Meu Senhor:
Quando Vossa Alteza chegou à idade em que a superintendência da sua
educação tinha que ser entregue a um homem, houve por bem El-Rei
nomear-me Aio do Príncipe Real. Foi Sua Majestade buscar-me às fileiras
do Exército. Não escolheu por certo o militar de mais valor, mas
simplesmente aquele a quem uma série de acasos felizes mais ensejo dera
de provar que sabia, custasse o que custasse, obedecer ao que lhe era
ordenado e que também sabia, doesse a quem doesse, fazer cumprir as
ordens que dava.
Não por certo a Vossa Alteza como filho e como súbdito, e menos a mim
como soldado, compete apreciar e criticar as determinações de El-Rei. A
Vossa Alteza como a mim, deu Sua Majestade uma ordem, a ambos nós cumpre
obedecer-lhe e nada mais. Mas para bem lhe obedecer não basta ver-lhe a
letra, é necessário estudá-la, descortinar-lhe o espírito. Escolhendo
um soldado para vosso Aio, que fez El-Rei? Subordinou a educação de
Vossa Alteza ao estado em que se acha o País. Nesta época de dissolução,
em que tão afrouxados estão os laços da disciplina, entendeu Sua
Majestade que Portugal precisava mais que tudo de quem tivesse vontade
firme para mandar, força para se fazer obedecer. E como ninguém pode
ensinar o que não sabe, o que não tem praticado, foi El-Rei procurar o
vosso Aio à classe única em que se encontra quem obedeça sem reticências
e mande sem hesitações.
Por esse motivo, o primeiro dos meus deveres é fazer de Vossa Alteza um
soldado. É Vossa Alteza Príncipe, há de ser Rei; ora, Príncipe e Rei que
não comece por ser soldado, é menos que nada, é um ente híbrido cuja
existência se não justifica. Há poucos anos andava pela Europa, num
exílio vagabundo de judeu errante, um Imperador que num momento de crise
esqueceu que o seu título vinha do latim "Imperator", epíteto com que
se saudavam os vencedores, e que se não vence sem desembainhar a espada
-- sine sanguine victoria non est. Por um erro igual já subiu um Rei ao
cadafalso e outros foram despedidos do trono para o exílio sempre
doloroso e humilhante. Príncipe que não fôr soldado de coração, fraco
Rei pode vir a ser.
O que foram na verdade os Reis primitivos? Guerreiros audaciosos que os
companheiros de armas levantaram nos escudos acima das suas cabeças. E o
que foi o maior dentre os Reis, aquele cujo nome ribomba como um trovão
na história deste século? Um militar ambicioso que, elevado ao Império
pelos seus soldados, não se deu por contente enquanto não pôs o pavês
que o levantara em cima das costas dos outros Reis da Europa que lhe
serviram de pés ao trono. E entretanto, a despeito da sua incomparável
grandeza de ânimo, a despeito das qualidades únicas de mando com que a
Providência o dotara, talvez para castigo de muitos, por certo para
exemplo de todos, caíu esse colosso e o grande Imperador foi derrubado
por esses mesmos que tanta vez vencera. Faltava-lhe a tradição da
Monarquia, da linhagem Real, que cimenta e consagra a autoridade dos
Reis legítimos.
Mas nessas mesmas linhagens Reais só foram grandes os que souberam
lançar mão da espada sempre que lhes foi necessário. Por isso, repito,
primeiro que tudo tem Vossa Alteza que ser soldado.
Aprenderá a sê-lo na história de seus avós. Este Reino é obra de
soldados. Destacou-o da Espanha, conquistou-o palmo a palmo, um príncipe
aventureiro que passou a vida com a espada segura entre os dentes,
escalando muralhas pela calada da noite, expondo-se à morte a cada
momento, tão queimado do sol, tão curtido dos vendavais como o ínfimo
dos peões que o seguia. Firmou-lhe a independência o Rei de "Boa
Memória", que tantas noites dormiu com as armas vestidas e a espada à
cabeceira, bem distante dos regalos dos Paços Reais. E para a formação
de vossa Casa concorreu com o ele o mais branco dos seus guerreiros, que
simbolizou e resumiu em si quanto havia de nobre e puro na História
Medieval, um herói e um santo. Mais tarde o Príncipe Perfeito, depois de
haver mostrado que sabia terçar lanças em combate com o melhor dos
cavaleiros, depois de haver abatido de vez todas as cabeças que se
erguiam por demais altivas perante a Corôa Real, deu pela força da sua
vontade de ferro um impulso de tal ordem às nossas naus, que foram ter
ao Cabo da Boa Esperança, abrindo a Portugal o caminho por onde chegou
ao apogeu da glória. Soldados, se lhes pode bem chamar a estes, porque
tiveram o desapego da vida, a força do mando, a obediência cega àquilo
que acima de tudo deve imperar nos Reis -- a ideia fixa e pertinaz da
glorificação do seu nome e da grandeza do Reino onde Deus os fez os
primeiros de entre os homens.
