Por que razão não deve um rei ser mais do que um símbolo? Porque os
símbolos têm uma força que os simples mortais não atingem. Um rei
constitucional tem uma função única: representar a sua comunidade, o
mesmo significa representar-nos a nós, ao que estiveram antes de nós e
aos que virão a seguir a nós. Achar que o rei só o será se exercer o
«mando», porque essa é a nossa «tradição», ou por nos representar a
todos, é fazer dele uma vulgar peça do xadrez político, um agente igual
aos demais, com a única diferença de que tirar-lhe o «mando» das mãos
será muito mais difícil do que de qualquer outro governante. Por outro
lado, a nossa tradição do rei do «mando», quando a tivemos, mais não foi
do que a consequência de uma influência (nefasta, a meu ver) do
espírito do Ancien Régime francês, que o Marquês eternizaria na Avenida
da Liberdade, uma pífia sombra dos Champs Élysées. Antes disso, os
nossos reis foram conquistadores, guerreiros, criaram e consolidaram o
reino, mandavam, é certo, mas o poder público era ainda uma força bruta
que não conhecia os limites impostos pela natureza moral e transcendente
do homem, ditados pela força da razão e da razoabilidade, que só tempos
mais tardios lhe haviam de trazer, e que muito nos arrependeríamos hoje
se os deixássemos de ter. Também aqui, a «tradição» não foi só nossa,
mas de todos os rei e reinos do Renascimento e da modernidade
pós-medieval. O poder era ainda uma pedra bruta e áspera a delapidar.
Não será, com certeza, por aqui que retiraremos lições para o modo como
hoje queremos viver.
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O modelo da monarquia constitucional, no qual o rei reina, mas não governa,
é, na verdade, o único que poderá equilibrar as instituições
portuguesas e conferir seriedade e respeitabilidade ao país. Um
rei-símbolo, isto é, um rei constitucional, tem o poder imenso de
refrear, com a naturalidade daquilo que ele mesmo é e representa, os
vícios e defeitos que o uso do poder traz a qualquer sociedade. Como faz
ele isso? Precisamente não agindo politicamente, estando
constitucionalmente inibido de fazer política mesmo que abdique, não
sendo um actor político que, por esse facto, seja visto e tratado de
igual para igual por quem tem interesses de circunstância a defender. O
poder disto é imenso. Como se apresentará a um rei, a alguém que vota a
sua existência à comunidade, sem que possa agir politicamente sobre essa
comunidade, e que, por isso, não pode senão ter o consenso público
de todos (pela razão elementar de que nada que ele possa fazer poderá
gerar dissensão), um político, um governante, um chefe de partido, um
sindicalista, se não com, pelo menos, a mesma seriedade que o seu
interlocutor lhe transmite? E como não poderá deixar de responder
positivamente um qualquer desses agentes políticos a quem o rei lhe
apresente um pedido que não possa ser senão de conciliação com o todo,
melhor, com a comunidade que o rei-símbolo encarna? Imagina-se algum
primeiro-ministro inglês, ou espanhol, ou sueco, que assuma um
compromisso com o representante da sua coroa e intencionalmente se não
esforce por o cumprir? Ou algum protagonista político que vá chantagear o
rei, perante a comunidade, para que ele lhe dê uma vantagem política
sobre um adversário, quando, ainda por cima, isso lhe está vedado?
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De um rei de uma sociedade livre não se espera que governe, menos
ainda que tome decisões de soberania. Isso só será legítimo quando
estiver em perigo a própria comunidade, e isso será, então, um gesto
quase reflexivo de legítima defesa e não uma decisão de exercício poder.
Não será uma decisão de A em detrimento de B, mas uma atitude que
beneficiará igualmente A, B, C e D. Foi o que sucedeu, por exemplo, com
Juan Carlos, na crise da tentativa de golpe de estado de 1981. Nenhum
rei que não fosse um símbolo respeitado por todos conseguiria evitar a
guerra civil que esteve para acontecer. De resto, do mesmo modo que não
se espera que um rei do Oriente, dos que ainda hoje são considerados
deuses vivos, comece a operar milagres e prodígios paranormais, também
não deve ter-se a expectativa de que um rei deva governar a sua
comunidade, isto é, se governe a si mesmo. Isso fica para os políticos,
que hoje pensam uma coisa e amanhã coisa diferente. O rei constitucional
terá de os acolher a todos, tendo apenas como único critério de
ingerência a obrigação moral de subsistência e respeito pela comunidade.
Rui A, no blogue Portugal Contemprâneo
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