O Centenário da República, comemorado com uma boa dose de
celebração palavrosa e inócua, não se pode dizer que ficasse reduzido a esses
momentos festivos e passageiros que assinalam a passagem de todas as grandes
datas. O acontecimento distinguiu-se por uma verdadeira torrente de exposições,
artigos, conferências, debates e comentários, em todos os meios dotados de
elevada ou reduzida visibilidade. A república ficou verdadeiramente exposta aos
olhos do público, e com tal abundância de imagens que se poderia suspeitar de
uma autêntica reconciliação com o passado, perdidos os pudores que
caracterizaram por tanto tempo as relações do republicanismo com o seu passado.
Mas se as imagens foram muitas, também as ausências o foram, e a torrente de
dados posta à vista de todos veio sempre envolta em espessa nuvem de
explicações, justificações, interpretações e dissertações, que mostram estarmos
ainda a meio de um tortuoso caminho, onde se enfrentam as escolas de pensamento
que pugnam pelo domínio da memória. Para se perceber o significado das
comemorações centenárias, e a sua importância para as correntes intelectuais que
tutelam a sociedade portuguesa, é preciso lançar os olhos sobre o que viram e
contaram os historiadores nos últimos cinquenta anos.
A
evolução dos estudos históricos, no tocante à república portuguesa, assemelha-se
aos movimentos de um exército que abandona território conquistado, sob a
condução de hábeis oficiais que têm ordem de recuar tão lentamente quanto
possível, cedendo apenas aqueles pontos cuja defesa se tenha tornado
insustentável.
Até
1960, a
história da república foi evocada, estudada e publicada em obras de carácter
comemorativo, inspiradas por fogosos militantes do republicanismo anti-fascista,
como Lopes de Oliveira, David Ferreira, Carlos Ferrão e Raul Rego. Estes
aguerridos defensores da república faziam da sua escrita um acto de resistência
ao Estado Novo, tendo por objectivo confesso vincar o contraste
entre a liberdade que vigorara até 1926 e a repressão que se abatera sobre a
nação portuguesa desde o golpe de 28 de Maio desse ano. Salvo raras excepções,
de que a mais importante foi a “História de Portugal” dirigida por Damião Peres,
as obras que se debruçavam sobre a república e o republicanismo tinham, pois,
abertas intenções apologéticas, justificativas ou comemorativas, e defendiam com
a mais crédula e ingénua satisfação a grandiosa “obra” do regime a que chamavam
a “república democrática”.
A
ideia republicana tinha sido “sementeira de ideias e princípios que frutificou esplendidamente”. Os políticos republicanos eram “exemplo de isenção,
desinteresse, devoção cívica e fraterna compreensão das necessidades dos seus
compatriotas”. E, proclamada a república, o país inteiro não só “aderiu ao novo
regime com um entusiasmo indescritível”, como “ofereceu ao mundo um espectáculo
impressionante de unidade que irmanou as classes e os indivíduos num amplexo
confiante”. Assim se contava a implantação do regime na “História da República”
de Carlos Ferrão, o mais importante e volumoso estudo comemorativo do
cinquentenário da revolução de 5 de Outubro.
É
pelos meados da década de 1960 que o estudo da implantação da república, do
ideário republicano e dos principais protagonistas da mudança de regime, ganha
espaço próprio nos estudos universitários, pela mão de novas gerações com
ligação efectiva ao republicanismo, embora empenhadas na construção de uma
historiografia com cariz científico. Os estudos de Oliveira Marques, que
dominarão a investigação académica nesta matéria durante os 20 anos seguintes,
vão-se publicando desde finais dos anos 60 a um ritmo acelerado, acompanhados da
publicação de grande massa de documentos, o que consolida a sua posição como
autoridade suprema no assunto. Dirigindo equipas universitárias que encaminhou a
estes estudos, é ele que eleva a 1ª república à categoria de tema apropriado a
teses de mestrado e doutoramento, revelando a importância e extensão do trabalho
a fazer. Mas apesar dos sólidos alicerces documentais e estatísticos em que se
apoia, esta escola de investigação histórica caracteriza-se ainda por um tom
benévolo, em que facilmente se reconhece a vontade de fazer testemunhar os
documentos e os números a favor da república. Oliveira Marques tenta dar uma
eloquência republicana aos números que pacientemente compulsou, propondo, por
exemplo, um inédito conceito de “representatividade” tirado do número de
deputados. O primeiro parlamento da república teria, segundo ele, maior
representatividade que os da monarquia, porque o número de 234 deputados
componentes da Assembleia Nacional Constituinte significava a existência de um
deles por cada 27 000 habitantes do país, enquanto anteriormente havia 1 por
cada 40 000 habitantes. Este argumento pareceu-lhe tão bom que o repetiu em meia
dúzia de obras, embora reconhecendo que essa presumível representatividade durou
poucos meses, pois os 71 membros do senado foram escolhidos entre os 234
deputados, passando a haver, pois, um deputado por 36 000 habitantes. E depois
de reconhecer que a república restringiu em muito o sufrágio, ao abolir o
direito de voto dos analfabetos, conclui, mesmo assim, que o novo regime,
ficando ainda longe do sufrágio universal, representou um grande avanço no
respeitante à representação da vontade nacional. Com os documentos publicados
operou-se o mesmo método de selecção. Vendo em Afonso Costa “o mais hábil
e dotado dos estadistas da República”, Oliveira Marques interpreta o pensamento
e as intenções deste político a partir dos seus discursos parlamentares,
concluindo que a tolerância era o mais importante dos seus princípios, e o povo
miúdo a sua grande preocupação.
