Túmulo de D. Afonso I no Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, a sede espiritual da nascente monarquia portuguesa.
§1 [A herança de Constantino e de Teodósio] O reino
português formou-se na sequência do movimento de expansão da cristandade
latina, consolidado por volta do ano 1000. Como unidade política
constituída numa fronteira em movimento para sul, Portugal
desenvolveu-se a partir de um núcleo geográfico no noroeste da Península
Ibérica que, embora periférico, já tinha implantada a matriz religiosa e
política definidora da cristandade latina. Essa matriz era herdeira dos
mútuos ajustamentos entre a Igreja cristã e o Estado romano durante o
século IV da nossa era. De facto, a legalização e o favorecimento do
cristianismo por Constantino (313-324) dera início à sua transformação
em religião civil do império romano, processo que ficou virtualmente
terminado com o édito de Teodósio, que o tornava a única religião
permitida (380). Os habitantes do império que não eram cristãos não
abraçaram subitamente o cristianismo; tiveram de aceitá-lo como nova
expressão religiosa da cidadania romana, conformando-se publicamente aos
seus princípios tal como codificados ou dogmatizados pelos concílios e
pelos imperadores. As crenças anteriores não desapareceram – bem pelo
contrário –, mas a sua institucionalização e expressão pública foram
reprimidas, o que conferiu um monopólio de facto à Igreja cristã como
religião organizada. Os termos disciplinares desta aproximação do
cristianismo ao Estado imperial teve uma sequela importante no noroeste
peninsular quando, a partir da província da Galécia e com manifestações
relevantes nas da Bética e Lusitânia, se formaram sociabilidades cristãs
autónomas de que o priscilianismo parece ter sido a mais significativa;
o desenvolvimento deste movimento espiritual em torno de Prisciliano
(f. 385), nas últimas décadas do século IV, viria a motivar uma forte
repressão imperial que pretendeu, pela submissão dos priscilianistas à
hierarquia eclesiástica oficial, dissuadir qualquer pluralização ou
autonomização de expressões da fé cristã fora do controlo da estrutura
episcopal patrocinada pela autoridade imperial. A sacerdotização e
hierarquização dos ministérios eclesiásticos decorreram destes
condicionalismos e, aquando da queda da parte ocidental do império
(476), os bispos assumiram funções civis e administrativas que
reforçaram o seu poder e o estabelecimento do cristianismo como religião
civil (um exemplo claro deste fenómeno foi o caso de Idácio, bispo de
Chaves após 427, no contexto das relações difíceis entre a população
cristianizada hispano-romana e os invasores suevos). Por este facto, a
Igreja tornou-se a guardiã do direito civil romano, dele fazendo a sua
lex terrena que preenchia as insuficiências do direito canónico em
formação; e será também através da Igreja que o direito romano será mais
tarde apropriado pelos novos estados da cristandade latina (HDP, 247ss).
[As recentes pesquisas arqueológicas
em Mértola indiciam que o cristianismo monofisita sedeado em Alexandria,
Antioquia e Damasco teve influência no sul da Península por meio de
contactos comerciais e de vestígios culturais como lápides em grego e o
uso do nome Eutiques; o palácio episcopal do século VI, «conjunto
baptismal de grande luxo decorativo» deste municipium romano
que depois não enviou bispo aos concílios de Toledo, faz pensar que
persistiu um cristianismo heterodoxo no sul do território português que
explica a conversão fácil ao Islão a partir do século VIII, também
acontecida nas regiões monofisitas do Mediterrâneo. Cf. Cláudio Torres,
«Camponeses e mercadores no Mediterrâneo», Arqueologia Medieval n.º 10 (2008), pp. 5-11].
