Imperdível esta deliciosa crónica de Novais Teixeira originalmente publicada n'O Primeiro de Janeiro, a 25 de Outubro de 1953
Não sei bem se esta soberana familiaridade com que Paris recebe e
trata as Majestades estrangeiras não oculta um despeito: o de não ter
também o seu Rei e a sua Rainha. Porque em Paris há de tudo — ela o sabe
bem! — menos o comando da realeza.
Pelo fim trágico de Luís XVI se depreende que Paris prefere o sr.
Auriol no Palácio do Eliseu a qualquer titular de sangue real. Mas se
os reis fossem apenas honrarias e efeitos decorativos, os parisienses
gostariam de ter no Palácio de Versalhes um Orléans legítimo misturado
com as fontes luminosas. Faz parte esse gosto pelas figuras reais deste
adorável «provincianismo» da capital, de que todos se apercebem menos os
parisienses, porque um parisiense é demasiado actor da grande cena para
compreender bem Paris.
Por aqui anda o Conde de Paris, pretendente ao trono da França,
sumido na massa anónima da capital. Só lhe falta o cesto das compras e o
pão debaixo do braço para ser, na iconografia doméstica do seu
quartier, um parisiense autêntico. Pudesse, porém, a falta de ceptro não
implicar na falta de europeis reais, como deliraria o povo de Paris com
esse impossível majestático na pessoa do seu Conde!
Duas rainhas honram hoje com a sua presença as ruas da capital: a
rainha Juliana da Holanda e a rainha Frederica da Grécia. A rainha
Juliana é uma holandesa típica, isto é, uma francesa da província,
plasticamente considerada; a rainha Frederica, uma perfeita parisiense,
isto é, cintura de vespa, 58 centímetros, segundo registo das fitas
métricas dos costureiros de Paris. Juliana veio à terra de São Luís para
espairecer; Frederica para se vestir. Uma foi vista na Rue Rivoli,
colada às vitrinas da bijouterie turística, bon marché; outra na Avenue
Montaigne, rondando a casa de Christian Dior.
Os holandeses têm em alto conceito a sua Rainha. Menos
autoritária que a rainha Guilhermina, é todavia Senhora de mais
autoridade. Seus conselhos são sábios; seus ouvidos, atentos aos
negócios do Estado. Não é apenas respeito hierárquico o que lhe mostram
os seus Ministros, mas o que se tem por uma dama que chegou com
condições intrínsecas à Suprema Magistratura do país. No jardim dos seus
sentimentos mais íntimos, os holandeses cuidam do afecto pela sua
Rainha com a mesma amorosa solicitude com que tratam das suas papoulas
de mais alto preço. O sorriso franco e simples da rainha Juliana seduz
também os parisienses.
Sua Majestade jantou um dia destes, de incognito, em uma
rôtisserie do Boulevard de Clichy, que é o boulevard classe média por
excelência; hors-d'oeuvres variados, pilaf de lagosta, queijo de cabra e
café do Brasil. Acompanhava-a o príncipe Bernhard de Lippe, seu marido.
Depois botou conversa com um casal desconhecido da mesa do lado, ao
estilo de Paris, e foram os quatro deambular por Pigalle, perdidos na
multidão. Há quem visse Juliana diante dum pim-pam-pum com jeito de
pegar na bola de trapo. O príncipe Bernhard foi no dia seguinte a
Rambouillet caçar faisão com o presidente Auriol. A Rainha preferiu
Chantilly e as preciosidades da pinacoteca do seu castelo.
Uma Rainha compenetrada com o seu povo está automaticamente
compenetrada com todos os povos do mundo. O respeito por uma realeza
popular não se detém nos domínios da sua jurisdição. Paris põe à
disposição da rainha da Holanda os seus pimpam- puns e a sua
familiaridade. Difícil conquista esta, a da familiaridade dum povo tão…
comunista como o de Paris! Eis uma conquista que ainda não fez o sr.
Maurice Thorez. Experimentem acercarem-se do secretário-geral do Partido
Comunista Francês! O seu ceptro exige mais distâncias que o dos Reis!…
As Majestades vermelhas estão mais expostas aos acidentes cardíacos.
Novais Teixeira, O Primeiro de Janeiro, Porto, 25 de Outubro de 1953, pp. 1, 2
Agradecimentos a Vasco Rosa
Publicado por João Távora no blogue da Real Associação de Lisboa
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