A
publicação da tese de doutoramento de Vasco Pulido Valente, “O Poder e o Povo”,
em 1974, fez o efeito de uma granada explodindo no meio de um exército bem
alinhado. Recusando-se a ver qualquer tipo de idealismo tanto no campo
republicano como no monárquico, este autor, com a sobranceria que o tornou
famoso, submete toda a época da propaganda e proclamação da república a uma
análise irónica, em que os actores são caracterizados como um bando de
ambiciosos sem escrúpulos, cínicos e hipócritas, que se instala no poder
substituindo outro bando com as mesmas características. Mas os pontífices da
historiografia académica procuraram limitar os efeitos destrutivos desta obra,
apontando-lhe inúmeros defeitos de método, e atribuindo-lhe uma classificação
depreciativa, afixada nos manuais e guias de estudo que orientaram muitas
gerações de estudantes. “Trabalho altamente discutível, quer no método
utilizado, quer nas premissas e nas conclusões apresentadas”, foi como o “Guia
de História da I República”, de Oliveira Marques, classificou “O Poder e o
Povo”, repetindo-se este veredicto, palavra por palavra, em várias obras
publicadas pela equipa do mesmo professor.
Nos
anos 80 a
Faculdade de Letras de Lisboa abriu uma nova frente da historiografia
republicana, sob a orientação do professor João Medina, autor e coordenador de
extensa produção científica, de que merece destaque uma “História de Portugal”
em 15 volumes, profusamente ilustrados. Esta escola deu um passo assinalável no
abandonar de posições tradicionais da historiografia republicana,
e fê-lo porque julgou ter encontrado a justificação fulcral de todos os “erros”
que mancharam a vida do regime: Os “adesivos”, tema predilecto desta escola
historiográfica, são a causa e a justificação dos “fracassos” da república.
Foram eles, com a sua rapacidade materialista, que corromperam o idealismo
republicano, segundo a interpretação do professor Medina. Mantendo-se fiel ao
núcleo central do republicanismo, isto é, à presunção do idealismo como
característica distintiva da aspiração republicana, reconhece João Medina que “a
ambiciosa revolução sonhada se gorou” e que a república foi um “sonho
progressivamente apodrecido”, falando ainda do “caos do decepcionante regime
novo”. Ao contrário dos seus antecessores, não se perde na defesa das leis
anticlericais nem na negação de episódios sangrentos, que condena com duras
palavras. Mas da podridão do regime faz responsável suprema a legião dos novos
convertidos, daqueles que abandonaram a monarquia: “aí está a legião dos
Adesivos, a grunhir às portas do novo regime proclamado em 1910, forçando os
seus portões, entrando por eles dentro, conspurcando os seus sonhos de pureza e
barrela, sujando tudo e todos”.
Nos
anos 90 a
proliferação dos cursos universitários, das teses de mestrado e de doutoramento,
fez nascer autênticos especialistas em aspectos parcelares da história da
república, produzindo-se então importantes trabalhos sobre o movimento operário,
o sidonismo, o sistema eleitoral e o caciquismo, a participação na guerra, a
situação das mulheres e a questão religiosa. O efeito geral destes trabalhos foi
o conhecimento pormenorizado da acção republicana em vários domínios,
desvanecendo-se na maior parte deles a possibilidade de uma interpretação
idealista, face à documentação publicada. Afonso Costa aparece
retratado como o maior inimigo do movimento operário, o “racha-sindicalistas”,
como lhe chamavam os jornais. E ao mesmo tempo vê-se elevado ao lugar de supremo
cacique eleitoral, depois de minuciosos estudos se terem debruçado sobre as
eleições na I república.
Enquanto se fazia uma pormenorizada devassa da vida política no regime
republicano, vários historiadores ligados ao Instituto de Ciências Sociais, como
Rui Ramos, Vasco Pulido Valente, Maria Filomena Mónica e Maria de
Fátima
Bonifácio, publicaram estudos sobre o fontismo, o franquismo, o
reinado de D. Carlos e a transição para a república, onde transpareciam muitos
dos benefícios trazidos ao país na vigência do regime monárquico, e a lastimável
situação a que a república reduziu a nacionalidade portuguesa.
