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A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO

A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO
Autor: Nuno A. G. Bandeira

Tradutor

sexta-feira, 18 de maio de 2012

HENRIQUE DE BORGONHA, NOVECENTOS ANOS DEPOIS

(Iluminura do Tumbo A da catedral de Santiago de Compostela, datado de 1129)
      
Em finais de Abril de 1112, em dia ainda incerto, apesar de longo debate entre os historiadores, morria em Astorga o conde Henrique de Borgonha, pai do primeiro Rei de Portugal. Passam, pois, novecentos anos sobre esse acontecimento, fim precoce de uma biografia que lançou os fundamentos da Nacionalidade. No momento em que discutimos os feriados nacionais, símbolos por excelência da memória colectiva, é um modesto dever de cidadania recordar a vida e a morte do “bom cavaleiro”, como lhe chamou Alexandre Herculano, sem o qual a nossa história talvez tivesse sido diferente.
     
Pouco sabemos sobre a existência de Henrique antes da sua vinda para a Península Ibérica, provavelmente integrado no séquito do irmão, o duque Eudes de Borgonha, que em 1087 auxilia o rei Afonso VI de Leão na luta contra os Muçulmanos. Sobrinho da rainha Constança, terão sido este parentesco e a influência da poderosa abadia de Cluny, então em intensa actividade religiosa aquém-Pirenéus, a introduzi-lo na corte leonesa. A migração de nobres, clérigos ou simples colonos da Europa central para as periferias da Cristandade não é invulgar, e Henrique conta-se entre os muitos que aqui acorrem, atraídos pelas promessas de terra e riqueza ou pelo fervor da guerra santa, como outros partem para mais distantes cruzadas. A Hispânia é vasta, e os reinos do Norte, necessitados de recursos humanos para ocupar uma fronteira que se estabelecera solidamente no Tejo, entre a conquista de Toledo por Afonso VI, em 1085, e a de Lisboa pelo seu neto Afonso Henriques, em 1147, acolhem os “Francos” de braços abertos. Para Henrique, a Reconquista é também um assunto de família.
     
Tanto mais que, em 1096, sucede no favor de Afonso VI a Raimundo, conde de Borgonha, um parente por afinidade a quem o rei leonês dera a mão de Urraca, sua única herdeira legítima, e os condados de Portugal e da Galiza, com as recentemente conquistadas cidades de Lisboa e Santarém. Incapaz, no entanto, de resistir à ofensiva almorávida de 1094, Raimundo perde Lisboa e, assim, o governo do Condado Portucalense, que o sogro lhe entrega, juntando-lhe Coimbra e um casamento com Teresa – outra filha, mas bastarda – ao promissor Henrique. Tem sido sublinhado, nomeadamente por José Mattoso, que este acto une pela primeira vez sob o mesmo poder político as regiões a Sul e a Norte do Douro, divididas pela barreira geográfica do rio desde os Romanos. É o embrião do futuro Reino de Portugal.
     
Encorajado pelos desejos de autonomia da nobreza portucalense, que tão decisivos se revelariam no posterior conflito entre Teresa e Afonso Henriques, o conde portucalense prossegue uma política quase independente dos suseranos leoneses, sobretudo depois da morte de Afonso VI, alternando a vassalagem e a oposição ao sabor das circunstâncias. Este percurso atinge um ponto alto no chamado “Pacto Sucessório”, tratado secreto que assina com Raimundo em 1105, garantindo-lhe apoio na luta pelo trono de Leão e Castela em troca de Toledo e da Galiza. Patrocinado por Cluny, em cujo arquivo foi descoberto, o documento mostra a extensão dos interesses franceses na Península. É possível que Portugal fosse hoje outro se o acordo tivesse saído do pergaminho, mas Raimundo morre dois anos depois da sua assinatura, inviabilizando o projecto.
     
Entretanto, a mesma ambição de libertar o Condado Portucalense de tutelas exteriores reflecte-se na política eclesiástica de Henrique, que sustenta repetidamente o pedido da dignidade metropolitana da Sé de Braga ao Papa. O título daria à diocese, restaurada em 1070, a antiga jurisdição sobre todas as congéneres galegas e portuguesas, supremacia que Santiago de Compostela reclama por seu lado, e é obtido por outro franco, S. Geraldo, bispo e depois arcebispo da cidade na primeira década do século XII, após longas negociações com Roma, nunca bem aceites além-Minho. O conflito agudiza-se quando Diego Gelmires, prelado compostelano e personagem wagneriana, rouba as mais veneradas relíquias bracarenses, num escandaloso exemplo de furta sacra. A disputa entre as duas catedrais é doravante uma ferida aberta na histórica proximidade das respectivas regiões, contribuindo para fortalecer o sentimento de independência da Igreja e das gentes portuguesas.
     
S. Geraldo será também um activo colaborador de Henrique na implantação da reforma gregoriana, do rito romano e do monaquismo beneditino no Condado Portucalense. Depois de um isolamento de séculos, devido à conquista muçulmana e à rarefacção dos contactos transpirenaicos, os reinos hispânicos voltam a aproximar-se culturalmente do resto da Europa. Outros bispos estrangeiros, como Hugo no Porto, Maurício Burdino em Coimbra ou Gilberto de Hastings em Lisboa – já no reinado de Afonso Henriques –, continuariam a aculturação das estruturas eclesiásticas locais. Não sem resistência dos Moçárabes, as comunidades cristãs que tinham vivido sob domínio muçulmano e possuíam um clero e um rito próprios, orgulhosa herança do seu passado visigótico. Coimbra, foco de moçarabismo graças à memória da longa oposição do bispo Paterno e do alvazil Sesnando Davides ao aggiornamento franco-romano, insurge-se contra os representantes de Henrique em 1111. Apaziguar a cidade exige ao guerreiro muita diplomacia e a concessão de um foral, mas Martim Moniz, genro de Sesnando e chefe dos revoltosos, é forçado ao exílio. Mais do que a vitória de um homem, o desenlace representa a vitória do catolicismo romano no território portucalense.
    
Henrique de Borgonha morre no ano seguinte. Faz-se sepultar na Sé de Braga, onde descansa finalmente em paz, esperando talvez uma visita nossa.
 
*Artigo no Público de Domingo (13-05-2012), em co-autoria com o meu amigo Mário Gouveia.
 
Pedro Picoito editado por Paulo Marcelo em  Cachimbo de Magritte

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