§2 [A religião civil cristã na Península Ibérica] A
Península Ibérica, parte do império, sofreu igualmente estas mudanças e,
apesar das invasões do século V, a herança romana manteve-se com a
construção do reino visigótico e a conversão de Recaredo (589) que,
abandonando o arianismo, se conciliou com o catolicismo trinitário dos
hispano-romanos (o mesmo ocorrera em meados do século V no noroeste com
os Suevos, graças à acção de São Martinho de Dume, bispo de Braga). Tal
como haviam feito os últimos imperadores, os reis suevos e visigodos
ligaram o seu governo à Igreja: uma das primeiras medidas de Recaredo,
depois da conversão, foi convocar um sínodo, onde se reuniram todos os
bispos dos territórios sujeitos ao seu poder; nas decisões do sínodo
participou o próprio rei, que depois se encarregou de as fazer cumprir
no seu reino. Os concílios gerais, tornados regulares a partir de 633,
reuniam os bispos e os nobres sob a presidência do rei e «acabariam por
não ser apenas assembleias destinadas à discussão de matérias
religiosas, mas também de todas aquelas que, de acordo com o monarca, se
ligavam ao bom governo do reino» (HRP, I, 303). A apropriação
do cristianismo como religião civil foi, pois, claramente continuada no
espaço peninsular no período visigótico, o que teve também uma expressão
jurídica. Na realidade, a monarquia visigótica dotou-se de leis já
muito influenciadas pelo direito romano, pelo que puderam conciliar-se
com a lex terrena da Igreja: o Código Visigótico de 654,
posteriormente revisto, era já uma compilação e revisão de leis do fim
do século V, que haviam codificado e romanizado, ainda na Gália, o
antigo direito consuetudinário godo. Após a invasão islâmica da
península, os cristãos, nomeadamente moçárabes (que adoptaram a cultura
árabe), mantiveram o direito visigótico, o que foi um importante
elemento de continuidade com o período anterior, que pôde ser reforçada
com o início da reconquista cristã a partir do reino asturiano. Até ao
fim da reconquista no território português (1249), a matriz do direito
será em boa medida consuetudinária, dispersa e local, sendo a antiga
codificação uma referência mais do que uma prática; os costumes locais
com valor de lei aparecerão muitas vezes consagrados nos forais das
localidades (alguns anteriores à fundação do reino), concedidos pela
autoridade real ou senhorial. Por seu lado, a própria actividade
legislativa será muito escassa até meados do século XIII, havendo
indícios de aplicação em Portugal de leis oriundas da cúria leonesa de
1017 e dos concílios de Coiança (1050) e Oviedo (1115).
§3 [O patrocínio senhorial à religião monástica] A
persistência da ligação do grupo dominante nas sociedades cristãs do
ocidente peninsular à Igreja latina ficou patente no facto de o
repovoamento cristão do território portucalense (desde 868) se fazer
acompanhar da implantação de pequenos mosteiros ligados aos condes do
território e, depois, à nobreza de infanções a partir do fim do século
XI. No século seguinte, famílias como Ribadouro, Maia e Baião protegeram
a instalação de novos centros monásticos, beneditinos e cistercienses,
já depois de D. Henrique ter recebido o governo do condado portucalense
(1096): os nobres aliaram-se, assim, àqueles que na Igreja latina
surgiam como os novos «interlocutores privilegiados das potências
sobrenaturais, para melhor garantirem a sua “honra”, a sua força, a sua
prosperidade, a ilusão de vencerem o tempo» (Mattoso, Identificação,
191). Nos mosteiros, os nobres fundaram os seus mausoléus familiares e
estabeleceram as suas relações rituais com o sagrado através de uma
liturgia mais impressionante (e percepcionada como mais eficaz); mais
tarde, a própria monarquia portuguesa virá a tornar, a partir de 1131, o
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra a sua sede religiosa (que passará
depois para Alcobaça, com a deslocação da capital política para Lisboa).
Por outro lado, na relação com os bispos jogou-se em boa medida o
sucesso das estratégias de poder dos elementos da nobreza; daí que as
veleidades autonomistas de D. Henrique e do seu filho D. Afonso face ao
rei de Leão estivessem ligadas, como se verá, à sua preocupação de
consolidar a dignidade da diocese de Braga, restaurada em 1070 e
praticamente coincidente com o território do condado portucalense.