A
aproximação do centenário da república foi vista desde cedo, nos meios que
cultivam a herança republicana, como a oportunidade de a apresentar renovada,
infundindo-lhe vigor e cativando para ela novos admiradores. O
republicanismo maçónico mais ortodoxo, representado na Associação República e
Laicidade, apresentou em 2008 o seu projecto de comemorações,
incluindo nas tarefas a cumprir o combate à “ideia negativa”sobre a 1ª
república, que, segundo eles, o Estado Novo difundira e a ignorância popular
conservara até aos nossos dias. Mas a tentativa de associar a visão “negativa”
da I república à ignorância popular não colheu apoios nos meios universitários,
e os historiadores convocados a pronunciarem-se sobre a matéria da sua
especialidade exprimiram-se com científica contundência a respeito dos fracassos
do regime, o que comprova a perda de influência da perspectiva maçónica nos
círculos académicos. Houve uma outra força ideológica, com peso na universidade
e na comissão oficial das comemorações, que desde 2009 procurou traçar os
limites e os contornos de uma revisão da história da república. O professor
Fernando Rosas e a professora Fernanda Rolo, sentindo a necessidade de barrar o
caminho a uma “corrente monárquica e conservadora” que em 2008 se manifestara na
vida pública portuguesa, por ocasião do centenário do regicídio, reuniram a
equipa de investigadores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e
apresentaram a versão universitária e republicana de uma nova “História da
República”. Na introdução desta obra denuncia-se a existência da dita “corrente
monárquica e conservadora”, e acusa-se a mesma de copiar as teses do Estado Novo
a respeito da I República, afirmando-se que seria trágico se prevalecessem, nas
comemorações do centenário, interpretações como aquela. E em seguida,
pretendendo construir uma nova síntese da história da república, adianta-se
desde logo uma interpretação, demonstrando o carácter moderno e sociologicamente
necessário do novo regime. Deixa-se cair a tese da representatividade
democrática da república, pondo-se em lugar dela a adequação do regime às novas
classes industriais e urbanas surgidas em finais do século XIX, enquanto se
proclama a decadência “inexorável” do regime monárquico, a sua falta de
legitimidade e o seu carácter oligárquico. Mas nem todas as teses desta
introdução se mostram consistentes ao longo das páginas que se lhe seguem, e o
desenvolvimento dos temas veio por vezes revelar a fragilidade das hipóteses
avançadas. Os coordenadores da obra afirmam, por exemplo, que a opção do Partido
Republicano Português pela conquista violenta do poder foi tomada depois de lhe
ter sido “bloqueada a via eleitoral”. Mas vários colaboradores deste volumoso
livro falam dos triunfos eleitorais do PRP e da sua contínua progressão nas
urnas, ao longo dos anos que precederam o 5 de Outubro.
Se
as teses deste novo republicanismo universitário não conseguiram converter todos
os membros da equipa reunida em 2009, menos ainda conseguiram impor-se aos
historiadores que saíram do seu recolhimento em 1910 e tomaram a palavra em
todos os púlpitos e tribunas espalhados pelo país, difundindo a sua sabedoria a
um povo subitamente disposto a ouvir falar da república. Os livros, artigos e
conferências que se sucederam em enxurrada, foram ainda caracterizados por
grande temor reverencial, respeitando quase sempre os títulos de idealista e
sonhador que o activismo republicano se atribuiu a si mesmo. Falou-se de
esperanças traídas, de erros, violência, golpismo e conspiração, desastre,
desilusão, mas sempre tendo por pano de fundo a presunção de pureza, inocência e
generosidade nas intenções. Nos artigos que o “Público” apresentou em Setembro
deste ano, os professores Fernando Rosas e Fernanda Rolo trazem uma nova
interpretação do fracasso da república, falando dos seus erros capitais, dos
seus “pecados”, e procurando explicar como foi que os descaminhos do regime, a
restrição e manipulação do sufrágio e muitos outros erros políticos, lhe tiraram
o apoio popular e tornaram o regime “presa fácil das direitas
antiliberais”. Verifica-se assim que, mesmo depois de ter dado os mais duros
desmentidos a tudo o que prometeu – liberdade de imprensa, sufrágio universal,
pacifismo, federalismo, apoio às classes humildes – o regime republicano
continua a ser descrito com a linguagem da inocência: ele, apesar dos meios
violentos que sempre usou, apesar dos votos que manipulou, dos padres que
perseguiu e da repressão que empregou contra o movimento sindical, foi “presa
fácil” de outros quadrantes ideológicos, que se presumem predadores, e portanto
mais agressivos ou desonestos por natureza, enquanto a república só o terá sido
por acidente.
O
núcleo original e puro do republicanismo português vai-se, assim, reduzindo ao
vago conteúdo de discursos e proclamações, a um sonho que insistentemente se
afirma ter existido, embora sem efeito algum sobre os actos dos que o sonharam.
E neste caso único, os historiadores abrem mão do costumeiro cepticismo com que
por dever profissional examinam as palavras dos políticos, dando um crédito
excepcional às proclamadas intenções dos fundadores da república.
Carlos Bobone
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