A medicina portuguesa, entre os
finais do século XIX e, praticamente, meados da década de 40 do
seguinte, sem quaisquer recursos farmacológicos para combater a
tuberculose, voltava-se para o reforço das únicas medidas realmente
eficazes: isolamento e prevenção, não só através da criação de centros
hospitalares e sanatoriais, bem como da implementação de regras e
estratégias sociais conducentes a melhorar as condições de vida,
alimentação e higiene física e mental das populações.
Uma comunidade com hábitos saudáveis dificilmente poderá vir a ser um alvo da doença.
Não obstante o velho conhecimento,
mais do que assente, entre os praticantes de medicina
hipocrático-galénica e, provavelmente, até já entre os Egípcios
Faraónicos, de que o clima de altitude é favorável à cura da
tuberculose, só em 1854 Francisco António Barral publicaria o primeiro
trabalho científico português “sobre o clima do Funchal e a sua influência no tratamento da tuberculose”
e Brehmer, em 1856, viria a divulgar os seus estudos de carácter
científico, sobre os benefícios do arejamento, do repouso em
estabelecimentos fechados e da super-alimentação no tratamento da
tuberculose.2
Assim, a partir de meados do século XIX, os sanatórios viriam a assumir
um importante papel na luta anti-tuberculosa e, um pouco por todo o
País, vão sendo construídos e postos a funcionar.
Na Ilha da Madeira, cujo clima era
reconhecido, desde o século XVIII, como privilegiado para a cura da
tuberculose, a Rainha D. Amélia, Ex-Imperatriz do Brasil, mandaria
construir, em 1853, um hospital-sanatório, em memória a sua filha, a
Princesa D. Maria Amélia, falecida no mesmo ano na cidade do Funchal,
com 22 anos de idade, ceifada pela tísica, “ao que se julga, contagiada por seu pai, D. Pedro IV”3, morto também pela doença. Em 1862, o hospital Princesa D. Maria Amélia, “destinado a tratar doentes afectados de tísica e outras moléstias pulmonares crónicas, que ainda possam ter esperança de melhora”4, recebia já os seus primeiros doentes.
Na sequência de duas expedições à Serra da Estrela, realizadas entre 1881 e 1883, destinadas a estudar “as
condições da mesma, com o objectivo de fundar nela sanatórios para
tratamento da tuberculose pulmonar, à semelhança dos da Suíça”,
viria a ser lançado um livro, prefaciado pelo Dr. Sousa Martins. Já
nessa altura reconhecido como um clínico distinto e uma prestigiosa
figura da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, as suas afirmações,
realçando a importância das condições climatéricas e da altitude na cura
da tuberculose, viriam a ter um enorme impacto, não só, sobre a opinião
pública, como a nível político e sanitário. Deste modo, muito antes de
ali surgirem as primeiras infra-estruturas oficiais, isto é, os
hospitais-sanatórios, começaram a afluir à Guarda e à Serra da Estrela
inúmeros tuberculosos, em busca dos referidos benefícios do clima. Esta
enorme concentração de indivíduos afectados pela “tísica”, hospedados em
casas particulares e nas poucas unidades hoteleiras da zona levaria a
que doentes e não doentes tivessem que ficar alojados nos mesmos sítios,
situação algo complicada, em termos epidemiológicos. Em 1894, as
autoridades responsáveis pela higiene sanitária acabariam por impor como
obrigatória a declaração de entrada de doentes em hotéis, bem como a
desinfecção das casas onde os mesmos pernoitassem. Na mesma data,
criava-se em Lisboa o 1º Posto de desinfecção e instituía-se como
obrigatória a notificação de doenças infecciosas e, em particular, da
tuberculose. Esta medida, porém, não teve, de início, grandes efeitos
práticos, uma vez que a declaração só se verificava após a morte do
doente.5
Por temor do estigma social, por razões morais ou por incúria, esta
situação era frequente e, como tal, a tuberculose, enquanto ia ceifando
uns, ia lançando as suas “sementes” noutros.
Um Pavilhão do Sanatório da Guarda |
Preocupada com a grave situação epidemiológica que o País atravessava, a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa “inaugurou
então uma campanha de propaganda de combate à tuberculose, a que Miguel
Bombarda, em a Medicina Contemporânea, deu a maior expansão,
alvitrando-se a criação de uma liga que se propusesse a envidar todos os
esforços nessa luta e ao estudo do problema da hospitalização dos
tísicos.6 Desta
iniciativa resultaria, finalmente, a Liga Nacional contra Tuberculose.