§4 [Contenção e integração da religiosidade popular]
Mas este processo teve como pano de fundo uma complexa realidade
sócio-religiosa de crenças e práticas ancestrais que tiveram de ser
enquadradas e acomodadas a estas mutações das elites, mais marcantes nos
ambientes urbanos. É aqui que entronca, na nova “sociedade cristã”, uma
tensão de longa duração entre a religiosidade oficial e a religiosidade
popular, que se fará eixo da manifestação de uma diversidade latente
sob uma aparente uniformidade. A persistência das gnoses mágico-vulgares
(magia, artes divinatórias, astrologia) tem sido um fundo religioso
irredutível ao cristianismo, que este tentou conter e ao qual teve
muitas vezes de se adaptar para sobreviver como estrutura de
enquadramento. Daí que objectos antigos considerados sagrados, como as
“porcas” ou verracos, fossem guardados junto aos pelourinhos dos
concelhos ou muitos santuários, ermidas e romagens a eles associadas, de
origem pagã, tivessem sido “cristianizados”, tal como a crença na
eficácia da invocação de forças sobrenaturais nos juramentos (Mattoso, Identificação,
396ss). A lenta cristianização desse universo de crenças em forças
benéficas e maléficas, ainda radicado no animismo, foi colocando os
santos como protectores e agentes do bem e atribuindo todo o mal – e
muitas vezes também os ritos considerados eficazes, mas concorrentes dos
administrados pelo clero – ao diabo. Mas, para que a aceitação
generalizada de tal mutação se pudesse dar, foi necessário que o clero
se conseguisse impor, junto das massas não pessoal e interiormente
convertidas, como o detentor do monopólio na administração de
determinados sacramentos de profundo significado jurídico e religioso,
nomeadamente os associados ao nascimento, ao matrimónio e à morte. Este
monopólio do clero foi politicamente patrocinado pelos grupos
dirigentes, sobretudo pelos já imbuídos do espírito da reforma
gregoriana do século XI – que acentuava a separação do laicado e do
clero, conferia a este último a administração dos sacramentos e à
hierarquia encimada pelo papa o monopólio da investidura de párocos e
bispos. A organização clerical hierarquizada em bispos, arcediagos e
párocos institucionalizou a presença secular e territorial deste
monopólio sacramental que os bispos, com visitas frequentes e a
realização de sínodos diocesanos anuais (a partir do século XI),
tentaram sempre controlar e manter disciplinado. Os vestígios culturais e
litúrgicos moçárabes, herdeiros do cristianismo hispano-romano e
visigótico, foram forçados à submissão a este novo modelo, à medida que o
território ia crescendo para sul (as etapas fundamentais foram a tomada
de Lisboa em 1147 e a conquista definitiva do Algarve em 1249).
§5 [Fronteiras políticas e eclesiais] Ora, a formação
do reino de Portugal é contemporânea da reforma eclesiástica iniciada
pelo papa Gregório VII (r. 1073-1085); neste período áureo de influência
do papado, a Santa Sé quis afirmar a autonomia institucional da Igreja
(sobretudo na provisão dos cargos clericais) e a supremacia espiritual
sobre os poderes temporais. É desta época a codificação do direito
canónico, com o Decretum (c. 1140) de Graciano, e a tentativa
de subordinação do direito civil em caso de contradição – doutrina que
virá a ser explicitamente aceite em Portugal na cúria régia de 1211.
