Filipe Ribeiro de Meneses aceitou o
convite dos familiares de Paiva Couceiro para organizar o espólio do
herói militar de África e inimigo número 1 da República.
Correio da Manhã – Qual foi a sua reacção quando recebeu o convite dos herdeiros de Paiva Couceiro?
Filipe Ribeiro de Meneses – De início limitei-me a sugerir a entrega da
documentação à Torre do Tombo. Mas senti que havia da parte de Miguel de
Paiva Couceiro, detentor do espólio, o desejo de fazer algo mais – e
quando vi o catálogo por ele elaborado, percebi que era de facto
possível, e mesmo desejável, aprofundar a nossa colaboração. Sugeri a
elaboração de um volume com base no espólio, que o tornasse acessível a
um público mais vasto e assinalasse não só o 150.° aniversário do
nascimento do 'Comandante' Paiva Couceiro como também o centenário da
primeira incursão monárquica, a 5 de Outubro de 1911.
– Nunca pôs a hipótese de utilizar esse espólio para escrever uma biografia política semelhante à de Salazar?
– Discutimos essa possibilidade, mas havia duas dificuldades. A primeira
era o tempo necessário para escrever uma biografia e que eu, envolvido
noutros projectos, não podia disponibilizar. A segunda prendia-se com a
natureza do espólio, mais completo a partir de 1910. Seria preciso
pesquisar documentação que se encontra noutros arquivos, o que, para
quem, como eu, reside no estrangeiro, seria duplamente difícil. Mas
creio que não tardará muito para que, com base neste espólio, alguém
inicie essa biografia de Paiva Couceiro, pois todas as outras estão
agora, em teoria, obsoletas.
– As primeiras cartas incluídas no livro agora editado pela D.
Quixote são posteriores às campanhas de África. Não havia documentos
mais antigos?
– Há alguns documentos anteriores a 1910, mas quase nada sobre a
juventude de Paiva Couceiro, as campanhas de África - que o tornaram um
herói nacional - e o governo de Angola, que exerceu durante o período do
franquismo. A residência de Paiva Couceiro foi assaltada e pilhada em
1915, durante a revolta de 14 de Maio. Imagino que muita documentação
tenha desaparecido nesse dia.
– Sente falta dessa faceta da personagem histórica?
– Sim, embora o que reste – e que não é pouco – chegue para reconstruir o
pensamento político de Paiva Couceiro e a sua acção durante três
décadas. Depois da comemoração do centenário da República, celebra-se
este ano o centenário da primeira incursão monárquica: a luta pela
restauração da monarquia, e pela união entre monárquicos, é o prato
forte do livro, o tema que lhe dá a sua coesão. E ao lermos as suas
páginas, temos sempre presente o estatuto adquirido por Paiva Couceiro
ao longo dos anos passados em África, tal a admiração que os seus
seguidores tinham pelo 'Comandante'.
– Qual foi a maior surpresa que teve em relação à ideia que fazia de Paiva Couceiro?
– Pensava que a partir do fracasso da Monarquia do Norte, em 1919, ele
se tinha tornado irrelevante – mas tal não é o caso. Continuou a gozar
de grande popularidade entre os monárquicos; a ser ouvido, respeitado e
temido pelos seus inimigos. É notável a forma como a ditadura militar
hesita, a partir do 28 de Maio, em permitir o regresso a Portugal de
Paiva Couceiro: teme o efeito mobilizador que terá entre monárquicos,
mas também entre republicanos, que o continuam a ver como um perigo
real. E mesmo Salazar tem de lidar com ele de forma muito especial.
– Escrever sobre um homem que esteve quase sempre do lado dos
perdedores é mais ou menos estimulante do que escrever sobre alguém que
deteve o poder durante quatro décadas?
– É completamente diferente. As decisões de Salazar afectaram todos os
portugueses; uma biografia de Salazar é de certa forma uma História de
Portugal, pois tem ramificações políticas, diplomáticas, económicas,
etc. Um livro sobre Henrique de Paiva Couceiro é mais limitado: é, no
fundo, o estudo de uma maneira de ver e pensar Portugal, entre muitas
outras. Ao mesmo tempo, porém, trata-se de um homem de acção, que se
expõe ao perigo, que não hesita em dizer e escrever o que pensa e que,
nesse sentido, é um bom antídoto para Salazar.
– Arrisca adivinhar o que Paiva Couceiro pensaria do Portugal de 2011?
– Esse é sempre um exercício difícil... Tudo depende da forma como
Henrique de Paiva Couceiro lidasse com dois desenvolvimentos históricos
profundos, a que não pôde assistir: a vaga anticolonialista que nasceu
no seio da própria Europa após 1945 e a força surpreendente das
democracias ocidentais, capazes de derrotar os totalitarismos europeus
de direita e, mais tarde, de esquerda. Estas mudanças tornaram algumas
das bases do seu pensamento político – que Portugal precisava de
colónias para sobreviver enquanto nação independente e que o liberalismo
em Portugal era incapaz de assegurar a estabilidade – obsoletas. Se
Paiva Couceiro entendesse a importância, e as consequências práticas
desses desenvolvimentos, poderia compreender e aceitar grande parte do
Portugal de hoje... mas continuaria a ser monárquico, desconfiaria da
União Europeia e veria a tutela financeira da troika como uma enorme
humilhação.
Fonte: CM
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