O
escritor José de Sá Coutinho, 2º Conde d’Aurora, José de Sá Coutinho,
nasceu em Ponte de Lima em 19 de Abril de 1896. Em 1919, por ocasião da
Monarquia do Norte, partiu para o exílio tendo vivido em Espanha, no
Brasil e Argentina. Em 1921, fundou o periódico “Pregão Real”.
Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e foi juiz do
Tribunal do Trabalho.
A
sua obra reparte-se por vários géneros literários, caracterizando-se
pela defesa dos valores culturais tradicionais dentro dos moldes
estéticos do realismo, na senda de Eça de Queirós. Marcadamente
nacionalista e claramente crítico em relação à Primeira República, o
Conde d’Aurora dedicou ao Minho – aqui entendido como a região de
Entre-o-Douro-e-Minho – grande parte da sua obra literária.
A seu respeito e do meio onde nasceu e viveu, o poeta António Manuel Couto Viana referiu o seguinte: “…é
também esse ambiente que permitiu o nascimento de José de Sá Coutinho e
lhe deu o dom da escrita, para que fosse fiel intérprete literário da
belezas e riquezas etnográficas que o cercavam, num abraço de luz, de
cor, de emoção estética, de harmonia d’alma, de tradição fértil,
sentidas pela sua sensibilidade de eleição e pelo pode da sua
inteligência criadora”.
Como
evocação da sua memória, transcrevemos um extracto da sua obra
literária na qual dá-nos um retrato de como então vivia o minhoto.
“Ora
para bem admirarmos esta linda e pitoresca província temos de saber o
que ela é, com ali se vive, se trabalha, se cultiva – porque todos no
Minho vivem da terra. Vejamos rapidamente. Trabalho da terra é uma
maneira de falar, porque todos os trabalhos no Minho são divertimentos e
tudo se passa em descantes, velhas usanças, cantigas e namoricos. No
Minho é tudo pequenino, tudo é de brincar, tudo é teatral como um
presépio, tudo é graça, tudo é beleza.
O
pequeno casal minhoto basta-se a si próprio; as despesas são quase
nulas; é frugal e colhe poucochinho de tudo. O gado toma-o a ganho.
Para qualquer contita da tenda (venda se diz), lá manda a mulher à
feira com o que calha. E o resto vá de folgar. De jornas, jornais, quem
fala. Aqui é tudo de favor, só pela comida, e assim se ajudam uns aos
outros na mais exemplar das comunidades nesta província onde todos são proprietários.
E
por todo o ano adiante é uma série contínua de festas dionisíacas onde a
alegria cristã canta Deus na natureza – porque o velho Pã nunca viveu
no Minho. Começa o ano com as vessadas, o lavrar da terra. Terra negra, funda, leve, cheia de húmus, terra de aluvião sem calcário algum, tão fácil de virar.
Para
preparar o maior dos seus campos (4 a 5000 m o muito, e
excepcionalmente), chama o lavrador 20 pessoas; dá-se de comer e de
beber à farta a todos; metem-se 2 ou 3 juntas á charrua (e quando era o
velho arado de pau, imutável desde os romanos, chegava a 4 juntas, assim
chamas: pé, trilho,picadoiro e guia).
O grito do boeiro corta o ar e ouve-se no azul, a grandes distâncias,
vale em flora. E nunca sai um rego direito na terra – há que traçar de
quando em vez uns filhos ou netos (regos suplementares).
Beleza
do Minho! Porque na natureza não há linhas rectas, e o minhoto é como
ela: incapaz de desenhar uma linha recta, oh! Pintores modernos!
Canecas
de vinho verde e cantigas alegres escorrem sem parança – e tudo são
risadas. E todos os trabalhos são uma festa, um encadeado delas. É a
sacha, é a monda – vinte, trinta cachopas de cores vivas e chapeirões de
palha, cantando a cinco vozes, de sol a sol.
São os mil trabalhos do linho – como a rebolada, acasalados os pares antes do arranque. É a espadelada. É a desfolhada com as estúrdias e os mascarados e
a espiga de milho-rei, sorte grande ao namorado – e a roçada no monte,
nos altos píncaros baldios donde o carro, velho carro sabino, desce pela
penedia gemendo.
O chiar do carro é o orgulho e a alegria do minhoto que propositadamente lhe põe as chiadeiras.
Tudo
de brincar, tudo tão pequenino, porque não se juntam as parcelas? –
perguntará o forasteiro. Discretamente, porque isto é um divertissement e
não uma tese agrária, anotarei á margem que o Minho se formou através
nove séculos com a enfiteuse, o vínculo e os mosteiros, velhas escolas
de cultura – e citarei para minha tranquilidade o notável sociólogo
francês Leão Poinsard e o Sr. Ezequiel de Campos.
Pequenino casal minhoto, eido ou quinteiro,
espalhando alegria e cor na brancura das suas janelas maquilhadas de
cal e no vermelhão dos seus espigueiros (diz-se canastros) de cruz
alçada.
Altas
medas de palha milha indicam a riqueza de cada um – e a roliça meda de
palha centeia é encimada por uma bonecada, a rematar o trabalho que é
uma alegria, uma brincadeira.
Tudo
é alegria e folgar, mas como também há mais de cem dias santos no ano,
não há maneira de se cultivar a sério o Minho nestes terríveis tempos
modernos. Dias santos, domingos, festas – é todo o ano minhoto, é a
folhinha minhota.
Não
quero porém deixar sem reparo o dia de S. Pedro de Rates (26 de Abril)
que a Igreja não manda guardar e cuja hagiologia mal se conhece; nunca
foi de guarda, mas quê! o minhoto nesse dia não trabalha nem por nada,
que o santo évingativo! E citam-se exemplos: “àquela
nasceram-lhe os bacorinhos a dançar porque andou nesse dia num
bailarico” – outro teve uma ninhada de pintos aesticar arame, e
tantos terríveis e funestos exemplos mais… Mas facto é que ao domingo
ou dia santificado nunca se trabalha – e cangar o gado seria crime que
dava nas vistas e ninguém teria arrojo de perpetrar – cangar o gado!...
Por isso anda nesse dia o labroste muito maçado, pelos portelos e pelas
portas das vendas, ansiando pelos folguedos da semana – a chamada semana
de trabalho nas terras industriais.”
Conde d’Aurora, in Pela Grei
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