Neste contexto, na cristandade latina, os poderes mais periféricos em
relação ao sacro império romano-germânico tenderam a aliar-se a Roma,
por muito que pretendessem manter os seus próprios privilégios na
provisão de cargos na Igreja. Neste sentido, não surpreende a estratégia
de D. Afonso Henriques (r. 1139-1185) de se querer sujeitar a uma
suserania directa ao papado como forma de consolidar a política
autonomista de seu pai, tendo aparentemente, nesse propósito, a
colaboração de D. João Peculiar, arcebispo de Braga de 1138 a 1175. A
tentativa da coroa de Leão e Castela de, a par de se pretender
transformar no vértice da pirâmide vassálica peninsular, impor a
supremacia da sé de Toledo como centro espiritual da península evidencia
a ligação entre os conflitos políticos e eclesiásticos da época, quase
se assumindo como duas faces da mesma moeda nas lutas entre os
principados ibéricos e entre as respectivas dioceses; e, neste contexto,
a recusa do clero bracarense de sujeitar-se à supremacia de Toledo foi,
pois, um processo convergente com o da autonomização política de
Portugal. Quer na união quer na fragmentação, as unidades sociopolíticas
tendiam a exprimir-se em termos dinásticos e diocesanos. Assim, apesar
do conflito idêntico que opôs Braga a Compostela – que conservou até ao
fim do século XIV a jurisdição sobre territórios portugueses mais a sul,
como Lisboa e Évora –, o reconhecimento papal da realeza de D. Afonso
Henriques (bula Manifestis probatum, 1179) e a sua autonomia de
facto parecem ter secundarizado estas rivalidades entre dioceses e, no
geral, conduzido a uma uniformização funcional e progressiva de
fronteiras políticas e eclesiásticas. Esta lógica de paralelismo
jurisdicional era sentida como necessária ao exercício da autoridade
real num contexto de harmonia entre a esfera eclesial e a civil; aos
bispos também conviria a relação com um só soberano laico na
administração da respectiva diocese, sobretudo se esse soberano a
pudesse engrandecer.
§6 [O cerceamento da libertas ecclesiastica] A
administração deste complexo institucional, no qual é muitas vezes
difícil dizer o que é o “Estado”, o que é a “sociedade” e o que é a
“Igreja”, era propensa a choques e sobreposições de poderes e funções,
desde logo porque o monarca pretendeu assumir, na lógica da religião
civil, uma posição política cimeira que comportava a intervenção em
matérias propriamente eclesiásticas e a sujeição dos clérigos. Por outro
lado, como se viu, a generalidade dos núcleos monásticos tinha patronos
nobres ou reais e não raro recrutavam membros desses meios sociais, que
neles assumiam responsabilidades e teciam compromissos. Em relação ao
clero secular, muitas povoações gozaram do direito de eleger os
respectivos párocos, o que foi sendo suplantado pelo padroado ou direito
de apresentação das casas nobres e, nas terras sem senhor, pelo do rei;
os bispos já antes haviam reclamado o cumprimento da norma canónica que
lhes conferia o direito de confirmar e investir o pároco apresentado
pelas assembleias municipais e reclamaram-no depois aos padroados
senhoriais e real (Mattoso, Identificação, 394ss). Assim, ocorreram vários conflitos em torno da libertas ecclesiastica,
as imunidades e prerrogativas do clero que eram o suporte do seu
estatuto social e religioso; o entendimento dos bispos (em geral com o
apoio da Santa Sé) de que esse estatuto era conducente a uma posição de
privilégio ou separação em relação à restante sociedade foi contrariado
pela coroa, que o entendeu limitado e integrado numa ordem jurídica
tutelada por si própria. Estas diferenças eram sensíveis sobretudo em
matérias relativas à propriedade (esteio da libertas) e à
administração da justiça. O clero gozava em princípio do privilégio de
foro, isto é, de estar apenas sujeito aos seus próprios tribunais, mas a
coroa revelou desde esta época querer limitar tal princípio às questões
espirituais. A limitação da isenção fiscal foi igualmente ensaiada pelo
lançamento, a favor da coroa, da décima sobre todas as rendas
eclesiásticas (1320); outros privilégios diziam respeito à isenção de
serviço militar, à inviolabilidade do direito de asilo em igrejas e à
execução por párocos ou outros clérigos de disposições testamentárias
com legados pios (o que a coroa combateu por não estar interessada no
grande volume desses legados, parcialmente subtraídos à sua acção
fiscal). A imunidade do património eclesiástico, o último dos
privilégios, revelou-se o mais sensível e motivou os conflitos graves
dos reinados de D. Afonso II, D. Sancho II e D. Afonso III (1211-1279).
