Ala Sul do Mosteiro dos Jerónimos (Belém, Lisboa),
do período manuelino, no qual a Coroa virtualmente
terminou o processo de submissão da Igreja.
§13 [A
integração forçada das minorias na religião civil] Este estado de coisas
manteve-se, mutatis mutandis, até à
conversão forçada de Dezembro de 1496, que parece ter resultado da estratégia
de unificação dinástica peninsular de D. Manuel I que, para tanto, se sentiu
obrigado a adoptar a política de assimilação violenta já seguida em Castela e
Aragão (os judeus
espanhóis entrados em 1492 já tinham sido alvo de um tratamento extorsionário
e, no caso dos clandestinos, de violências que incluíram o envio de crianças
para São Tomé). As condições explicitadas no contrato de casamento do
rei com a princesa D. Isabel de Castela (1497) e a promessa de entregar judeus
procurados pela Inquisição espanhola parecem comprovar as razões políticas
conjunturais que presidiram a esta ruptura do tradicional compromisso da coroa
com as minorias. A redução à escravatura, a retirada dos filhos e a expulsão
foram as medidas aplicadas a todos os que recusaram o baptismo, sendo dadas aos
recém-convertidos (a partir de então chamados cristãos-novos), num primeiro tempo, garantias de igualdade – o que
não impediu se espalhasse uma desconfiança social patente no violento motim de
Lisboa de 1506, acicatado pelos dominicanos. Mas estes acontecimentos tornaram
evidente uma mudança da cultura política portuguesa, muito influenciada pela
conjuntura espanhola e pela estratégia dos reis portugueses de tentarem
hegemonizar a tendência para a unificação de toda a península. Essa tendência
foi também interna a cada um dos reinos, considerando-se a uniformidade
religiosa o seu esteio por excelência; desse modo, a religião civil tinha de
representar e integrar a totalidade da sociedade. A Inquisição será o principal
instrumento para almejar este desiderato, embora tenha também servido a
estratégia das elites cristãs-velhas para combaterem a ascensão dos cristãos-novos
ou a persistência da sua influência, de que por vezes já gozavam antes da
conversão forçada. Embora tenham existido casos de (re)integração de
cristãos-novos na elite (caso dos Crasto, ascendentes dos viscondes de
Barbacena), vieram a ser tomadas medidas discriminatórias. Apesar de os
estatutos de limpeza do sangue só terem surgido tardiamente em Portugal (entre
as décadas de 1590 e 1620, já no período de unificação peninsular sob os
Habsburgos), vieram a impor-se como medidas para impedir o acesso de
cristãos-novos a cargos civis e eclesiásticos, ao que aqueles souberam resistir
de modo relativamente organizado até à década de 70 do século XVII, revelando
alguma consciência de grupo (HRP, II,
55). Em todo o caso, como seria de esperar, os cristãos-novos que permaneceram
no País e resistiram às sucessivas contribuições forçadas para que a coroa
prorrogasse um confisco geral dos seus bens, integraram-se progressivamente na
identidade religiosa católica e na sua função civil, perdendo-se a ligação formal
e consciente ao judaísmo; a sobrevivência de práticas familiares não públicas
aconteceu, no entanto, sobretudo em ambientes rurais e permite-nos falar de
fenómenos persistentes e dispersos de criptojudaísmo
que chegariam aos séculos XIX e XX.
§14
[O cerco da coroa à Igreja estabelecida] As tendências em que se
inscreveram as medidas de D. Manuel I foram favoráveis ao acentuar do processo
já anterior de sujeição da Igreja à coroa, o que foi visível numa série de
acontecimentos da primeira metade do século XVI, do qual se destaca o
estabelecimento da Inquisição; o fortalecimento financeiro da coroa com os
rendimentos do comércio ultramarino foi um suporte importante desta política.
