O Tenente da Armada Frederico Pinheiro Chagas, que preferiu o suicídio a render-se aos revoltosos de 5 de Outubro de 1910
«Os oficiais, que se haviam distanciado, voltam-se e vêem o tenente
Frederico Pinheiro Chagas tombando como se fora ferido por uma bala
perdida de longe, o peito da camisola a arder pelo tiro à queima-roupa
dado no coração, mas ainda de pé e o braço erguido a desfechar mais dois
tiros na cabeça, envolto num halo de fumo que saía da nuca, a cair de
olhos já vidrados mas abertos, a rever-se céu azul, como se receasse
esquecer-se da sua bandeira»
« Do D. Carlos transmitem para Escola de Torpedos, pela
telegrafia sem fios, o seguinte: «Queira render-se e proclamar a
República.» Pouco depois chegou o escaler com mantimentos e frescos.
Deviam ser dez e meia. E o patrão do escaler declarou ao primeiro
comandante, sendo ouvido por oficiais e praças: «Esse vapor, que andou
aí, trazia forças do exército, forças do Adamastor e São Rafael
populares armados, que vêm por terra tomar a escola.» Passados cinco
minutos ouve-se um toque de unir, e as forças correm para os seus
sarilhos, armando-se, aos vivas à República. Todos os oficiais correm
também para a frente das praças. O Stockler é visto ali, mas torna a
recolher-se ao quarto.
O primeiro comandante Almeida lima fala às forças dizendo ter pena que
as forças não esperassem mais algum tempo, evitando as sim o acto de
indisciplina que acabavam de praticar. Mas desde que o fizeram, ele que
tinha na escola um oficial prisioneiro considerava-se desde esse momento
seu prisioneiro com a oficialidade.
O sr. Stockler manda pedir ao comandante que o desligue da palavra de honra dada na véspera.
O sargento da força do Pêro de Alenquer comanda:
— Destacamento do Pêro, toca à esquerda! — extremando se assim dos revoltosos.
Ouviam-se as praças mais antigas deste destacamento dizer:
— Nós formámos porque ouvimos tocar a sentido. Não saiu-mos mais nada.
E o sargento tornou, dirigindo-se ao tenente Pato:
— Senhor tenente! O destacamento do Pêro de Alenquer está às
ordens de vossa senhoria.Frederico Pinheiro Chagas, vendo esta atitude
disciplinada e fiel da pequena força do Pêro, acentua:— Temos aqui estas
praças que não se revoltam e não vão com os outros!
Mas, nessa ocasião, o tenente Pato, que era oficial da guarnição do Pêro de Alenquer e a
quem por isso fora confiado o comando dos quarenta marinheiros, comando
que só por esse motivo deixara de ser dado ao tenente Frederico
Pinheiro Chagas; o tenente Pato, que comandava aquela força, ida para
combater os revoltosos, declara-se a favor destes, dizendo:
— Esta gente vai também!…
Instintivamente, num movimento de pasmo, de incredulidade, todos os
oficiais, que ficámos com o comandante, saímos fora da parada, a
acompanhar com a vista aquele último desengano, que dobrava já para a
direita da porta. Nós desviámo-nos para a esquerda, onde fica a ponte e a
cala.
Frederico Pinheiro Chagas retirou os olhos daquela massa revoltosa,
rodeou o lugar como que à procura do que restava, e dando com os
torpedeiros atracados exclamou:
— Mas ainda temos ali os torpedeiros!…
— A gente dos torpedeiros — informou Almeida Henriques — desembarcou toda!
Frederico Pinheiro Chagas voltou costas, deixou cair os braços, e duas
ou três vezes passou diante dos camaradas, sem os ver, em passeios
alheados, sem uma palavra, sem um olhar, lanceado de dor, uma coragem sobre que acabava de desabar a pedreira da
derradeira esperança, um carácter a que tinham esmagado toda a acção, o
sofrimento másculo duma honra manietada.