Constituída por várias comissões, com sedes nas principais cidades do
País, a L.N.T. viria a preparar e a realizar diversos congressos entre
1901 e 1907, com vista a debater o problema da tuberculose e a definir
as melhores estratégias curativas e, sobretudo, profilácticas para o seu
combate.7 Neste
esforço, incluíram-se a formação e especialização de clínicos
portugueses no estrangeiro na área da pneumo-tisiologia e a criação
(construção ou adaptação) de centros hospitalares, especialmente
localizados em climas marítimos e de altitude.8
Os dois “flagelos” de Portugal:
Tuberculose (bacilo de Koch) e Jesuitismo (“bacilo de Loyolla“) |
Em 1897, no concelho de Oeiras,
devido a esforços de Tomás Ribeiro, então ministro, e do Dr. José
Joaquim de Almeida, médico deste município, fizeram-se as obras
necessárias de adaptação no “forte de Junqueiro”, em
Carcavelos, e instalaram-se ali crianças escrofulosas e linfáticas, com
vista a poderem recuperar das suas lesões neste clima marítimo. Depois
da sua inauguração oficial, em 1902, esta unidade hospitalar destinada
apenas a crianças do sexo masculino, viria a ser ampliada com dois novos
pavilhões, transformando-se num sanatório, agora, com capacidade para
receber cerca de uma centena de pessoas, mulheres e crianças.9 Em
1898, por iniciativa do Professor Silva Amado, o Hospital de Arroios,
que viria também a ser conhecido como Hospital Rainha D. Amélia,
acabaria por tornar-se, depois de algumas obras de beneficiações e
melhoramentos, numa unidade apenas destinada a tuberculosos.10
No final do século XIX a
tuberculose assumia, assim, graves proporções em Portugal. Perante a
aparente indiferença dos responsáveis pela política de Saúde Nacional, o
Professor Moreira Júnior, reconhecido Parlamentarista, foi certamente
uma das primeiras vozes que se ouviram, em 1899, ousando “chamar a
atenção do governo” para a “situação cruciante” desencadeada pela doença e para a urgente necessidade de se tomarem as adequadas medidas preventivas.
Segundo Álvaro Barros Rosa, esta
chamada de atenção no Parlamento teria sido o empurrão final para o
arranque da Assistência Nacional aos Tuberculosos (A.N.T.), a qual
reflectiria a vontade e as ideias, o projecto, em suma, da Rainha D.
Amélia.
A Rainha D. Amélia, fundadora da Assistência Nacional aos Tuberculosos |
A Rainha, em 11.Jun.1899, na Sala
das Sessões do Conselho de Estado do Ministério do Reino, por si
presidida, apresentou então um conjunto de intenções que se poderão
resumir em quatro pontos:
1º- Construir hospitais marítimos.
2º- Fundar sanatórios em clima de montanha e de altitude.
3º- Estabelecer em todas as
capitais de distrito institutos que serviriam, não só, para o estudo e
tratamento da tísica, mas também de socorro aos doentes [mais
aligeirados, que ainda não carecem de isolamento e] que têm de trabalhar
para sustentar as suas famílias.
4º- Criar os hospitais para tísicos, destinados aos incuráveis.
Nesta sessão foram estabelecidas
diversas estratégias consideradas fundamentais para se poderem atingir
os elevados objectivos, quer imediatos, quer a médio prazo, da A.N.T.,
que viriam a concretizar-se através de várias iniciativas:11
- Criação de um subsídio anual de 20.000$00 assumido pelo Governo.
- Subsídios, obrigatoriamente suportados pelas Câmaras Municipais, incluídos nos respectivos orçamentos.
- Utilização dos fundos correspondentes a “1%
das quotas dos sócios das sociedades ou associações de recreio onde se
realizassem jogos” e do “produto das multas que por leis ou regulamentos
fossem destinadas a esse fim”.
- Isenção de direitos alfandegários
sobre os materiais fabricados no estrangeiro, destinados ao serviço de
dispensários, sanatórios e hospitais.
