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SOBRE O "ACORDO" ORTOGRÁFICO
Publico aqui mais uma valiosa achega sobre o novo “Acordo” Ortográfico.
O texto não é meu e já tem uns anos, e nele figuram todas as indicações sobre a sua autora.
Nestes tempos de profunda crise, onde,
por via da inclusão de Portugal no espaço europeu, tanto vamos perdendo
da nossa soberania política e económica, creio não ser pedir demais, que
pelo menos nos deixem a língua pátria tal como estava. Teremos assim
algo de substancial para nos recordar a Pátria soberana que antes
tínhamos.
Segue o artigo em causa:
Jornal “Comunicando”, página 8
Nº 2 – ano 1 – Fevereiro 1991
Órgão oficial da Associação Portuguesa de Relações Públicas
Director: José Marques das Neves
A cor do acordo
Isabel Ferreira *
No dia 15 de Dezembro de 1990, em
Lisboa, no Palácio da Ajuda, os ministros e secretários da cultura dos
países lusófonos assinaram, inesperadamente, o chamado Acordo
Ortográfico, elaborado por membros da Academia das Ciências de Lisboa.
Cerca de dois meses antes, tinha sido assinado o projecto. Pode dizer-se
que não houve demora nem hesitação.
Entre alunos e professores da Faculdade de Letras, e
em círculos ligados aos estágios de Português, falava-se da mudança (que
se discutia em privado) e ninguém sabia qual era. Os anteprojectos de
86 e 88 estavam a ser feitos, mas o seu teor estava e está (quantos o
conhecem?…) no segredo dos deuses. Na altura, tanto a Comissão da Língua
Portuguesa, como professores, linguistas, escritores e demais
indivíduos e associações interessadas, defenderam a necessidade de um
debate público e alargado. O debate nunca se fez. Porquê?
Sem entrar em grandes pormenores técnicos, convém
saber quais as principais consequências ortográficas para o nosso país.
Já toda a gente fala da queda das consoantes mudas, como, por exemplo,
na palavra «acta». Ganhamos mais uma (entre tantas outras!) homógrafa e o
prazer de procurar no contexto o sentido da palavra. Esta alteração
afecta cerca de 600 vocábulos. Temos, ainda, casos de dupla grafia,
porque, às vezes, a não articulada cai, outras não, é facultativo. Isso
mesmo, facultativo, como se essa consoante perseguida não fizesse falta
nenhuma! O facto é que faz. No campo dos acentos também está prevista,
para certas palavras, a dupla acentuação: acento agudo em Portugal e
países africanos, acento circunflexo no Brasil. Onde se põe, ou não, o
hífen, parece-me de menor gravidade, mas também , não vejo nenhumas
vantagens nas regras do acordo. O «K», o «W» e o «Y» vão ser incluídos
no nosso alfabeto. Sejam bem-vindos. No total, há 2600 termos atingidos,
o que equivale a 2,34 por cento do nosso léxico.
Os «pais» do acordo – autores e demais intervenientes
– não aceitam a polémica gerada. Tanto em Portugal como no Brasil há
muita gente a reagir: são apelidados de retrógrados, obstinados,
conservadores… no mínimo. O acordo, dizem os seus responsáveis, além de
ser necessário como actualização, perspectiva o futuro, visa a unidade
da Língua, põe o Português, como língua oficial, em organizações
internacionais (convencemos pelo número, sempre são 170 milhões) e ajuda
a aprendizagem da própria língua.
Aliciante à primeira vista, confuso para o olhar atento. Pessoalmente discordo do acordo. Não estou confusa. Nem aliciada.
Como professora sei que a anarquia ortográfica vai
reinar, sobretudo por causa do «alçapão» da arbitrariedade. Mais:
semanticamente também vamos ter que admitir muita coisa; o espírito vai
ser: lá como cá. Isso significa que o léxico e, até, a construção
sintáctica das novelas vão influenciar a expressão escrita. Já há muito
tempo que esta invasão cultural nos revolta. De futuro vai ser pior.
Na imprensa fala-se de ACORDO e ACTUALIZAÇÃO como se
fosse a mesma coisa. Não é. Sou pela actualização, feita por quem fala a
língua (os falantes) e por quem a escreve (os escritores, jornalistas,
entre outros). Se tudo evolui , a Língua, como organismo bem vivo,
evolui também. Essas são imparáveis, naturais, em espaço e tempo
próprio, sentidas como inevitáveis. Considero ridículo e perigoso
fazê-las por decreto assinado por políticos e alguns linguistas. Que
direito têm? Quem lho deu?
