Muito se tem escrito acerca dos
acontecimentos daquele já distante Dezembro de 1961. Em Portugal, a
discussão gira em torno dos militares revoltados pelo injusto tratamento
dispensado pelo então regime vigente. Se por um lado lhes exigiram o
obrigatório sacrifício que a escolha daquele serviço impõe, por outro,
não lhes foram fornecidos os meios mínimos para uma defesa consistente,
mesmo que simbólica.
A situação internacional era para os
americanos péssima, dados os recentes acontecimentos em Cuba, a escalada
da guerra no Sudeste asiático, a corrida ao armamento nuclear, a sempre
presente chaga isarelo-árabe e os tumultos independentistas em África,
muitos deles provocados pelos próprios EUA. Kennedy, proveniente de uma
família de bastante discutível reputação e alianças que lhe daria o
poder na Casa Branca, temia a China maoísta, não olhando a meios para
agradar à "maior democracia do mundo", a Índia das castas e da
segregação. O velho preconceito anti-colonial pautava toda a política
externa americana, mesmo que a assunção dessa posição prejudicasse os
próprios aliados dos EUA e a posição do Ocidente nos territórios
extra-europeus, essenciais à segurança das rotas comerciais e à defesa
militar. Quando nos anos 20 e 30 os EUA ainda possuíam as Filipinas como
pouca disfarçada colónia arrebatada à Espanha, as administrações -
nomeadamente a de Roosevelt - dedicavam-se a encontrar em África e na
Ásia, possíveis líderes locais que fizessem passar os territórios
coloniais para a esfera de interesses norte-americanos e disso mesmo o
próprio Churchill se aperceberia durante as conversações tripartidas que
durante a II Guerra Mundial, manteria com o presidente americano e o
ditador Estaline.
Os americanos sabiam que a Índia
preparava o ataque ao Estado Português da Índia e apoiaram-no sem
sofismas. Constava que Salazar e Mao negociavam secretamente, no sentido
de tornar impossível esse avanço sobre as possessões portuguesas,
aproveitando Lisboa a conhecida realpolitik política chinesa da
presença sem o directo exercício da soberania, aliás manifesta em
Macau. A ser verdade este persistente rumor, a instalação dos chineses
em Goa teria repercussões muito vastas, especialmente nos territórios
portugueses de África, onde mais tarde, a China tornar-se-ia conhecida
por exercer um grande esforço no fornecimento de armas aos inimigos de
Portugal. Como teria tal política ter sido possível no caso de um acordo
"entre cavalheiros" de Lisboa com Pequim? A hipótese dessas negociações
carecem da confirmação que só os arquivos diplomáticos poderão um dia
relevar, mas a posição norte-americana foi sempre hostil a Portugal e
disso não existe a mais pequena dúvida, até porque logo no início de
1961 e em Angola, a UPA iniciara a guerra com um devastador ataque às
populações negras e brancas da Província Ultramarina, UPA esta criada,
municiada e financiada por entidades apertadamente ligadas ao governo de
Washington.
A Salazar restavam-lhe várias opções:
1. Desistir e imitando os franceses,
entregar o Estado da Índia a Nova Deli, atitude impensável dada a
vontade da população local e mais importante para o regime, a própria
posição integracionista que o governo fazia escutar na ONU.
2. Promover um referendo em todo o
Estado da Índia, solução aliás sugerida por um importante sector dos
círculos mais influentes de Goa. Talvez fosse a opção mais curial e mais
temida por Nehru, mas criaria um precedente que poderia ser
reivindicado como solução primeira para o alienar do património
ultramarino. Isso o regime jamais aceitaria, pois Portugal nem sequer
possuía as necessárias instituições - após a morte de Carmona,
uma hipótese ignominiosamente sabotada por Marcelo Caetano - que no
caso britânico, conduziriam ao fortalecimento da Commonwealth.