- Angariação de fundos resultantes
de quermesses, peditórios e subscrições efectuados junto de emigrantes
portugueses no estrangeiro, de leitores de vários jornais publicados em
Portugal, de instituições bancárias, bem como de doações e quantias
obtidas através da cooperação de regedores, de párocos e de paroquianos.
- Recolha de dádivas e receitas provenientes da realização de festas e espectáculos.
Este movimento, exigindo uma grande
responsabilidade e um enorme sentido de gestão, face à complexidade de
acções a desenvolver e a controlar, em todo o País, implicava,
naturalmente, a formação de uma “Comissão de Propaganda”, bem como de
subcomissões com a missão de se poderem levar a efeito as múltiplas
estratégias definidas a nível da Comissão Central. São então nomeadas as
referidas subcomissões:
- Dos Zeladores, destinada a velar
pelos interesses da Sociedade em todos os seus campos de acção,
presidida pelo Cardeal Patriarca de Lisboa
- Das Festas, com a missão de
promover e realizar festas remuneradas, cujas receitas seriam destinadas
à Sociedade, sob a presidência do Conde de Sabugosa.
- Das Quetes, responsável pela
realização de campanhas de esmolas e donativos para a Sociedade, sob a
presidência do Arcebispo de Mitilene.
- De Estudo e Estatística, com o
objectivo de recolha de dados, informações e análise da situação da
tuberculose no País e do seu desenvolvimento, em termos de morbilidade e
mortalidade, sob a direcção do Dr. Manuel António Moreira.
- De Profilaxia, necessariamente
voltada para o estudo e implementação das necessárias medidas higiénicas
e sanitárias destinadas ao combate da tuberculose, presidida pelo Dr.
Ricardo Jorge.
- De Divulgação, concentrando todo o
trabalho de publicidade e alerta social contra a doença, bem como a
difusão dos respectivos intuitos e programas sanitários da A.N.T. nessa
luta, sob a orientação e direcção do Dr. Curry Cabral.12
Este esforço nacional, porém, não
iria receber aplausos de todos os portugueses, e a prova disso fica bem
patente na carta do conhecido escritor e jornalista Alfredo Gallis, que
transcrevemos na íntegra:
“Il.mo e Ex.mo Sr.
Em resposta ao convite de V.
Ex.ª tenho a declarar o seguinte: Aplaudindo e considerando no mais
alto, a filantrópica iniciativa de Sua Majestade, a Rainha D. Amélia,
para proteger os tuberculosos, em carta aberta escrevi no “Tempo” um
artigo dirigido à mesma Augusta Senhora, explicando que essa simpática e
benemérita campanha é contrariada nas fontes originárias do mal pelo
arquiestúpido procedimento dos nossos governos, carregando de impostos
impossíveis as classes pobres, como são do domínio público o facto dos
pobres vendedores da feira da ladra, dos feirantes do Lumiar, dos
miseráveis donos dos quiosques do capilé, e tudo o mais que se segue.
Assim, quanto maiores dificuldades cercarem a vida dos pobres não os
deixando alimentar regularmente, respirarem ar de outras moradias e
proverem até ao asseio do corpo, mais tuberculosos hão-de haver. O
Estado desmancha com a garra esquerda o que a carinhosa Rainha de
Portugal constrói com a mão direita. Podem-se curar os tuberculosos que
de novo adoecerão da mesma moléstia, apenas regressem à sua vida usual
até morrerem. O meu bom senso diz-me que em frente d’um fisco rapace e cruel, que nada vê e nada atende porque o que quer é dinheiro para gastar em inconfessáveis despesas, não há esforço que sirva, nem caridade que preste. É mesmo muito de crer que os tuberculosos ainda sejam obrigados a selarem o jeito na Receita Eventual. Ex.mos Sr.es, conheço o meu país e, pior ainda, a política e os políticos do mesmo. Sou pobre e trabalho sem descanso. Uma quota anual seria um sacrifício dado de má vontade, porque revolta que o Estado não pense que o pobre tem direito a alimentar-se e a ganhar a vida. N’estes termos não quero inscrever-me porque não tenho fé nos resultados da alevantada ideia de Sua Majestade, que bem podia dizer ao Governo que nem só os políticos comem carne e precisam de se alimentar na razão directa do que trabalham. E pedindo desculpa desta rude franqueza Sou de V. Ex.ª At.to, V.er e Admirador (a) Alfredo Gallis” 13 |
Mas não seria esta nem outras
formas de resistência ou de protesto ocorridos durante a campanha em
torno da luta contra a tuberculose que fariam oscilar o ânimo e a
determinação da Rainha e de todos quantos se envolveram, com a mesma
convicção, na concretização dos elevados objectivos previstos neste
grande projecto nacional. Na verdade, muitas das acções ventiladas e
implementadas na sequência da reunião de 11 de Junho de 1899 haviam
sido, desde há muito, delineadas e ponderadas pela Rainha, sempre atenta
a todos os pareceres e informações especializados sobre estas matérias
e, sobretudo, sensível às opiniões das grandes autoridades médicas do
seu tempo. O conteúdo da sua correspondência, em particular, as cartas
que enviou à Senhora D. Maria Emília Brandão Palha, em 1889, constituem a
prova indesmentível dessa preocupação. Na carta datada de 26.Jul.1889, a
Rainha dava conta das suas reflexões sobre a possibilidade de contágio
existente entre anémicos e tuberculosos, internados nos mesmos
“hospícios” e questionava-se sobre as soluções para o problema.