Para não ser injusto nem ingrato, não deve Vossa Alteza lembrar-se
somente dos felizes porque nem só eles foram soldados. Houve um Rei de
Portugal que, não podendo ser vencedor, soube morrer herói. Não tendo
alcançado a vitória ambicionada, procurou a morte gloriosa. "A liberdade
Real só se perde com a vida", foram as últimas palavras que se lhe
ouviram e do cativeiro infamante salvou-o a morte, única libertadora
invencível porque não há algemas que prendam um morto. Errou, é certo,
mas a morte de valente, expiatória e heróica, redime os maiores erros.
Bem merece ele o nome de soldado, bem estudada e meditada deve ser a sua
História, porque pelo estudo e pela meditação se formam as almas e a
alma de um Príncipe para tudo deve estar temperada, até para as maiores
desgraças.
Soldado também e como poucos, foi D. Pedro IV. Trabalhou e combateu como
soldado e teve a audácia precisa nos lances decisivos, a resignação
estóica nas mais dolorosas crises, a presença de espírito nas situações
mais difíceis, a decisão rápida e pronta para aproveitar as vitórias. E
tanto se lhe enraizaram na alma os brios de soldado que, quando se viu
insultado, apupado sem poder desembainhar a espada que tão bem o houvera
servido, estalou de dor. As chufas com que o populacho cobarde e
ingrato lhe pretendeu enlamear a farda, foram-lhe direitas ao coração,
mataram-no.
Estude Vossa Alteza a História desses seus Avós. Leia-a, relei-a,
medite-a, estude-a, meta-a bem na cabeça e no coração. Na convivência
deles aprenderá Vossa Alteza a ser como eles, forte, justo, simples e
verdadeiro. E bem compenetrado do que eles fizeram, conhecendo-lhes a
vida dia a dia, sentirá Vossa Alteza que deles vem, que é um deles.
Assim sonhará com futuros de glória que se assemelhem a esse passado de
grandeza, e sonhar assim é uma felicidade e uma força. Triste do homem
que só cuida do presente, que só preza a intimidade dos vivos. Pobre
daquele que precisa adormecer para sonhar com o futuro. No olhar saudoso
para o que já passou, no imaginar o que há de vir se vai formando a
alma, se lhe vão apurando as qualidades, desenvolvendo a força. E
chegada a ocasião de as aproveitar, de as pôr em acção, cai-se-lhe em
cima como o milhafre sobre a presa e não se deixa escapar. A ciência da
vida assemelha-se à arte da guerra, em que numa e noutra é mais preciso
que tudo aproveitar as ocasiões e para o fazer é necessário o exercício
constante, a trenagem; ora, o estudo e a meditação constituem a trenagem
do espírito.
Nasceu Vossa Alteza numa época bem desgraçada para este País. Foi talvez
um favor de Deus porque mais na desventura que na felicidade se prova a
força do carácter. Em todo o caso é bem certo, meu Senhor, que a vossa
história tem sido muito triste porque, convença-se bem Vossa Alteza, os
Príncipes não têm biografia, a sua história é, tem de ser a do seu povo.
Nessa história, entretanto, há algumas páginas que Vossa Alteza pode
ler sem que lhe corem as faces de vergonha, sem que lhe subam aos olhos
lágrimas esprimidas do coração triturado de humilhações. Essas poucas
páginas brilhantes e consoladoras que há na história do Portugal
contemporâneo, escrevêmo-las nós, os soldados, lá pelos sertões da
África, com as pontas das baionetas e das lanças a escorrerem sangue.
Alguma coisa sofremos, é certo; corremos perigos, passámos fomes e sedes
e não poucos prostraram em terra para sempre as fadigas e as doenças.
Tudo suportámos de boa mente porque servíamos El-Rei e a Pátria, e para
outra coisa não anda neste mundo quem tem a honra de vestir uma farda!
Por isso, nós também merecemos o nome de soldados; é esse o nosso maior
orgulho.
Tudo é pequeno neste nosso Portugal de hoje! O mar já não é curral das
nossas naus, mas sim pastagem de couraçados estranhos; foram-se-nos mais
de três partes do Império de além-mar e Deus sabe que dolorosas
surpresas nos reserva o futuro. Não tiveram, portanto, as guerras em que
agora temos andado, o brilho épico dos feitos dos nossos maiores. Mas
no campo restrito em que operámos, com os poucos recursos de que
dispúnhamos, não fizémos menos nem pior do que outros bem mais ricos e
poderosos.
A que devemos este resultado? A que no homem do povo em Portugal ainda
se encontram as qualidades de soldado: a resignação, a coragem fria e
disciplinada, a confiança nos superiores e, mais que tudo, a
subordinação. E é preciso que Vossa Alteza, soldado por dever e direito
de nascimento, se possua bem da ideia de que a subordinação é a primeira
de entre as virtudes militares. Já a tenho ouvido alcunhar de renúncia
da vontade. Ora, ninguém como o soldado carece de força de vontade,
porque mais que em coisa alguma se demonstra ela na prática da
obediência. Renunciar ao capricho, ao egoísmo, à indolência, a tudo
quanto o vulgar dos homens mais aprecia e estima, ter por único fim
servir bem, por único enlevo a glória, por único móvel a honra e a
dignidade, não é renúncia da vontade. E se nós que somos soldados
somente desde o dia em que nos alistámos e podemos voltar à classe civil
de onde saímos, precisamos para tudo de muito querer e saber querer,
quanto mais um Príncipe para quem nascer foi assentar praça e que só
pode ter baixa para a sepultura!