§7 [O clero do rei] Nestes conflitos, o clero estava
profundamente dividido entre o rei e Roma, sendo de salientar que a
ascensão ao trono de D. Afonso III, após a guerra civil de 1245-1248,
foi a última mudança política decorrente de uma intervenção directa e
eficaz do papado em Portugal. No entanto, foi sintomático que o novo
rei, apesar dos compromissos com a Santa Sé aquando da deposição de D.
Sancho II por Inocêncio IV (bula Grandi non immerito),
prosseguisse e acentuasse a política real anterior, preocupando-se mais
em pacificar a nobreza, tentando ser aceite como jurisdição superior,
contra a privatização da justiça nas terras dos nobres. Em 1266,
deflagrou um novo e mais grave conflito (de que as inquirições de 1258
podem ter sido a causa) entre a coroa e o episcopado, que acusava o rei e
a nobreza de desrespeito pela sua dignidade e privilégios; tendo alguns
dos bispos partido para Roma, o rei não hesitou em nomear novos
prelados que lhe fossem fiéis. Aliás, em todo este processo, no qual um
papado em declínio se revelava impotente apesar dos interditos e
excomunhões, houve clérigos que apoiaram a coroa e que se mostraram
desligados das concepções eclesiológicas gregorianas de supremacia do
poder espiritual; eram «canonistas destacados, muitos deles apoiavam a
sua acção numa teoria dualista de poderes, de acordo com a qual o
engrandecimento do poder civil era inevitável ao bom governo dos reinos»
(HRP, I, 315). Mais tarde, haverá mesmo clérigos (por exemplo, criticados por Álvaro Pais, bispo de Silves, na sua obra Collyrium fidei adversus haereses)
que porão em causa a autoridade pontifícia ou a suposta igualdade de
autoridade entre a Bíblia e os documentos eclesiásticos (como os
decretos conciliares ou as constituições papais); tais tendências
revelam fenómenos de desafectação clerical a Roma ou à hierarquia que
tinham um significado político evidente de reforço da tutela real sobre
os assuntos eclesiásticos.
§8 [Beneplácito e provisão dos cargos eclesiásticos]
Apesar de a concórdia com o clero de 1282-1289, já no reinado de D.
Dinis, ter uma aparência de mútuas cedências, foi a posição de força da
coroa que prevaleceu, tal como, no governo da Igreja, as figuras do
episcopado mais próximas do rei (do que Durão Pais, bispo de Évora em
1266, era uma das figuras emblemáticas). As medidas contra a amortização
da propriedade eclesiástica (1286), bem como o acordo de 1309 com o
conjunto dos prelados (à excepção do de Viseu, D. Egas, autor de De Libertate ecclesiae) ou a nacionalização dos bens da ordem do Templo em Portugal (desde 1319 Ordem de Cristo pela bula Ad ae exquibus),
são indícios claros desta evolução, que se manteve sob D. Afonso IV e
D. Pedro I. Este último estabeleceu, aliás, o princípio do beneplácito
régio, que tornava obrigatória a autorização do rei para que fossem
publicados em Portugal documentos ou ordens pontifícias; este princípio
(já claramente estabelecido aquando das Cortes de 1361 e só
temporariamente abolido de jure em 1487), juntamente com a
provisão régia dos principais cargos clericais, conferiu à coroa um
controlo de facto sobre a estrutura eclesiástica do reino,
entrelaçando-a com as suas próprias funções políticas e administrativas.
Este fenómeno era visível no elevado número de eclesiásticos que
exerciam cargos civis, administrativos e diplomáticos ao serviço do rei,
apesar dessa dependência ter sido contrabalançada com o recrutamento
crescente de leigos letrados formados na universidade portuguesa
(estabelecida em 1290) ou em universidades estrangeiras – essa
“laicização” tornar-se-á patente ao longo do século XV. Já sob os
reinados de D. Fernando e D. João I, o chamado “cisma do Ocidente” e a
divisão da cristandade entre os papas de Roma e Avinhão (1378-1417)
reforçou o papel religioso e eclesiástico da coroa perante um papado
fragilizado e um episcopado submetido. O fim do senhorio (temporal) dos
bispos de Braga e do Porto sobre as suas cidades, respectivamente em
1402 e 1406, pôs fim ao último dos focos de discórdia grave entre a
coroa e o episcopado e foi um marco importante na redução do clero a
funções espirituais dentro do ordenamento político e jurídico do reino.