Procurando orientar as suas decisões o melhor possível, não dispensou os
conselhos e as abalizadas opiniões de dois grandes nomes da medicina
desse tempo, os Professores Francisco Oliveira Feijão e António
Lancastre, sobre o assunto, e dá conta, detalhadamente, dessas
diligências na correspondência trocada com D. Maria Emília Brandão
Palha. A escolha do local, segundo “a opinião formal de Feijão é
que, para os tísicos ou tuberculosos, somente um asilo construído nas
alturas pode ter alguma utilidade. É preciso, no entanto, que tais
alturas reunam as condições requeridas. Para quem é anémico, debilitado,
predisposto de qualquer maneira à tísica, as alturas deixam de ser
indispensáveis. É preciso escolher um local que seja suficientemente
longe de uma grande cidade, de preferência mais elevado do que anichado
num vale e, condição indispensável, que os edifícios se situem no meio
de jardins ou de bosques de pinheiros. Caneças ou o bosque de pinheiros
situado por detrás do Estoril parecem bem escolhidos”.14
A posição de António Lancastre,
sobre o local apropriado para a construção de hospitais destinados a
tuberculosos, seria também objecto da sua reflexão, conforme se
depreende pelas palavras que dirige a D. Emília Palha: “A opinião de
Lancastre é que as alturas são favoráveis a certos tuberculosos, mas
não a todos. Em todo o caso, para o primeiro grupo, [os tuberculisáveis] elas
não são necessárias. Para este grupo, o ar do mar é umas das melhores
condições. Nós podemos, pois, estabelecer facilmente o nosso hospital
nas imediações de Lisboa. A influência directa do ar do mar deixa de
fazer efeito a mais de trezentos metros da costa. Lancastre acha o
Pinhal da Guia, situado próximo de Cascais, preferível em relação a
todos os outros pontos. – Crê-se não haver qualquer inconveniente para
os habitantes de Cascais. – O Pinhal da Guia reúne todas as condições
desejáveis; além, disso, e se o futuro no lo permitir, uma
parte do segundo grupo de tuberculosos poderia vir a ser ali tratado
eficazmente, num outro estabelecimento próximo do primeiro”.15
Lancastre alerta também a Rainha para o facto de haver pormenores de
construção a que se tem, obrigatoriamente, que atender: os materiais
usados nas enfermarias devem, preferencialmente, construídos em ferro
(seguindo o sistema de Tollet), pois deste modo permitir-se-á uma melhor
desinfecção destes locais; por outro lado, em cada uma delas não
deverão existir mais de doze doentes; finalmente, deve instalar-se um
número de chaminés adequado, já que, para além de poderem funcionar como
aquecimento, têm também a vantagem de assegurar uma boa ventilação.
Depois de confidenciar, pormenorizadamente, com D. Emília Palha, as
opiniões de Feijão e Lancastre sobre o assunto, a Rainha resume as
respostas dos dois clínicos em 7 pontos que considera condições
fundamentais a ter em conta:
“1. Um hospital, para tuberculisáveis, raparigas ou crianças.
2. O contágio existe,
indiscutivelmente, entre os tísicos e os predispostos: nem todas as
tuberculoses são contagiosas; não há nenhum contágio entre os candidatos
à tísica e os outros doentes.