De vontade e vontade de ferro precisará Vossa Alteza no duro mister para
que Deus o destinou. Houve Reis, meu Senhor, que para desgraça dos seus
povos adormeceram no trono em cujos degraus haviam nascido e nesse
dormir esqueceram a missão que lhes cumpria desempenhar. No fim do
século passado, o povo francês sacudiu-os de forma tal que os deveria
ter acordado para sempre e, desde então, Príncipe que dormitasse no
trono acordava no exílio. Assim deve ser. Castiga-se a sentinela que se
deixa vencer pelo sono e o Rei é uma sentinela permanente que não tem
folga porque, nomeado por Deus, só Ele o pode mandar render e então
envia-lhe a morte a chamá-lo ao descanso. Enquanto vive tem o Rei de
conservar os olhos sempre bem abertos, vendo tudo, olhando por todos.
Nele reside o amparo dos desprotegidos, o descanso dos velhos, a
esperança dos novos; dele fiam os ricos a sua fazenda, os pobres o seu
pão e todos nós a honra do país em que nascemos, que é a honra de todos
nós!
Para semelhante posto só pode ir quem tenha alma de soldado. Porque ser
soldado não é arrastar a espada, passar revistas, comandar exercícios,
deslumbrar as multidões com os doirados da farda. Ser soldado é
dedicar-se por completo à causa pública, trabalhar sempre para os
outros. E para se convencer, olhe Vossa Alteza para o soldado em
campanha. Porventura vê-o só a marchar e a combater? Cava trincheiras,
levanta parapeitos, barracas e quartéis, atrela-se às viaturas, remenda a
farda, cozinha o rancho e o que tem de seu trá-lo às costas, na
mochila. Desde os misteres mais humildes até ao mais sublime, avançar de
cara alegre direito à morte, tudo faz porque todo o trabalho despido de
interesse pessoal entra nos deveres da profissão. Trabalho gratuito,
sempre, porque o vencimento do millitar, seja pré, soldo ou lista civil,
nunca é remuneração do serviço, por não haver dinheiro que pague o
sacrifício da vida.
É assim que, por mais que espíritos desorientados tenham querido
obliterar as tradições de honra do Exército, a profissão entre todas
nobre, foi, é e há de ser sempre a militar porque nela se envolve tudo
que exige a anulação do interesse individual perante o da colectividade.
É por isso que ninguém como o Rei tem de se esquecer de si para pensar
em todos, por isso que ninguém como Ele tem de levar a abnegação ao
maior extremo, ninguém como ele precisa de ser soldado na acepção mais
lata e sublime desta palavra, soldado pronto da recruta em todas as
armas, instruído em todos os serviços, desde o de cavalaria que, numa
galopada desenfreada através de uma saraivada de balas, vai completar
com a carga a derrota do inimigo, até ao do maqueiro que vai buscar os
feridos à linha de fogo, ao enfermeiro que deles cuida na ambulância.
Tão bom Rei, tão bom soldado foi D. Pedro V nos hospitais, como outros
nos campos de batalha, porque a coragem e a abnegação são sempre grandes
e nobres, seja onde fôr que se exerçam, e tudo que é grande e nobre é
próprio de Rei e de soldado.
Não faltará ensejo a Vossa Alteza de revelar aquelas qualidades. Não lhe
escassearão por certo provações e cuidados, revezes que trazem o
desconforto ao espírito, lances dolorosos que desconsolam da vida. Para
todos eles carece Vossa Alteza de estar preparado, temperado pela
educação, pelo estudo dos bons exemplos, pela firme vontade de vir a ser
um Príncipe digno desse nome e do da sua Casa. E para ser Príncipe é
preciso primeiro que tudo ser Homem.
Se para descanso de seu espírito vaticinasse a Vossa Alteza um futuro
risonho de despreocupações e gozos, faltaria por completo ao meu dever.
Ao escolher-me para vosso Aio, disse-me El-Rei: "Faze dele um homem e
lembra-te que há de ser Rei". Proporcionando a Vossa Alteza o
conhecimento do que fizeram em África os seus mais leais servidores,
apontando-lhe com seu exemplo, procurando temperar-lhe a alma para as
mais duras provas por que pode vir a passar, não faço mais que cumprir
as ordens de El-Rei e procurar, como tenho sempre feito, corresponder à
confiança de Sua Majestade. A Vossa Alteza cumpre realizar as esperanças
de seu Augusto Pai e nosso Rei, as esperanças de todos os Portugueses.
Que Deus o guie e proteja nesse difícil e glorioso caminho, é o mais ardente voto do Seu Aio muito dedicado
Joaquim Mouzinho