Desde logo, este monarca e os seus sucessores foram conseguindo a concordância
de Roma para colocarem membros da família real na alta hierarquia da Igreja,
conseguindo também para a coroa, em 1514, o padroado sobre as terras de
além-mar (antes conferido em 1456 à Ordem de Cristo); nesse mesmo ano foi
estabelecida pelo papa a Bula da Cruzada, que fazia reverter parte dos
rendimentos eclesiásticos para a coroa, em nome da expansão da fé em África e
no ultramar. Igualmente o controlo sobre as três ordens militares (Cristo, Avis
e Santiago) foi alcançado com o mestrado da ordem de Cristo (já concedido em
1484 a D. João II), a concessão do padroado das igrejas das três ordens (1516)
e, já sob D. João III, o mestrado das ordens de Avis e Santiago (1550) e,
depois, pela bula Proeclara carissimi in
Christe (1551), o mestrado perpétuo das três ordens. Em Dezembro de 1532,
sob D. João III, foi instituída (com a oposição de Roma) a Mesa da Consciência,
que, formada essencialmente por leigos, pretendia centralizar e administrar
toda a política eclesiástica da coroa: este conselho e tribunal tinha como
atribuições a «vigilância das instituições religiosas, assistenciais e
culturais, em que, tradicionalmente, se reconhecia competência à Igreja, como a
visitação e reforma dos mosteiros, hospitais, gafarias, albergarias, capelas,
mercearias e da própria Universidade», o escrutínio sobre a execução de
testamentos com legados pios e ainda a definição das competências no reino e
suas conquistas da coroa e do papado em questões eclesiásticas (HRP, II, 152). Com esta instituição –
que passou a denominar-se Mesa da Consciência e Ordens quando as três ordens
militares ficaram igualmente sob sua jurisdição após 1551 –, ficava plenamente
edificada a estatização da Igreja. Finalmente, em 1562, a bula Eximiae devotionis concedeu
perpetuamente ao rei a nomeação dos abades dos mosteiros e conventos (já
concedida a D. Manuel em 1517), o que também significava que o estabelecimento
de qualquer ordem religiosa ficava sujeita a autorização da coroa. Não
surpreende, assim, que o ambiente político e eclesiástico tivesse em Portugal
uma acentuada propensão regalista, como se depreende das palavras que um núncio
pontifício daqui enviou para a cúria romana em 1534, afirmando que «neste reino
há pouca reverência e respeito às expedições de Roma, tanto em coisas de
justiça como de graça, tanto por parte dos eclesiásticos como dos seculares» (HRP, II, 143).
§15 [O estabelecimento da Inquisição] Foi neste ambiente que a
organização de um tribunal português do Santo Ofício foi solicitada a Roma em
1515 e começou a funcionar em 1531, a exemplo do que se passava em Castela e
Aragão desde 1478, onde, sob controlo régio, operava com aparente eficácia na
criação de uma uniformidade religiosa e no controlo da manifestação de
diferenças. Em 1536 e 1547 novas bulas papais concederam à coroa a organização
completa da nova instituição, na qual foram colocadas altas figuras do clero
(como o futuro cardeal-rei D. Henrique, irmão de D. João III e tio-avô de D.
Sebastião), de modo a evitar incompatibilidades com interesses já instalados.
