Livrou-se
da morte por Salazar lhe ter concedido passaporte diplomático. Foi
salva da deportação para a Sibéria por ter ajudado comunistas
austríacos. Quando regressou a Portugal, deparou com o despovoamento
intelectual da classe dirigente. Um exemplo da convivência difícil de
monárquicos e católicos com o regime nos anos 50.
Dona
Maria Adelaide de Bragança van Uden, neta do rei Dom Miguel, morreu na
sexta-feira, na Caparica. Tinha feito 100 anos a 31 de Janeiro.
Foi
condecorada como Grande Oficial da Ordem de Mérito pelo P.R.. Neta do
rei Dom Miguel, tem uma história impar. Viveu e sofreu as duas guerras
mundiais do século passado. Participou na resistência ao nazismo. Lançou
inovadoras obras sociais em Porto Brandão, no início da
industrialização da margem sul. "Mafalda" – nome de código na
Resistência –, Infanta de Bragança, foi protagonista de uma intensa
vida.
"Ela
nunca nos falou disso abertamente, só com a idade e com alguma pressão
começou a falar, lá de vez em quando vai contando", diz Nuno van Uden,
filho de Dona Maria Adelaide de Bragança. "Disso" é o resumo de anos de
risco. Correu-os seguindo o princípio de ultrapassar o temor: "Ter medo
de ter medo." Na Áustria enfrentou a ocupação nazi. Com todas as
consequências. Em 1944, com a sua irmã Maria Benedita foi presa e
condenada à morte por ouvir a BBC. As pressões de Oliveira Salazar junto
do Reich e a concessão de passaporte diplomático português
salvaram-lhes a vida.
"Esteve
detida durante mais de cinco meses", calcula o filho. Terão sido nove
os meses de cativeiro. Então, na cela ao lado da prisão de Viena estava o
conde Claus Schenk von Stauffenberg, que liderara o atentado falhado
contra Hitler. "Tudo o que vi obrigou-me a empenhar-me a sério na
Resistência", confirmou a Raquel Ochoa, autora da biografia A Infanta
Rebelde (Oficina do Livro, 2011).
Nas mãos da Gestapo
Foi
assim que passou a integrar a rede da organização 05. Se a entrada dos
nazis em Viena e a anexação da Áustria, em 1938, impediram que
concluísse o curso de Enfermagem no hospital de Rudolfinerhaus, a
resistência ganhou um elemento determinado e corajoso. Uma activista
católica formada em assistência social. "Cheguei a saber onde iam ser
lançadas as armas para a nossa e outras organizações a que estava
ligada", recordou no livro. Entre elas, entidades austríacas de apoio a
judeus, britânicos e comunistas.
Dava
apoio a clandestinos, organizava transportes de armas e alimentos que
os ingleses lançavam. Tinha o nome de código "Mafalda", em homenagem a
uma sua irmã já falecida. Perto do final da guerra é novamente detida
pela Gestapo. No bolso de um militante comunista foi encontrado o seu
número de telefone e, apesar de ter fugido da sua casa na localidade de
Seebenstein, acaba por ser capturada em Viena. A repressão nazi encheu a
prisão de resistentes, alguns dos quais passaram a estar detidos num
hotel ocupado para este efeito pelos alemães. Foi aqui que viveu quatro
meses de cárcere com inquietação e perplexidade. Não muito longe do
quarto onde a encerraram estavam armazenados os registos dos militantes a
eliminar pelas tropas alemãs.
"Estava
muito interessada em que esta lista desaparecesse", refere no livro de
Raquel Ochoa. "Por isso dei a indicação onde deveria cair a bomba." O
bombardeamento foi certeiro. E a actividade de "Mafalda" ganha, assim,
outros contornos, para além de resistente. A sua colaboração com os
ingleses era estreita. "Há uma série de coisas que quem está na
resistência tem de esquecer, porque nos interrogatórios pode ceder e pôr
em causa a organização", explica Nuno van Uden. Aqui encontra a razão
para que a sua mãe só de "vez em quando" se recorde deste passado. São
fragmentos. Episódios. Longe de um relato.
A
entrada das tropas do Exército Vermelho em Viena não lhe devolveu a
liberdade. Por ser resistente não comunista e aristocrata, tinha a rota
marcada: a deportação para a Sibéria. A tão desejada destruição dos
arquivos nazis por uma bomba teleguiada pelas suas informações impedia,
agora, a confirmação do motivo da sua prisão. No entanto, a explosão não
destruíra todos os documentos. Por acaso e muita sorte, um oficial
russo encontrou a ordem de prisão da Gestapo. Na ficha constavam as
razões da detenção de "Mafalda": o seu relacionamento com um comunista.
Dois dias antes de ser deportada, foi libertada. "Foi assim que me
safei", relatou na sua biografia. Com a entrada das tropas aliadas em
Viena, em liberdade numa cidade destruída, integrou as equipas da Cruz
Vermelha Internacional que auxiliavam feridos e doentes. Nessa missão de
enfermeira com curso inacabado, faltava-lhe a última cadeira, conheceu
Nicolaas van Uden, um jovem estudante de Medicina holandês. Com ele se
casou sem luxos de Infanta.