O telefone do Arsenal teve-o manietado em casa, o mais tempo que pôde,
dizendo-lhe: «Espere ordens! Não venha.» Mas o tenente Frederico
Pinheiro Chagas não aceitou o ter que alegar para assistir de terra à
revolta do mar, e foi para a Majoria. E todas essas horas não fizeram
mais do que dar a esse moço com a coragem e a honra em flor, a inacção e
a tortura e um carácter que pedia riscos e a quem ofereciam conselhos
para inválidos.Ao passo que as dificuldades se avolumavam e que a
revolta crescia, dentro daquele peito crescia ainda mais ímpeto e
coragem para a dominar.
Clareou a manhã e escureceu a fé.
Novas horas de hesitação, de inércia, de sofrimento para um bravo como Frederico Pinheiro Chagas.
As praças que se apresentavam eram dadas de presente à Revolução.
Ele, Frederico Pinheiro Chagas, era tido ali inactivo, como seja tivesse caído prisioneiro nas mãos da Revolução.
E ele a sentir como era fácil actuar, como era possível vencer, como era digno lutar.
E o seu carácter e a sua bravura e a sua lealdade a sentir-se num
pesadelo, ser sorvido pela imobilidade, naquela angústia do «enlizement»
de Victor Hugo, que calca o lodo com um pé, e enterra mais o outro,
levanta esse e a deslocação do peso some a outra perna, até que o lodo
cobre os joelhos, toma conta do ventre, avança como maré pela pedrilha
do cais, sobe, sobe, comprime-já o coração, vai chegar à boca, cobre os
olhos e, então, tudo é cor de lodo, e não há força, nem valor, nem
coragem — é a morte numa asfixia de lodo!…
Como Victor Hugo descreve bem essa tortura!
Como o tenente Frederico Pinheiro Chagas deve ter relido esse símbolo
nessas horas em que ele se debateu com o telefone do Arsenal, com a
Majoria, ele a pedir movimento, a ordem a exigir-lhe inércia.
Enquanto teve um fio de resistência em que acreditar, acreditou.
Enquanto teve uma farfalha de esperança, esperou.
Mas cada resistência que lembrava lhe inutilizavam, cada esperança que lhe surgia sumia-se.
Tudo, tudo, tudo, uma manhã, um dia, uma noite, outra manhã!
O Frederico sentou-se numa pedra com o seu imediato e dai por diante só disse:
— Eu não me rendo!
Almeida Henriques ergueu-se com os oficiais que ali estavam (Elísio
Leitão, Abranches da Silva, Castro Ferreira, dr. Abel de Carvalho,
Macedo e Couto e Vieira de Matos), deu uns passos na direcção da casa do
comandante que desaparecera desde a saída das forças.
Frederico Pinheiro Chagas levantou-se também, mas deixou-se ficar.
«Que lhe resta! O comandante da escola entregou-se com a oficialidade,
entregando-o também a ele. Todos os últimos homens da esperança se
quebraram. Os últimos quarenta homens, que lembraram ao oficial que os
comandava que tinham vindo ali para combater os revoltosos, foram também
levados por esse oficial! Os torpedeiros estão ali, mas sem tripulação!
Que lhe resta? Render-se?… E passa-lhe pela alma a figura íntegra do
pai. É a aparição da Honra! Render-se, não!»
Ouve-se um tiro.
Os oficiais, que se haviam distanciado, voltam-se e vêem o
tenente Frederico Pinheiro Chagas tombando como se fora ferido por uma
bala perdida de longe, o peito da camisola a arder pelo tiro à
queima-roupa dado no coração, mas ainda de pé e o braço erguido a
desfechar mais dois tiros na cabeça, envolto num halo de fumo que saía
da nuca, a cair de olhos já vidrados mas abertos, a rever-se céu azul,
como se receasse esquecer-se da sua bandeira, ele, ele que fora o último a abandoná-la e o primeiro a morrer por ela! Almeida Henriques ajoelhou. Batia ainda o coração.
E os sargentos da Escola de Torpedos que não tinham querido seguir os
revoltosos transportaram o honrado oficial para o primeiro depósito da
escola, à entrada da parada.
O dr. Abel de Carvalho cumpriu o seu dever de médico, como se
acreditasse na possibilidade de viver quem não quisera sobreviver à
Pátria.»
O Diário dos Vencidos, Joaquim Leitão
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