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Há boas e más maneiras de começar o ano. Entre as
boas, conta-se a reabilitação das tradicionais Janeiras, que José Barros
e os Navegante levaram ao Olga Cadaval, em Sintra, na véspera do Dia de
Reis. Uma festa com temas tradicionais de Trás-os-Montes, Alentejo,
Beira Baixa e Algarve, onde não faltou, no exterior, fogueira e prova de
queimada galega, herança medieval de aguardente a arder (sim, com fogo
mesmo). Quem assistiu aplaudiu com razão. Porque a memória de Portugal
teve, ali, nota alta.
Entre as más, está a renitência em reconhecer o desconchavo do acordo
ortográfico (AO). No início do ano, um jornal que até aqui (e bem) não o
aplicava, o ’Correio da Manhã’ (CM), cedeu. O pior está menos na
cedência do que na argumentação. “A nossa prioridade”, escreveram dias
antes, “é tornar a comunicação mais fácil”. Mas onde a trapalhada se
insinua é quando, para garantir a tal “comunicação fácil”,
o ’CM’ escreve isto: “Nesse sentido, nas palavras que admitem dupla
grafia, optámos por manter tal como na “escrita antiga” [sic].” Ah, e
escreverão “pára” e não “para”, no verbo parar.
Querem ver a lista? É
uma delícia. Escreverão, de futuro, ceptro e não ’cetro’, amígdala e
não ’amídala’, espectador e não ’espetador’; mas escolhem (porque a
moderna “ortografia” é mesmo ’a la carte’) ’carateres’ em vez de
caracteres,’receção’ em vez de recepção, ’setor’ em vez de
sector, ’conceção’ em vez de concepção, ’cato’ em vez de cacto. Grafia
antiga? Fantástico. Mais fantástico ainda é confundir-se “duplas
grafias” (mesmo ’a la carte’) com grafias de uso corrente em Portugal e
no Brasil há décadas. Ou seja, o ’CM’ orgulha-se (para garantir a tal
“comunicação fácil”) de escrever omnipotente, indemnizar, facto, subtil,
sumptuoso, súbdito, académico, topónimo e
não ’onipotente’, ’indenizar’,
‘fato’, ’sutil’, ’suntuoso’, ’súdito’, ’acadêmico’, ’topônimo’, quando
tais variantes não têm escolha possível. Por que motivo
escreveríamos ’Antônio’ ou ’bebê’ se em Portugal dizemos António e bebé?
Ou ’sutil’, se dizemos e escrevemos subtil? Será isto uma “escolha”?
Não, não é. Mas o mais inacreditável é o ’CM’ dizer que escreverá
aritmética e não ’arimética’, corrupto e não ’corruto’, fêmea e não
‘fémea’, dicção e não ’dição’. Vamos por partes: no Brasil, apesar de
alguns livrecos “modernos” consignarem tais “variantes”, diz-se e
escreve-se aritmética e corrupto. Com t e p. Quanto a “dição”, existe na
verdade, mas não tem nada a ver com dicção. Significa “domínio,
autoridade”, enquanto dicção é o acto ou maneira de dizer ou de
pronunciar. Já “fémea” só pode ser puro delírio de quem não sabe o que
escreve.
A confusão entende-se. O acordo é que não
se entende. Quem anda por aí a brincar ao “acordês” julga que basta
tirar umas consoantes para respeitar o acordo (o dição ’versus’ dicção
deve provir dessa ideia peregrina). Ora, como prova um interessante
documento entregue esta semana ao ministro Nuno Crato (o estudo é de Rui
Manuel Ventura Duarte e um grupo de especialistas e a carta é subscrita
por quase duzentas pessoas), nem mesmo os defensores do AO se entendem.
Uma análise comparativa de várias dezenas de palavras em dicionários,
vocabulários e no próprio AO mostra que a confusão é generalizada. O que
nuns é imperativo noutros é facultativo, onde nuns há norma única,
noutros há grafias duplas, onde uns assinalam PT e BR no uso das
variantes (o que é correctíssimo, até porque identifica o uso real das
grafias), outros ignoram tal distinção. Erros, falsidades, invenções, há
de tudo um pouco para quem queira dar-se ao trabalho de conferir
(http://fr.scribd.com/doc/119430003/Carta-a-Min-Educ-Nova).
Nem de propósito: esta semana também o PCP viu aprovada na Comissão
de Cultura (e por unanimidade!) uma proposta sua no sentido de criar uma
comissão para acompanhar a aplicação do AO, porque “o debate não está terminado e a utilização da grafia resultante do Acordo tem gerado inúmeros discensos entre a comunidade“. E a Sociedade Portuguesa de Autores emitiu um comunicado dizendo que “continuará
a utilizar a norma ortográfica antiga nos seus documentos e na
comunicação com o exterior, uma vez que o Conselho de Administração
considera que este assunto não foi convenientemente resolvido e está
longe de estar esclarecido“. Acordo, disseram? Se existe, está cada vez mais “corruto”. Com sorte, a “arimética” há-de ajudar…
Nuno Pacheco
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