Agregando várias dioceses e encimados por um inquisidor geral (nomeado pelo
papa sob proposta do rei) que nomeava um conselho geral, passaram a existir
quatro tribunais distritais (Évora, Lisboa, Coimbra e Goa) com estrutura e
procedimentos complexos, patentes nos sucessivos regimentos (1552, 1570, 1613, 1640), e uma autonomia considerável
de regulação interna. Anualmente, eram publicados éditos de fé e de graça
convidando os fiéis a confessarem ou a denunciarem os delitos criados: judaísmo
(de longe, o delito invocado na maioria esmagadora dos processos e das
condenações), islamismo, protestantismo, heresias, blasfémias, solicitação no
confessionário, sodomia, bigamia, superstição, magia envolvendo pacto com o
demónio e, mais tarde, molinismo, jansenismo e maçonaria. Os éditos
particulares podiam ser dirigidos a grupos específicos como os tipógrafos,
livreiros e proprietários de bibliotecas e articulavam-se com a actividade de
censura que passava pela publicação de um rol de livros proibidos (Índex) e pela vigilância sistemática
sobre os portos do reino, os navios e as comunidades estrangeiras residentes (HRP, II, 117ss). A rede de colaboradores
da instituição, denominados comissários e “familiares”, num número que oscilou
entre pouco mais de 100 e 3000, enraizou a Inquisição na sociedade e tornou-a
também num veículo de diversificação do mercado de privilégios vigente,
sobretudo após a suspensão papal de 1674-81 e o subsequente “assalto” por
interesses mais claramente temporais. A visibilidade do tribunal foi mantida com
a regularidade dos autos-de-fé, que constituíam «uma espécie de “prestação de
contas” da actividade desenvolvida» (HRP,
II, 126) entre 1536 e 1767, período para o qual estão contabilizados 44,817
processos e mais de dois mil relaxados ao braço secular para execução. Tendo
revelado uma tendência profunda para a burocratização das suas funções,
escudando-se numa procura de actividade que continuasse a justificar a sua
existência, a Inquisição funcionou essencialmente como instituição dissuasora e
reguladora da diferenciação religiosa. De facto, a manifestação de diferenças
parciais ou aparentes em relação à ortodoxia defendida podia sempre ser
assimilada a um dos crimes definidos, dado que o desfecho dos processos
dependia em grande medida da discricionariedade dos seus funcionários. Assim,
foram muito raras, entre os casos julgados, as verdadeiras e declaradas
heresias, tendo o tribunal contribuído – além da constante vigilância em que
manteve a comunidade cristã-nova – para enfraquecer as tendências espiritualistas
(ou “iluminadas”) entre fiéis católicos, clérigos e leigos, particularmente
devotos. Esta tendência revelou, como um dos legados da Inquisição – e que lhe
sobreviveu –, uma desconfiança penalizadora do sentimento religioso que
desvalorizasse a componente institucional, social e disciplinar da religião.
§16 [O impacto do concílio de Trento] A
Inquisição pressupôs a assunção clara de uma mudança na lógica do papel do
cristianismo enquanto religião civil, porquanto, com esta instituição e com as
tentativas de reforma da vivência religiosa na sequência do concílio de Trento
(1545-1563), se passou a pretender influenciar não só o comportamento público
das pessoas mas também as suas crenças privadas. A religião civil deveria
passar a coincidir efectivamente com a religião privada de cada um dos
súbditos, que ficavam explicitamente obrigados a essa coincidência e sujeitos a
penalizações em caso de desvio de crença e comportamento. Tal projecto, tanto
pela impossibilidade prática de o realizar como pelas concepções então
dominantes, nunca fora assim explicitado e assumido pelo poder temporal durante
a Idade Média, o que explica a tolerância de outras expressões religiosas e o
controlo muito mais frouxo das opiniões e das práticas até à adopção de um
modelo mais coercivo de religião civil por D. Manuel I, sob influência do
ambiente peninsular. A coincidência cronológica dessa adopção com a divisão da
cristandade no início do século XVI e a reacção católica às reformas
protestantes tornou a Inquisição e os meios de controlo estatal da Igreja em
inesperados instrumentos da reforma tridentina; esta veiculou um modelo
completo de reforma espiritual da vivência religiosa dos crentes que como tal
foi assumido também como projecto político, tornando a uniformidade religiosa
almejada no início do século XVI uma utopia compacta, de características
tendencialmente totalitárias. Apesar das queixas ouvidas dos prelados, por
exemplo nas Cortes de 1562 (não observação de privilégios de foro por
funcionários seculares), que faziam lembrar agravos de trezentos anos antes, a
Igreja estava efectivamente submetida à coroa e foi nesse contexto que recebeu
as resoluções de Trento. A transposição dos decretos do concílio para a lei
geral do reino significou, precisamente, que a coroa se assumia como executora
no reino da reforma religiosa decidida em Trento (com participação portuguesa).