3. Uma enfermaria absolutamente separada para os tuberculisáveis que se tornaram tísicos depois da sua admissão no hospital.
4. Uma enfermaria para as doenças contagiosas.
5. O local poderá ser escolhido nos arredores de Lisboa; o Pinhal da Guia, perto de Cascais, é o sítio que reúne as melhores condições.
6. É preferível construir o hospital segundo o sistema Tollet.
7. Um dispensário em Lisboa”.16
J. Oliveira Ferreira, Ida para o Dispensário |
Em 06 de Junho de 1900 o Sanatório
do Outão abria as suas portas, assegurando o tratamento a crianças
escrofulosas. Um ano depois, em 05 de Junho de 1901, procedia-se à
abertura oficial, ainda que provisória, do novo Dispensário Central de
Lisboa, o qual só mais tarde, em Abril de 1906, viria a ser inaugurado
com sede definitiva.
Em 1901, iniciava-se a construção
de um sanatório na Parede, que obedecia a um projecto com vários
pavilhões convenientemente isolados para receberem doentes inválidos e
crianças tuberculosas.17
Em 20 de Fevereiro de 1909 dava-se também início às obras do Hospital de Repouso de Lisboa.
Entre 1900 e 1911, a Assistência
Nacional podia já contar com um conjunto razoável de centros e unidades
dotados de boas condições para tratamento de tuberculosos: “2 Sanatórios marítimos, 1 Sanatório terrestre e 5 Dispensários”.
No Dispensário de Lisboa, em
virtude da grande afluência de doentes, praticamente desde o início do
seu funcionamento, foi necessário proceder-se ao desdobramento dos
serviços clínicos, ali disponíveis.18
Para além da consulta da manhã,
criar-se-ia “uma outra, à tarde, dirigida pelo Dr. Henrique Mouton”,
que, após a sua inauguração em 05 de Junho de 1902, viria a funcionar
completamente autónoma da primeira, assumindo-se como um 2º Dispensário.19
Os dispensários assumiam para a Rainha, no contexto deste plano
estratégico, uma importância muito especial e, ela própria, justifica o
interesse da sua criação e existência numa das suas cartas dirigidas a
Madame Maria Emília Palha, citando as palavras do seu conselheiro mais
dilecto nestas matérias, o Dr. António Lancastre: “O Dispensário é
da maior utilidade, não somente para as admissões no nosso hospital, mas
também, uma vez convenientemente instalado, para nos permitir dar
consultas e remédios gratuitos e, mesmo, poder curar numerosas crianças
que não seriam admitidas nos hospitais, pois as suas mães nunca iriam
querer separar-se delas”.20
A preocupação com a higiene pública
e individual, evitando a disseminação da doença a partir das prováveis
fontes bacilíferas levou a que se tomassem algumas medidas tendentes a
educar a população, na esperança de corrigir um velho mau hábito [que
ainda hoje é prática] comum entre nós: cuspir no chão. Para isso, [e
pena é que a medida não se tenha mantido em vigor até aos nossos dias,] a
14 de Fevereiro de 1902, é lançado um edital assinado pelo Governador
Civil de Lisboa, proibindo o “escarrar ou cuspir fora dos escarradores próprios, sob pena de 500 réis de multa (…)”.21
A República, porém, vitoriosa sobre
a Monarquia, acabaria por se instalar em 1910 e a Rainha, com toda a
sua família, ver-se-ia, inevitavelmente, forçada ao exílio, abandonando
um projecto que foi considerado por muitos como uma das mais importantes
obras filantrópicas e humanitárias do início deste século, em Portugal.