Está prevista para 1 de Janeiro de 1994 a entrada em
vigor do célebre decreto. O texto diz a certa altura: «Adoptar as
medidas que entenderem adequadas ao efectivo respeito da data de entrada
em vigor». O que me indigna nem é tanto a pobre «muda», nem o
problemazito dos traços – sejam acentos ou hífens – o que me indigna,
isso sim, é ser tudo resolvido à «queima-roupa» (como um golpe de
Estado) e imposto, como nas ditaduras.
Voltemos ao vocábulo ACORDO. Um dicionário bastante
divulgado, o «Lello Universal», diz na página 40 do 1º volume: «acordo» é
«conformidade de ideias e de sentimentos, bom entendimento. Harmonia.
Transacção. Convenção». Quanto à harmonia e à conformidade tal e tal, já
se viu que não existem. Resta-nos, para justificar o termo «acordo»,
analisar as vantagens e desvantagens, os benefícios e prejuízos que os
intervenientes conseguiram na negociação.
Começo pelos países africanos de expressão
portuguesa. Sobre os considerandos ortográficos não há muito a dizer:
sempre seguiram a nossa norma e vão ser obrigados às mesmas alterações.
Em termos culturais e económicos vão ter imensas vantagens: expansão da
actividade editorial, das bibliotecas nacionais, dos livros escolares,
além da integração, sob estes aspectos, no esquema de cooperação
internacional. Não espanta, portanto, que defendam este acordo
incondicionalmente.
O Brasil, segundo se afirma, também cedeu. Cedeu a
aplicação de grande número de acentos e aceitou alterações à hifenação.
Cedeu menos do que nós, o que é grave, mas, mesmo assim, muitos
intelectuais recusam-se a aceitar as novas regras e os protestos não
param. Em contrapartida, está a envidar esforços para que o Instituto
Internacional da Língua Portuguesa seja instalado no Maranhão e não em
Portugal, como é legítimo. E não haja ilusões: vamos assistir a uma
«chuva» de livros brasileiros e livros técnicos de toda a ordem. Não há
dúvida que vai ser um bom negócio! Já se está a investir nele em larga
escala, a fazer fé na imprensa brasileira.
E Portugal? Portugal assinou um acordo sem utilidade. Pior: só nos dá prejuízo.
As dificuldades de adaptação vão ser enormes
(imaginem o caos nas escolas, nas repartições do Estado, nos jornais e
nas tipografias) e a aprendizagem mais difícil, dado o aumento da
homografia e ambiguidade (quase maldosa) no uso de acentos e consoantes
não articuladas. Na prática, significa que estaremos sempre a balançar
entre a norma portuguesa e a brasileira.
Nunca verifiquei que ortografias diferentes
impedissem cooperação e intercâmbio cultural. Os meus alunos, mesmo os
mais pequenos, lêem Jorge Amado, o Jorge Amado que escreveu textos para
eles. Lêem e percebem-no perfeitamente. Se no Brasil não são mais lidos e
conhecidos os nossos autores, garanto que a barreira não é ortográfica.
Chega a ser cómica a insistência na «unificação», quando não há a
mínima hipótese de que ela aconteça na realidade. Vivemos em espaços
diferentes, com substratos linguísticos diversos, realidades e
mentalidades próprias. Evoluímos diferentemente. Como é possível
acreditar em «unificação»? Quem quer enganar quem?
Em termos económicos vai ser o desastre. Os livros em
geral e, especialmente, os dicionários, enciclopédias, gramáticas,
livros científicos, vão ter que ficar guardados como relíquias do
passado, na altura de «puxar cordões à bolsa» pode bem acontecer que
estejam a comprar uma obra de José Olímpio Editora, do Brasil. Estes e
outros irão estar na primeira linha.
E as editoras portuguesas? Esta decisão, mais
política do que outra coisa, vai deixá-las com dezenas de milhões de
contos de prejuízo. O nosso Secretário de Estado da Cultura afirmou
estarem previstos subsídios e linhas de crédito, mas, a avaliar pela
experiência noutras áreas, não é difícil imaginar que serão
insuficientes e chegarão tarde. Quem vai, de facto, cobrir as imensas
despesas das editoras? Todos nós, ao pagarmos preços exorbitantes pelos
novos livros. Quem viver, verá.
Feito o balanço, fica-se com esta
certeza incomodativa: todos aproveitam excepto nós. Não há dúvida, estou
contra. E insisto: o rei vai nu.
*
- Licenciada em Filologia Românica
- Professora do Ensino Secundário
- Exame de Estado em 1973
- Orientadora de Estágios de Português do Ramo Educacional (Faculdade de Letras)
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