Neste sentido, o acordo celebrado por D. Sebastião em 1578 com o estado
eclesiástico foi uma revalidação da tendência regalista, mesmo que com aparentes
cedências que, aliás, faziam todo o sentido do ponto de vista do patrocínio
político da reforma tridentina – maior participação na supervisão de institutos
pios ou possibilidade de, nalguns casos, efectuar a prisão de leigos (HRP, II, 153).
§17 [A tentativa de reforma das práticas religiosas] No entanto, a
reforma da vivência religiosa com a sua adequação a modelos mais exigentes de
vida espiritual já despontara na passagem para o século XV com a renovação das
ordens religiosas, destacando-se entre nós o aparecimento dos Jerónimos (1400)
e dos Lóios (1471), sob o patrocínio de figuras da família real e da alta
nobreza; por seu lado, a reforma das ordens já existentes inscrevia-se tanto na
adesão a modelos mais exigentes de vida religiosa como à preocupação com a sua
função social de enquadramento e edificação dos leigos, podendo passar pela
criação de comunidades modelares (como o mosteiro da Madre de Deus de Xabregas
em 1509 sob o patrocínio da rainha D. Leonor) que formassem clérigos capazes de
espalhar um espírito de reforma e exigência da vida consagrada. Estes
precedentes reformistas, já patrocinados ou pela coroa ou por personalidades
influentes, explicam a predisposição cultural e religiosa para o potencial bom
acolhimento do espírito tridentino entre o clero e boa parte da elite secular.
De uma comunidade assim reformada, o convento de São Domingos de Benfica, saiu
frei Bartolomeu dos Mártires para assumir o arcebispado de Braga e tornar-se
uma figura imbuída do espírito refundador do concílio de Trento – no qual
participou activamente –, fundando um seminário no seu paço, intensificando as
visitas às igrejas da diocese e fazendo traduzir e imprimir em língua vulgar,
além dos decretos conciliares, o Flos
Sanctorum (1567), bem como o seu Catecismo
e práticas espirituais (1564), anterior ao Catecismo romano (1566, 1.ª ed. portuguesa 1590). Em todo o caso, o
esforço de catequização dos fiéis, pressuposto nos decretos de Trento,
enfrentou dificuldades nunca ultrapassadas e retratadas na obra de Manuel Góis
de Vasconcelos, Caminho espiritual das
almas cristãs (1613): segundo ele, a ignorância da doutrina cristã era
vasta tanto entre os montanheses incultos quanto entre os citadinos habituados
à pregação, que entendiam a catequese como “doutrina de meninos” ou pura e
simplesmente não a entendiam, preferindo os pregadores refugiar-se numa
linguagem elaborada que impressionava mas não convencia nem formava; daí a
ineficácia da penitência, da confissão e da comunhão, que se pretendia
generalizar (HRP, II, 30). Deste
modo, as formas modelares de vivência religiosa tenderam a implantar-se com
sucesso apenas em meios restritos e através de uma fecunda literatura
espiritual, não raro orientando-se, no caso dos leigos, para os meios mais
instruídos e favorecidos da sociedade. Foi essa a estratégia da Companhia de
Jesus, aparecida em Portugal com Francisco Xavier em 1540 e logo interessada na
formação dos “meninos fidalgos”, para o que veio a conseguir, sob patrocínio
régio, a refundação do Colégio das Artes em Coimbra (1555) e o estabelecimento
da universidade de Évora (1559-1759). Tanto na formação de leigos como de
clérigos, este espírito de religião modelar foi difícil de manter, dada a
renovação geracional com membros nem sempre de idêntica vocação; daí que novos impulsos
reformistas venham a surgir após períodos de reinstalação da rotina e maior
contemporização com a falta de vocação na vida consagrada.
