António Sardinha na sua juventude. |
«Feliz de ti que crês! Eu não acredito nem deixo de acreditar. O século queimou-me as asas da fé e eu fiquei-me no limiar das portas da religião, sem poder sair nem entrar. No entanto é com melancolia cristianíssimo que eu olho os felizes que entram! É sempre bom ter-se uma certeza, ilusória embora, a que a gente se agarre nas oscilações da vida.»
António Sardinha numa carta datada de 03-11-1911,
endereçada à sua futura mulher.
endereçada à sua futura mulher.
O positivismo de Auguste Comte veio abalar de vez os já frágeis
alicerces de um paradigma tradicional, questionado pelos infames ventos
jacobinos da Revolução Francesa de 1789, bem como pelo lado negro da
esclavagista Revolução Industrial. À imagem do mundo ocidental, também
Portugal se viu coberto pela nuvem negra de um racionalismo opressor da
própria condição humana, estranho e antagónico à própria natureza do ser
português e da cultura lusíada, caracterizada por uma profunda
espiritualidade.
Para Portugal a entrada na contemporaneidade foi deveras violenta,
mergulhando-nos um profundo sono de consequências tão nefastas como
traumáticas. A generalizada confusão levantada pela corrente positivista
assombrou e desgastou as sucessivas gerações de intelectuais
portugueses, divididas na sua esmagadora maioria por uma luta interior,
travada entre a sua ancestral espiritualidade e a imposição racionalista
de um materialismo cego, fruto da tentativa aberrante de transformar o
Homem em Deus. Um Deus da Razão, criado pelo próprio Homem, em oposição
ao tradicional Deus criador.
Até mesmo António Sardinha, distinto poeta, ensaísta e doutrinador
político-social, associado ao Integralismo Lusitano, o
movimento monárquico católico português de carácter tradicionalista,
padeceu de uma enfermidade espiritual, fruto do século e da época em que
viveu. Esta herdara o pessimismo de finais do séc. XIX, nascido da
ressaca de quase cinquenta anos de euforia científica. A sua letargia e
vazio interior estendia-se a toda uma geração à qual pertencia e que,
descrente das doutrinas da Igreja e das certezas da Razão, se refugiava
nos meandros dos esoterismos e das sociedades secretas.
Foi a partir do contacto com as obras de Barrès, Bergson, Gustave Le
Bon, Jules Soury ou Vacher de Lapouge, nomes ligados à revivescência
católica iniciada em França durante o século XIX, que António Sardinha
iniciou um processo de introspecção conducente ao seu regresso ao seio
do catolicismo. Esta reaproximação foi inicialmente mais estética do que
dogmática, mas à medida que mergulhava fundo na tradição
político-religiosa portuguesa, mais foi sentindo a força do apelo da sua
fé.
Este processo de reconversão obrigou-o a ir de encontro a uma certa
disciplina e doutrina, exigindo o seu esforço e atenção, potencializando
desta forma o seu livre pensamento. Hoje, tempo e condições para
discernir são dois elementos praticamente impossíveis de reunir. O ritmo
da sociedade impele-nos a correr, enquanto as vicissitudes imorais do
mundo moderno nos procuram ocupar cada segundo das nossas vidas, nem que
seja com ruído ou entulho (des)informativo. Conforme defendia Henri
Corbin, o bloqueio do ser humano no acesso ao estádio imaginal impede-o
de realizar-se no seu todo, tornando-o mais submisso, conformado,
deprimido, oprimido e facilmente manipulável. Por mais que acredite que
não, o homem moderno aceita, de uma forma ou de outra, a ditadura do
sorriso e o seu sistema, bem como o totalitarismo da Razão, da Ciência e
de todos os dogmas sócio-políticos e económicos que procuram
impor-nos.
A arrogância advinda da falsa ilusão de que tudo está no Homem e no seu
meio, não existindo nada fora dele e muito menos num plano metafísico ou
espiritual, é a primeira causa para a existência de uma miopia
intelectual generalizada, inibidora da própria problematização
de hipóteses e até mesmo do desenvolvimento de um pensamento abstracto
ou especulativo, específico e exclusivo da própria humanidade,
assistindo-se à destruição dos racionalistas pelas mãos da sua própria
Razão, essa pseudo-libertadora. A asfixia da fé representa, segundo esta
perspectiva, um meio de opressão, um autêntico atentado à própria
condição, liberdade e dignidade humanas.
Torna-se por isso pertinente a seguinte reflexão de António Sardinha
que, apesar de escrita em 1912, se encontra longe de esvaziar nos
seus conteúdos e actualidade:
«Claro que o meu religiosismo, além de ser um protesto contra a opressão do direito de pensar livre que por aí vai, é motivo de arte e de consolação espiritual. Não me importo com o que a razão me diz, oiço apenas o sentimento. E de resto hoje, por toda a parte o homem se está voltando de novo para a aspiração à imortalidade, visto que nada colheu dum século de positivismo estreito e dogmático. A religião não tem nada com os padres, como o Cristianismo nada com o Romanismo. Quem confunde as duas coisas é duma lamentável miopia intelectual.»
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