república, como sentia a necessidade
de apresentar um modelo oposto ao da monarquia, limitava a exposição
pública do cônjuge do Chefe de Estado. Daí que quando apareciam – em
raríssimas ocasiões – nunca o faziam sós, mas apenas e sempre na
companhia dos maridos pois a figura principal era o Presidente da
República.
Com a III República, a partir da revolução de Abril de 1974, é que surge esta aberração.
Apesar de nada estar previsto na lei
fundamental, a “Primeira Dama” portuguesa, sem se saber muito bem
porquê, começa a auxiliar o Presidente na sua função de representação,
com agenda própria, dirigida por um gabinete, formalizado pelo
Decreto-Lei n.º 28-A/96, de 4 de Abril que, ao arrepio das normas
constitucionais e contra os princípios republicanos, criou o Gabinete de
Apoio ao Cônjuge do Presidente da República, a funcionar no âmbito da
Casa Civil deste órgão de soberania.
O Decreto-Lei n.º 28-A/96, de 4 de Abril
viola a Constituição na medida em que atribui funções “oficiais” a
quem, de acordo com a lei fundamental, as não tem, facto tanto mais
grave por tal figura – que não foi eleita – ser financiada pelos
contribuintes.
Mas, até agora ninguém - nem sequer os paladinos da república - questionou a constitucionalidade daquele diploma.
E esta aberração continua, apesar de já se ter festejado, e pomposamente, o centenário da república.
* na continuação da minha anterior intervenção denominada “Primeira Dama”
publicado por José Aníbal Marinho Gomes em Risco Contínuo
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