§18 [Confrarias, Misericórdias e cultura
cívica confessional] Entre a sociedade alargada dos leigos, a
sociabilidade e as formas de associação tiveram uma expressão confessional,
como seria de esperar. Tratava-se
da expressão possível para a época de um "direito de associação".
As confrarias e irmandades que já tinham raízes medievais (Mattoso, Identificação, 409) e base popular
denominavam-se em geral a partir do santoral e pendiam para a organização ou
apoio aos ritos festivos, enquanto as surgidas ou reformadas a partir da
segunda metade do século XVI optaram por denominações ligadas às devoções
promovidas pelo espírito de Trento (Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora do
Rosário e Almas do Purgatório), pendendo mais para o auxílio ao culto e as
obras de caridade. O clero tentou orientar estas associações muitas vezes
nascidas espontaneamente entre leigos ou promover a sua multiplicação,
"protecção" que a coroa também tentou estender-lhes desde 1498,
sobretudo no caso das irmandades da Senhora da Misericórdia, que fundaram
hospitais e obras caritativas de vulto nas principais vilas e cidades do reino.
No fim do século XVI, e graças a um patrocínio régio que as fomentava mas
também manietava, existia já uma centena de Santas Casas da Misericórdia,
geridas por provedores e mordomos que, nas instituições principais, passaram a
ser nomeados ou fiscalizados pela coroa (através dos provedores das comarcas);
aliás, no concílio de Trento, por solicitação portuguesa, haviam sido
reconhecidas as confrarias sob protecção régia (depois transpostas para a lei
portuguesa), subtraídas à visitação eclesiástica e à tutela episcopal até nos assuntos espirituais
– o que acontecia mesmo em algumas das confrarias devocionais mais importantes.
Criou-se assim uma situação em que «as Misericórdias reduziram o espaço de
manobra às restantes confrarias locais, em matéria caritativa, remetendo a sua
actividade sobretudo para a esfera devocional» (HRP, II, 330). Empréstimos e dívidas mal geridos, patentes nos
séculos XVII e XVIII e muitas vezes decorrentes das clientelas que se formaram
nestas instituições patrocinadas, levaram a um ainda maior controlo da coroa,
que estendeu a sua jurisdição a todas as confrarias que não fossem de fundação
episcopal e as sujeitou a autorização administrativa para gestão de empréstimos
e legados pios (provisão de 6 de Junho de 1785, reforçada pelo alvará de 19 de Outubro de 1806). Essa situação levaria, mais
tarde, à dissolução da irmandade da misericórdia de Lisboa por decreto de 11 de
Agosto de 1834, passando a sua administração directa para a coroa e sendo
reorganizada, juntamente com o Hospital de São José, pelo decreto de 26 de
Novembro de 1851, que reformou o Conselho Geral de Beneficência criado em 1835
(Lopes, «As misericórdias», p. 87). Estas instituições seriam o germe da moderna
assistência pública secular e estatal. Existiram ainda associações que,
apesar de dedicadas a obras mais profanas, adoptavam designações ou patrocínios
simbólicos católicos, como a confraria do Espírito Santo da Pedreira dos
mercadores de Lisboa (desde o século XV) ou a academia literária Arcádia Lusitana (1756), que tinha como
símbolo o lírio da Imaculada Conceição. Esta cultura cívica confessional estava
ainda patente em cultos nacionais, como o do Anjo Custódio de Portugal
(introduzido por D. Manuel I e tornado obrigatório nas Ordenações a partir de
1521) e, mais tarde, no culto da Imaculada Conceição – que, patrocinado por
Filipe II de Portugal (III de Espanha), tentou absorver os cultos marianos
locais e foi reforçado quando o reino lhe foi consagrado em 1646 por
proclamação das Cortes aceite por D. João IV.