A opção militar era a mais previsível,
dado o Direito Internacional e a doutrina oficial da II República. Neste
caso, os militares deveriam ter sido dotados de equipamento e de
unidades capazes para uma defesa, mesmo que o termo "simbólica"
significasse uns tantos dias de resistência, capazes de inflingir graves
perdas aos atacantes e criar um terrível problema político a uma
teoricamente "pacífica" Índia, que além de cultivar um estado latente de
guerra com o Paquistão - tácitamente aliado dos portugueses - poucas
semanas depois, era completamente derrotada pelos chineses no breve
conflito nos altos dos Himalaias.
A posição de Lisboa foi precisamente
oposta, exaurindo os arsenais e os quartéis de equipamento e homens
capazes para tal missão de um sacrifício quase suicida. Munições
caducas, nem um único tanque, poucas bocas de fogo, nenhum material
anti-aéreo e anti-carro, péssimas transmissões, quase nenhumas armas
automáticas - a Mauser era a regra na infantaria local - e nem uma única unidade naval moderna. O glorioso Afonso de Albuquerque estava só, tinha um quarto de século e jamais havia sido modernizado para um combate contra unidades modernas. A Armada
possuía alguns meios muito mais eficientes e que inutilmente fundeavam
na Metrópole ou em Moçambique. Nada se fez para essa almejada
resistência "à Estalinegrado" e surgiria mais tarde, o escusado
argumento da certeza do ataque indiscriminado dos indianos ás zonas
civis, bombardeando e massacrando a população. Mas não era isso mesmo
que Lisboa deveria esperar, provocando uma rápida reacção política por
parte da opinião pública mundial? Não contou Portugal - mercê dos
incansáveis esforços de Franco Nogueira e do MNE - com o voto favorável
na ONU, condenado Nehru e a Índia?
O tratamento que mais tarde seria dado
aos militares repatriados, careceu de qualquer tipo de tino político,
pois em vez de o regime os fazer desfilar com todas as honras Avenida da
Liberdade abaixo - culminando as honrarias com aquela que se tornaria
na sacramental cerimónia no Terreiro do Paço -, tratou-os de uma forma
tal, que despoletaria os profundos ressentimentos que chegam até aos
nossos dias. Consistiu esta atitude num erro crasso, até porque o
terrorismo em Angola e a política assumida da defesa do Ultramar,
exigia, pelo contrário, a máxima atenção às Forças Armadas,
especialmente naquilo a que para elas é mais relevante: a manutenção da
honra e o seu reconhecimento como o essencial braço armado da nação.
O ataque a Goa, Damão e Diu,
poderá ser visto como um esquecido episódio da Guerra Fria, não
hesitando os EUA em sacrificar um aliado incómodo e com o qual mantinham
acrimoniosas relações, dados os interesses de certos sectores lobistas
financeiros, económicos e políticos norte-americanos. A política de
Washington era definitivamente a mesma que Roosevelt prosseguira nos
anos trinta, procurando substituir as antigas potências coloniais e
criando os seus próprios potentados locais, sendo o caso Mobutu, apenas o
exemplo mais flagrante. Embora numa realidade completamente diferente,
factos idênticos ocorreriam quando da invasão indonésia a Timor Oriental
- com o beneplácito da administração Ford-Kissinger - num momento em
que as Forças Armadas Portuguesas
eram pasto de convulsões intestinas que as desprestigiaram por várias
gerações e cuja infausta canga, sobre elas ainda pesa de forma
esmagadora.
De facto, a II República teve graves
responsabilidades quanto ao desfecho do infeliz episódio. A culpa não se
deve á política em si, mas à forma em que por vezes esta se reveste e
que como é confirmada no vetusto mas bem realista dizer dos círculos
diplomáticos, fazê-la através da opção do empunhar de armas. No caso da
Índia Portuguesa, os militares tiveram chouriços em vez de granadas e
paus de vassouras como sucedâneos de metralhadoras.
Erro de Salazar.
publicado por Nuno Castelo-Branco em Estado Sentido
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