Procurando deter um conhecimento
permanente e completo sobre tudo quanto se deliberava, assumindo o
acompanhamento e a orientação de todas as iniciativas neste domínio,
promovendo a angariação de fundos, vigiando obras, visitando
regularmente centros e hospitais onde decorriam as consultas a
tuberculosos, conversando com os doentes, impulsionando e envolvendo
neste movimento algumas das maiores autoridades médicas na área da
pneumo-tisiologia, a Rainha, empenhada profundamente na prossecução do
seu projecto assistencial, foi, como nos diz Ayres de Sá, a “ditadora da
Assistência”.22
Este esforço à escala nacional,
procurando consciencializar, obviamente, a população dos riscos que
corria perante tão grande difusão e “virulência” da doença, não
pretendia limitar-se, apenas, ao tratamento e controlo dos casos
individuais mas, sim, combater o mal, como uma doença social que era,
nas suas múltiplas causas: alimentação precária, pobre sobretudo em
vitaminas e proteínas, insalubridade dos bairros residenciais, da
habitação e dos locais de trabalho por ventilação e arejamento
deficientes ou inexistentes 23, “excessiva acumulação de habitantes” por fogo, excesso de trabalho, alcoolismo, carência de repouso e higiene individual e pública insuficientes.24
Anúncio ao óleo de fígado de bacalhau |
Na ausência de meios
farmacológicos, sobretudo tuberculostáticos (o primeiro, a
estreptomicina, só viria ser descoberto em 1944), para combater o
flagelo, a comunidade médica portuguesa apostava nas únicas estratégias
ao alcance, mais do que ensaiadas e de eficácia comprovada quando
atempadamente aplicadas e, rigorosamente, seguidas pelos doentes:
repouso, higiene de sono, clima marítimo ou de altitude, conforme os
casos clínicos, e uma boa alimentação. A estas medidas, juntava-se uma
outra que, em termos de profilaxia, era recomendada desde a Antiguidade:
o exercício físico. É evidente que esta prática é realmente salutar.
Todavia, torna-se fundamental que o praticante, minimamente informado
sobre as vantagens da actividade física, disponha ao longo do dia de uns
minutos para a prática de ginástica e observe alguns cuidados com a sua
alimentação, necessariamente reforçada e diversificada, face ao maior
desgaste calórico e bioquímico daí decorrente. E, aqui, depara-se-nos o
“grande drama”: a maioria da população portuguesa, analfabeta e pouco
aberta a inovações, ocupada num regime laboral intenso e desgastante,
que lhe garantia o mínimo para a sobrevivência, não dispunha de receitas
para inscrições em ginásios ou aquisição de aparelhos e equipamentos
aconselhados para o exercício, nem, muito menos, para seguir dietas
especiais ou compra de suplementos alimentares exigidos pelo desporto.
[É espantoso e dramático, ao mesmo tempo, verificarmos “como a História
se repete”. Grande parte da sociedade portuguesa actual, mergulhada numa
crise económica prolongada e sem grandes recursos para garantir uma
alimentação equilibrada e diversificada, à imagem do que acontecia nos
finais do século XIX, início do XX, torna-se um alvo preferencial da
tuberculose e de outras doenças infecciosas que habitualmente se
instalam em populações com grande fragilidade alimentar e imunitária.]
Os pobres e necessitados, que na
Lisboa dessa época se identificavam, predominantemente, com as classes
operárias, eram e foram sempre, de facto, em termos de morbilidade e de
mortalidade, os mais flagelados pela tuberculose. E essa noção ou
reconhecimento da relação entre o estatuto económico familiar e a taxa
de mortalidade ocasionada pela doença estava, por demais, estabelecida/o
a nível da ciência médica, nessa altura, já muito apoiada na
estatística.
Não obstante a electividade deste
recurso preventivo (a prática regular de ginástica), de um modo geral,
só acessível aos mais abastados, a comunicação social não se cansava de
apregoar as vantagens da educação física, do exercício e do desporto.
No princípio do século XX, os
jornais transbordavam de anúncios, recomendando fórmulas, exercícios e
equipamentos considerados milagrosos no fortalecimento da mente e do
corpo, condição fundamental para resistir a muitas doenças e para obter a
cura em tantas outras.
“Para o tratamento da
tuberculose recomenda o Dr. Haussmann as fricções de sabão mole nas
espáduas, duas vezes por semana, à hora de deitar-se, tendo o cuidado de
lavar depois com água quente a parte friccionada. O ´British
Medical Journal`, que dá a notícia em questão, supõe que a influência do
sabão se deva à elevação dos princípios alcalinos do sangue pela
elevação dos carbonato de potassa (…)”.25
Máquinas para fabricar saúde |
A par das várias “máquinas para fabricar saúde”26, o
ozonizador e o vibrador manual ou eléctrico, o primeiro, limitando o
risco de contaminação aérea, esterilizando o ar e neutralizando os
germes potencialmente patogénicos (e em particular, o bacilo da
tuberculose), o segundo, estimulando a circulação, tonificando músculos
através de vibrações suaves, mas enérgicas (melhorando,
indubitavelmente, a resistência física e a imunidade geral do indivíduo,
quando aplicado sob orientação “cientificamente” recomendada),
aconselhava-se também o exercício físico, de preferência ao ar livre.