§9 [Direito romano e direito canónico] Apesar da subordinação de jure
do direito civil ao canónico, a prática parece ter sido que os
tribunais régios não só se impuseram aos eclesiásticos como
transformaram o direito canónico em subsidiário do civil, nomeadamente
em matérias que envolvessem pecados (HDP, 185). Esta subsidiariedade ligou-se à recepção do direito romano imperial (corpus iuris civilis), que foi introduzido pela coroa a partir de sínteses castelhanas depois traduzidas em português – como as Flores de Derecho, o Fuero Real e as Siete Partidas – e as fez usar pelos seus oficiais, nomeadamente os alcaides, a partir do reinado de D. Afonso III (como mostra o chamado Foro da Guarda).
O direito romano serviu à coroa para ir impondo “correcções” aos
costumes locais, de certa forma uniformizando-os, mas também para opor
uma ordem jurídica civil àquilo que viria a ser o corpus iuris canonici (as Decretais
de Gregório IX, de 1234, revistas e acrescentadas, num processo que
terminou em 1500). Dadas as concepções de poder supremo pressupostas no
direito romano, a coroa usá-lo-á também como meio de impor a sua função
de árbitro entre as várias fontes de direito e, dirimindo conflitos
através do aumento da sua própria actividade legislativa, far-se-á
aceitar progressivamente como criadora de direito. Nesta actividade
legislativa virá a estar assumida muito cedo a doutrina rex in regno suo est imperator
(soberania real), afirmada mesmo perante um legado imperial no reinado
de D. Dinis e pela embaixada ao concílio de Constança em 1417 –
afirmava-se assim também em Portugal a doutrina da exemptio imperii,
isto é, da soberania da coroa portuguesa perante as pretensões de
restauração de uma autoridade imperial na cristandade. As leis emanadas
da coroa virão a ser compiladas, primeiro sem qualquer sistematização (Livro das Leis e Posturas, fim do século XIV) e depois com alguma (Ordenações de D. Duarte,
primeira metade do século XV); entre estas duas publicações, com D.
João I, iniciou-se, porém, um verdadeiro trabalho de codificação de leis
régias, já entendidas como leis gerais do reino, o que veio a originar
as Ordenações Afonsinas (1446).
§10 [A paroquialização da Igreja estabelecida] Estas
mudanças jurídicas foram simultâneas de uma mutação lenta mas
fundamental na relação da Igreja com as populações, também com
consequências civis – a organização do campo religioso português numa
malha paroquial densa e completa, cobrindo todo o território. As
paróquias não eram inicialmente unidades territoriais delimitadas sob a
jurisdição do pároco, mas antes pontos de atracção e enquadramento das
populações locais; estas podiam, nalguns casos, optar pela igreja a que
queriam estar adstritas. Foi, porém, a regularização da cobrança do
dízimo (e a sua repartição pelas paróquias), a partir do século XIII,
que obrigou à sua delimitação territorial (Mattoso, Identificação,
404). A tendência foi que as diferentes paróquias definissem um
território envolvente afectando a população residente e que o
expandissem até encontrarem os territórios envolventes das paróquias
vizinhas, fechando-se assim a malha com que cobriam todo o reino. Esta
lógica territorial, que em grande medida já era a dos bispos, ajuda a
explicar as tensões existentes com algumas ordens religiosas que
obtiveram de Roma isenção canónica e cujos mosteiros e terras ficaram
excluídos da jurisdição dos bispos e dos párocos. O aparecimento das
ordens mendicantes, mais activas nas cidades por meio da pregação, da
propagação da confissão auricular e do apoio às confrarias (em que se
organizavam grupos profissionais ou locais com propósitos caritativos),
despoletou também tensões relativas ao exercício da autoridade religiosa
e sacramental perante os crentes. A própria coroa protegeu o
estabelecimento destas novas ordens dominicana e franciscana em dioceses
onde os bispos lhe eram particularmente adversos (como aconteceu no
reinado de D. Sancho II) e assim encontrou nessas dioceses (Lisboa,
Porto e Braga) novos aliados no clero para a sua política. De qualquer
forma, a delimitação territorial das paróquias veio possibilitar que os
párocos fossem assumindo um papel administrativo quotidiano e local que
reforçou o protagonismo da rede paroquial na eficácia institucional do
catolicismo como religião civil do reino – e essa eficácia foi tanto
mais aproveitada quanto a coroa foi capaz de expandir o seu controlo da
provisão dos cargos eclesiásticos e de sujeitar os bispos.