A descoberta de Portugal
A
África era o destino sonhado pelo casal. A Etiópia seria a primeira
paragem de um percurso desejado para assistir as populações locais.
Contudo, em 1948, pela primeira vez na sua vida, pisou solo português.
Aterrou no aeroporto de Lisboa com o marido e dois filhos. Foi o fim do
exílio. Acabam por instalar-se numa quinta em Murfacém, na Trafaria, que
pertencera a Nuno Álvares Pereira.
Dona
Maria Adelaide de Bragança descobre o seu país. Um país pobre, de
múltiplas carências. Visita as barracas de Porto Brandão, os galinheiros
onde vivia a mão-de-obra nos primórdios da industrialização da margem
sul. Cenários de muitas necessidades. De profunda miséria. Uma revelação
que a incomoda. Lança uma obra social, à margem dos usos e costumes do
regime. Com sentido prático e sem pose. Chamou-lhe Fundação D. Nuno
Álvares Pereira. E descobre também o despovoamento intelectual do
regime. Uma confrangedora falta de ideias e iniciativas para quem,
nascida em 31 de Janeiro de 1912 em Saint-Jean-de-Luz, junto à fronteira
hispano-francesa, sempre vivera na activa Europa central da primeira
metade do século passado.
Agradecida
a Salazar por a ter salvo das garras da Gestapo em 1944, vivia uma
contradição pessoal. "Caiu-me muito mal saber que ele trouxe um oficial
da Gestapo para ensinar a PIDE a reprimir os comunistas e todos os seus
opositores", admite a Raquel Ochoa.
A
sua perplexidade não é caso único entre monárquicos e católicos. "Nos
anos 50, a frente política criada por Salazar começa a desfazer-se",
refere o historiador Fernando Rosas. "Dessa frente faziam parte
monárquicos, católicos e militares." Com o fim da II Guerra Mundial e o
início das transformações económico-sociais do regime aparecem as
contradições. Dona Adelaide de Bragança anota-as na sua observação do
quotidiano de dificuldades de quem ajuda em Porto Brandão. Afinal, a sua
experiência na Europa central era de outras práticas sociais e de um
desenvolvimento diferente.
"Como
o país está a industrializar-se, tornou-se mais patente a injustiça da
distribuição, à sensibilidade católica choca a pobreza", anota Fernando
Rosas. A infanta não está apenas chocada. Nem reserva só para si as
imagens que vê. Filma-as para despertar a consciência da gente da
sociedade. São os tempos de outros "despertares" e do consumar de
dissidências. "É o caso de Humberto Delgado, Norton de Matos e do padre
Abel Varzim", exemplifica Rosas.
A aspiração de Dom Duarte Nuno
O
incómodo de Maria Adelaide tinha ainda outros motivos. Sendo neta de
Dom Miguel, portanto monárquica, via que o papel dos seus no regime de
Oliveira Salazar não estava definido. "A política de Salazar jogou com
monárquicos e republicanos, tentando reter o apoio dos monárquicos sem
alienar os republicanos", refere o historiador Rui Ramos. Até porque,
acrescenta, o ditador "não é monárquico nem republicano". Para ele, é
indiferente a questão do regime que marcara o fim do século XIX e as
primeiras duas décadas do século XX. A Infanta também não desconhecia
que uma hipotética restauração da Monarquia não estava na agenda
política do regime. Afinal, que o seu irmão Dom Duarte Nuno nunca
reinaria. "Salazar utilizou a divisão da Família Real entre miguelistas e
constitucionalistas para conseguir o máximo consenso com o mínimo
custo", alerta Ramos. E recorreu a um expediente tradicional, uma forma
de controlo primária, mesmo grosseira mas eficaz. "Salazar teve sempre
muito cuidado para que a Família Real não tivesse meios, de que nunca
conseguisse ter autonomia financeira, pelo que não deixou que herdassem
os bens de Dom Manuel", acentua. Em síntese: queria a realeza
"dependente e vulnerável".
Não
era única a contradição pessoal de Dona Maria Adelaide de Bragança com o
regime salazarista: no seu agradecimento, enquanto "Mafalda", pela
concessão do passaporte diplomático que a salvara do fuzilamento; na
limitação das suas aspirações como Infanta; no seu olhar crítico como
cidadã. De algum modo, expressava a dúvida maiúscula de alguns sectores
monárquicos. "Perguntavam-se se a melhor situação era estar ao abrigo do
Estado Novo", explicita o historiador Rui Ramos. É quando no seio dos
que apoiaram o regime aparecem as primeiras dúvidas.
Perfil publicado originalmente a 8 de Fevereiro
O texto foi actualizado para incluir informação sobre a morte de Dona Maria Adelaide de Bragança
Nuno Ribeiro
Público, 25 de Fevereiro de 2012
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