Andar de bicicleta era, nesta época, uma recomendação comum em todos os
jornais, como medida saudável a seguir, ainda que com algumas
restrições: “A bicicleta pode ser inofensiva e até útil em certos
casos ligeiros de perturbações cardíacas; porém, as mais das vezes é
perigosa – como nas convalescenças de febres graves e doenças
respiratórias em via de cura, exceptuando os asmáticos e os tuberculosos
avançados. No caso de tuberculoso do último grau, torna-se útil o
exercício moderado”.27
Confrontada com um bacilo altamente
infeccioso (Mycobacterium tuberculosis), para o qual não dispunha de
qualquer recurso farmacológico eficaz, a medicina portuguesa do 1º
Quartel do século XX ficou a dever à Assistência Nacional aos
Tuberculosos algumas das suas maiores vitórias no domínio da cura e da
prevenção doença originada por este microrganismo. Todavia, com a
descoberta do B.C.G., preparado pelo Instituto Pasteur, de Paris, e
aplicado, pela primeira vez, em seres humanos em Junho de 1921, a
ciência médica ganhava mais uma arma terapêutica que, apontada ao alvo
da prevenção, sobretudo após a II Guerra Mundial, através das campanhas
de vacinação em massa, alteraria substancialmente o quadro
epidemiológico da doença em Portugal e em todos os países do Mundo onde
esta estratégia veio a ter lugar. No nosso País, entretanto, a prática
do B.C.G. só em 1928 viria a iniciar-se através da prescrição e
responsabilidade do Dr. Élio de Vasconcelos Dias, médico de Viana do
Castelo, o qual teve a possibilidade de adquirir a vacina no Instituto
de Biologia Médica de Santiago de Compostela.28 Em 1929 o B.C.G. produzia-se já no Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, de Lisboa.
A “aferição” do impacto
epidemiológico da vacinação pelo B.C.G., em termos de morbilidade ou de
mortalidade por tuberculose, nos seus primeiros anos de aplicação, quer
devido à escassa cobertura do programa vacinal, quer, mesmo, devido às
insuficiências do sector de estatística nacional, é, obviamente, uma
“leitura” difícil de equacionar.
A sociedade portuguesa, durante as
três primeiras décadas do século XX, limitada, assim, em termos
farmacológicos específicos, no combate à tuberculose, pôde, contudo,
beneficiar do vastíssimo programa de acções desenvolvidas pela A.N.T.
(1899-1946), obra imorredoura fundada sob a égide da Rainha D. Amélia,
bem como pelas múltiplas instituições, dispensários,
hospitais-sanatórios e preventórios espalhados pelo País.
Bibliografia
BOLETIM da A.N.T., 4ª série, Vol.1, Set.1937
CARVALHO, Augusto da Silva. História da Medicina Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1929
COELHO,
Francisco José Sanches. Sobre a Tuberculose Pulmonar Crónica do Adulto,
Lisboa, 1914 (Dissertação inaugural apresentada na Faculdade de Medicina
de Lisboa)
CORREIO Elvense, 1900
Da A.N.T. ao S.L.A.T.: história sumária de uma instituição (1899-1979), Lisboa, 1979
JORNAL do Médico, s.l., Vol. 22, nº 557, 1953
MAGAZINE Bertrand, s.l., Vol. III, , 1900
MIRA, Matias Boleto Ferreira de. História da Medicina Portuguesa, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1947
O CAMPEÃO, s.l., 20.Maio.1900
SÁ, Ayres de. Rainha D. Amélia, Lisboa, s.n.t., 1928
SACADURA,
Costa. A Obra da Assistência Nacional aos Tuberculosos e a Rainha D.