§11 [Primeiras penalizações da blasfémia e da heresia] O
aumento da densidade da rede paroquial e as possibilidades abertas pela
acção das ordens mendicantes potenciou as expectativas disciplinadoras
da elite política e clerical sobre a restante sociedade. A luta contra
as manifestações da religiosidade popular em maior contradição com a
religião oficial era um pano de fundo de rotina que, embora tecido de
contemporização e esforço catequético (muitas vezes também incidindo
sobre os próprios párocos), encontrava crescentes meios repressivos de
se afirmar; já a acção evangelizadora das ordens mendicantes começou a
popularizar uma sensibilidade mais aguda entre os crentes do que era e
não era ser cristão, contribuindo assim para reforçar a consciência de
uma identidade religiosa e da existência de modos de ser e de estar
“desviantes”. Essa evolução pode considerar-se visível no acompanhamento
de penalizações que se foram instituindo. Assim, a expressão de
heresias foi em 1211 alvo da primeira medida penal de origem secular;
com ela, D. Afonso II estabelecia o confisco dos bens para aqueles que
fossem considerados hereges por sentença episcopal e equiparava o crime
ao de lesa-majestade. Pela mesma altura (c. 1220), e em conflito com uns
decretos publicados pelo prior dos dominicanos, frei Soeiro Gomes,
contra os “delinquentes” leigos, o mesmo monarca reclamou para a coroa
tanto o monopólio da criação de novas leis como a punição da heresia. No
início do século XIV, D. Dinis legislou também contra a descrença em
Deus e na Virgem, estatuindo em tais casos a morte na fogueira; já a
blasfémia só virá a ser penalizada com açoites ou castigos pecuniários
no século seguinte, no reinado de D. Afonso V. No entanto, estas normas
não só eram aplicadas muito esporadicamente como não obstavam a que
vivessem no reino comunidades professando outras religiões nem que não
existisse um «clima de liberdade de pensamento e de expressão»,
evidente, por exemplo, nas controvérsias relatadas por Álvaro Pais em Collyrium (HRP,
I, 37). As normas preventivas da heresia destinavam-se aos cristãos
nominais e decorriam das tensões da ortodoxia doutrinal da Igreja latina
com as gnoses mágico-vulgares (que afectavam grande parte da população)
e com as gnoses especulativas (que afectavam os meios letrados e
deixaram vestígios da sua presença em Portugal sobretudo a partir do
século XIV em torno das especulações joaquimitas sobre uma terceira era
do mundo, cuja popularidade esteve ligada à pregação franciscana);
podiam ainda ser extensíveis a problemas de teor mais disciplinar como o
desrespeito por personalidades, objectos ou práticas tidas por sagradas
e como tal reconhecidas pela lei civil.
§12 [As minorias judaica e muçulmana] A existência de
comunidades de judeus e muçulmanos, não enquadradas na religião civil e
excluídas da sua disciplina, foi uma realidade em Portugal até ao fim do
século XV. A presença de judeus está atestada na Península pelo menos
desde o século II d. C., tendo permanecido sob o domínio islâmico, a
partir do século VIII, e depois sob a reconquista cristã; esta conduziu à
expulsão e ao exercício da violência sobre os muçulmanos, uma parte dos
quais foi reduzida à escravatura. No entanto, nas partes do território
em que a reconquista se consolidou, logo desde o século XII, os
muçulmanos livres (mudéjares), tal como os judeus, receberam protecção
régia e foi-lhes dada ampla liberdade de associação em autênticos
enclaves jurisdicionais, respectivamente as judiarias e as mourarias.