§19 [A unificação jurídica do reino] Nas primeiras Ordenações do
reino (1446), além da explicitação do direito geral em vigor, estabeleceu-se o
princípio do utrumque ius para as
fontes subsidiárias: o direito romano seria aplicado nas matérias temporais
sempre que a sua observância não fizesse incorrer em pecado e o direito
canónico nas matérias espirituais (nas temporais também só se o primeiro fosse
omisso ou quando a sua observância trouxesse pecado); no entanto, no caso de
questões não previstas na lei, se o recurso aos grandes juristas Acúrsio e
Bártolo não fosse esclarecedor, o rei deveria ser consultado e criar lei.
Apesar da dificuldade de o difundir e aplicar, este primeiro código não só
encerrava um projecto de unificação do direito (instituindo regras gerais até
para a multiforme administração municipal) como consagrava a capacidade
legislativa geral da coroa e a legitimidade da sua intervenção alargada, o que
foi um tour de force
jurídico-político. Este processo consolidou-se, mais de meio século depois, com
a revisão das Ordenações completada no reinado de D. Manuel I (1521), na qual
desapareceu a legislação relativa às minorias religiosas, se tentou uniformizar
a aplicação da lei pelos juízes através dos assentos da Casa da Suplicação e,
com a contemporânea reforma dos forais, se uniformizou o direito administrativo
local; não menos importante foi a incorporação da lei mental de D. Duarte, que tornava as jurisdições e bens das
casas nobres doações condicionais da coroa, sujeitas a confirmação desde D.
João II. A difusão da imprensa facilitou a eficácia desta unificação do direito
a partir dos séculos XVI e XVII, bem como a afirmação do poder central da
coroa, progressivamente animado por um espírito racionalizador já expresso na boa razam manuelina; esse espírito, por
agora ligado ao projecto tridentino, transportou-se também para as matérias
religiosas, identificando mais delitos e agravando penas. Assim, nas
Ordenações, a heresia era punida com a morte e o confisco, enquanto a blasfémia
(contra Deus ou os santos) fazia incorrer em penas pecuniárias, degredo ou
açoites; a prática de gnoses mágico-vulgares (“feitiçaria”) ou a pretensa
comunicação com Deus ou santos dava lugar a açoites e degredo, podendo a pena
de morte ser aplicada quando usados objectos considerados sagrados na religião
oficial. Em açoites, penas pecuniárias e degredo podia ainda incorrer quem
benzesse animais sem autoridade reconhecida (do rei ou da Igreja); também
podiam ser condenados os comportamentos considerados menos próprios dentro dos
templos. Em regra, o apuramento da matéria de facto pertencia à justiça
religiosa (Inquisição) e a execução das penas à coroa (Liv. V, i).
PARTE 2 DE 4 Parte 1 Parte 2 Parte 3 Parte 4
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[HDP] SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da – História do Direito Português – Fontes de Direito [4.ª ed. revista
e actualizada, 720 p.], Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.
[HRP]
AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) – História
Religiosa de Portugal, vol. I Formação
e limites da Cristandade (coord. Ana Maria C. M. Jorge e Ana Maria S. A.
Rodrigues, 544 p.), vol. II Humanismos e
reformas (coord. João Francisco Marques e António Camões Gouveia, 700 p.),
vol. III Religião e secularização
(coord. António Matos Ferreira e Manuel Clemente, 584 p.), Lisboa: Círculo de
Leitores, 2000 (vols. I e II) e 2002 (vol. III).
LOPES, Maria Antónia, «As misericórdias de D. José ao final do século XX» in José Pedro Paiva (coord.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Lisboa: C.E.H.R./U.C.P. e União das Misericórdias Portuguesas, s.d., vol. 1, pp. 79-117.
MATTOSO, José – Identificação de um País: Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096-1325), vol. I (Oposição) [3.ª ed., 459 p.], Lisboa: Edições Estampa, 1988.
LOPES, Maria Antónia, «As misericórdias de D. José ao final do século XX» in José Pedro Paiva (coord.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Lisboa: C.E.H.R./U.C.P. e União das Misericórdias Portuguesas, s.d., vol. 1, pp. 79-117.
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