Amélia através de algumas Cartas Inéditas, Lisboa, 1949 (Opúsculo nº 95)
SANTIAGO,
António Gonçalves. A Tuberculose e os Dispensários, Lisboa, Impresso
pela Casa dos Tipógrafos, 1911 (Dissertação inaugural apresentada na
Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa)
Notas e Referência Bibliográficas
1. Autor: João Frada — Médico, Professor aposentado da Faculdade de Medicina de Lisboa. Texto revisto e actualizado, publicado in Portugal 1900. Lisboa: Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, p.91-100
2. Matias Boleto Ferreira de Mira. História da Medicina Portuguesa, Lisboa, 1947, p.471-80
3. Da A.N.T. ao S.L.A.T.: história sumária de uma instituição (1899-1979), Lisboa, 1979, p.7
4. Augusto da Silva Carvalho. História da Medicina Portuguesa, Lisboa, 1929, p.21
5. Da A.N.T. ao S.L.A.T.: história sumária de uma instituição (1899-1979), p.9
6. Idem, ibidem
7. Não
obstante a grande campanha de consciencialização sobre os perigos da
tuberculose e as medidas de prevenção, assumida pela Sociedade das
Ciências Médicas de Lisboa, a partir de 1901, foi em Coimbra que se
realizou, em 1895, o 1º Congresso dedicado à terrível doença, durante o
qual o Prof. Augusto Rocha, realçando a eficácia dos “ares” na cura
deste mal, cita uma frase de Florence Nightingale, suficientemente
elucidativa dessa importância: “ Para os tísicos, respirar um ar puro é
simplesmente respirar a vida” (Ferreira de Mira, “La lutte contre la
tuberculose au Portugal. Aperçu historique”, Boletim da A.N.T., 4ª
série, vol. 1, Set. 1937, p. 17
8. Considerado
um médico de grande competência, António Lancastre deslocar-se-ia a
vários países europeus, nomeadamente a, França, à Suíça e a Itália, para
se inteirar das condições aí observadas e aconselhadas no tratamento e
na hospitalização de tísicos.
9. Da A.N.T. ao S.L.A.T. (…), p.10
10. Idem, ibidem
11. Idem, passim
12. Idem, p.22-3
13. Idem, p.14-7
14. Costa
Sacadura, A Obra da A.N. aos Tuberculosos e a Rainha D. Amélia através
de algumas cartas inéditas, Lisboa, 1949, p.24 [A tradução do texto
deste opúsculo, publicado em francês, é da total responsabilidade do
autor deste trabalho]
15. Este
grupo engloba os indivíduos que, por uma razão qualquer constituem
terreno favorável à contaminação pela tuberculose. Segundo António
Lancastre, incuem-se neste grupo os filhos de tuberculosos, os
escrofulosos e os portadores de doenças crónicas (Idem, p.25)
16. Idem, p.27
17. Idem, ibidem
18. António Gonçalves Santiago. A Tuberculose e os Dispensários, Lisboa, 1911, p.31-3
19. Da A.N.T. ao S.L.A.T. (…), p.31
20. Costa Sacadura, op. cit., p.26-7
21. Da A.N.T. ao S.L.A.T. (…), p.31
22. Ayres de Sá. Rainha D. Amélia, Lisboa, 1928, p.55
23. A
propósito da importância destes factores, Francisco José Sanches
Coelho, na sua Dissertação Inaugural sobre Tuberculose Pulmonar,
apresentada em 1914 na Faculdade de Medicina de Lisboa, cita a Lei de
Strauss, que se resume no seguinte: “ A mortalidade por tuberculose está
na razão directa do número de andares das habitações e na razão inversa
das dimensões das ruas, pátios e janelas” (Francisco José Sanches
Coelho, Sobre a Tuberculose Pulmonar Crónica do Adulto, Lisboa, 1914,
p.69-70)
24. António Gonçalves Santiago, op. cit., p.25
25. “Novas de Longe”, Correio Elvense [dia?, mês?], 1900 [p.?]
26. “Machinas para fabricar saúde”, Magazine Bertrand, Vol. III, 1900, [p.?]
27. “A bicicleta e a medicina”, O Campeão, 20.Maio.1900, [p.?]
28. Ludgero Lopes Parreira. “Vacinação pelo B.C.G. nas escolas primárias”, Jornal do Médico, Porto, Vol.22, Nº 557, 1953, p.633-47
Fonte http://www.saudepublica.web.pt/TrabFrada/TBsecXX_JFrada.htm
Publicado no blogue "Causa Monárquica"
Publicado no blogue "Causa Monárquica"
Sem comentários:
Enviar um comentário