Nestas, de acordo com as leis judaica e islâmica, nomeavam magistrados
próprios, exerciam a justiça entre si e gozavam de importantes direitos
civis, extensíveis ao exercício da sua religião e à aquisição e
alienação de propriedade (Ordenações Afonsinas, II, lxxi, ci).
Muitas destas comunidades receberam, pois, personalidade jurídica e
estavam directamente dependentes do rei, dos seus funcionários e da sua
justiça, sem que a Igreja ou as autoridades locais pudessem exercer
sobre eles qualquer tipo de jurisdição. Esta relação estava patente na
fórmula com que o rei os designava («meus judeus» e «meus mouros») e, no
caso dos judeus, na existência de um alto cortesão – o rabi mor – que
desempenhava a função de articulação entre o conjunto das comunidades e a
coroa. Só na segunda metade do século XIV foram tomadas medidas
tendentes a separar do convívio com os cristãos os mouros e os judeus,
tendo as Cortes de 1361 reclamado o fecho nocturno das mourarias e
judiarias e pretendido desencorajar as relações entre fiéis das
diferentes religiões, nomeadamente as amorosas. Tais medidas, em boa
parte ineficazes, deveram-se a pressões clericais, que tendiam a ver nos
membros das outras religiões autênticos “focos infecciosos” para os
leigos cristãos (como era patente nas disposições do concílio de Latrão
de 1215, largamente ignoradas na legislação portuguesa); mas o progresso
destas ideias, sempre explorando a impopularidade de que gozavam os
direitos das minorias, só é compreensível pela sua popularização através
da pregação das ordens mendicantes e pela utilização que delas fizeram
grupos emergentes de artesãos e comerciantes cristãos a partir do século
XIV, pretendendo arredar a concorrência dos seus congéneres muçulmanos e
sobretudo judeus (HRP, I, 53ss, 91ss). Dada a proximidade dos
estados islâmicos do norte de África, uma parte considerável destes
muçulmanos remanescentes terá abandonado progressivamente o reino, sendo
o seu número bastante menos expressivo que o dos judeus no fim do
século XV (o que se tornou ainda mais notório depois da conversão
forçada de 1492 em Castela, que trouxe cerca de 30,000 judeus espanhóis a
refugiar-se em Portugal). Esta pluralidade religiosa condicionada era
vivida colectivamente, não pressupondo que os indivíduos de qualquer das
religiões pudessem auto-determinar-se em matéria religiosa. As medidas
de separação entre as comunidades não deixavam de ser vistas nas
minorias como formas de autodefesa e preservação face à tendência
assimiladora da maioria. Por outro lado, em toda a sociedade seria
exercido um controle social tendente a manter, mesmo dentro das
minorias, a fidelidade à obediência religiosa em que cada indivíduo
nascera. Existiram entre as três religiões, sobretudo da parte da
maioritária, esforços naturais de proselitismo, mas que não estavam
associados a medidas coercivas nem tiveram resultados relevantes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[HDP]
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da – História
do Direito Português – Fontes de Direito [4.ª ed. revista e actualizada,
720 p.], Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.
[HRP] AZEVEDO, Carlos
Moreira (dir.) – História Religiosa de
Portugal, vol. I Formação e limites
da Cristandade (coord. Ana Maria C. M. Jorge e Ana Maria S. A. Rodrigues,
544 p.), vol. II Humanismos e reformas
(coord. João Francisco Marques e António Camões Gouveia, 700 p.), vol. III Religião e secularização (coord. António
Matos Ferreira e Manuel Clemente, 584 p.), Lisboa: Círculo de Leitores, 2000
(vols. I e II) e 2002 (vol. III).
MATTOSO, José – Identificação
de um País: Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096-1325), vol. I (Oposição) [3.ª ed., 459 p.], Lisboa:
Edições Estampa, 1988.
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