A propósito dos recentes ataques a Isabel Jonet
1. Com as estruturas constitucionais e legais que ninguém
nos impôs, mas são aquelas que como povo decidimos e gerimos democraticamente,
entrámos numa grave crise económica e social. Essas estruturas são, aliás,
análogas às de muitos outros países que não estão, ou estão muito menos, em
crise como nós. É portanto evidente que as causas não são apenas estruturais,
mas sim dos nossos costumes: não estaríamos como estamos, super-endividados e
sem competitividade económica (ou estaríamos muito menos) se, governantes e
governados, tivéssemos sido suficientemente sóbrios, diligentes e honestos. Mas
esta explicação da crise é tabu. Como se comprova com a clamorosa agressão
mediática raivosa, de uns tantos contra Isabel Jonet, apenas porque ela
expressou algumas opiniões sobre a crise e os costumes na televisão.
2. Porquê tanto «ódio ideológico»? Porque se sentem
incomodados (eles dirão: indignados, porque cada um padroniza a sua dignidade)
por haver quem (por amor, ou caridade, é a mesma coisa) vai socorrer os que
precisam, sem estar à espera de reformas estruturais ou políticas, utópicas e
falsas — porque nunca e em nenhum lugar deixou de haver pobres e necessitados, e
não se pode esperar por elas enquanto alguém sofre?
Se estes «indignados» fossem interrogados acerca da sua
opinião sobre a legitimidade da censura à liberdade de expressão, eles
indignar-se-iam outra vez, só porque se lhes admitia a indignidade de adeptos da
censura. E contudo são censores; e ferinos censores. Eles são, aliás, os
«acusadores eternos» — não apenas críticos — por tudo e por nada enquanto não
seja tal e qual como pensam e querem mandar, apesar de se reclamarem como
democratas.
3. A sua tese é muito simples, mesmo caricatural: nada de
sentimentos personalizados, tudo estruturas e funcionários remunerados. Nada de
doação, de gratuitidade na sociedade civil (que é sociedade de relações
personalizadas entre iguais); tudo de prestações do Estado, pagas pelos impostos
forçados de todos, proporcionalmente dos mais ricos, e realizadas mediante a
intermediação de funcionários profissionalizados. Isto é, tudo em relações
burocráticas exclusivamente políticas: entre, por um lado, o Estado sem face; e,
por outro lado, cidadãos anónimos. O problema das relações das pessoas dos
cidadãos, entre si, não se coloca. É assim que, paradoxalmente, defendem a
liberdade, a igualdade e a responsabilidade dignificantes, em nome da dignidade
da pessoa humana, segundo o lema da Contemporaneidade: liberdade, igualdade,
fraternidade.
4. Não dizem é quem garante a «moralidade» do Estado e dos
funcionários — quem guarda o guarda — quando tudo colocam na sua acção e poder
burocrático, em que toda a gente é ninguém porque é anónima. Não admitem que o
paradoxo que a sociologia moderna já desmascarou, entre o alegadamente generoso
interesse geral e o realíssimo interesse egoísta privado, opera mesmo nos
políticos e nos funcionários, como pode por exemplo aprender-se com o sociólogo
Mancur Olson. Não será por acaso que os impostos o são pela força; e que a
parábola do (Estado) predador sedentário tem verosimilhança.
5. Em seu entender, quem não entende as coisas à sua
maneira politicamente correcta, não reconhece direitos e deveres. Ora isso é
falso. Os direitos e os deveres fundamentais do Estado de Direito Democrático de
modelo social europeu, de que nos reclamamos constitucionalmente, fundamentam
uma sociedade de titulares que são pessoas responsáveis de direitos e de deveres
com conteúdo personalizante (ou não seriam então reconhecidos com base na
dignidade da pessoa humana, como efectivamente são). Os deveres constitucionais
de solidariedade não se limitam a pagar impostos; e as liberdades fundamentais
pessoais, como as «caritativas», que não forçam ninguém, não podem ser
censuradas como heréticas.
6. O que Isabel Jonet faz, distribuindo gratuitamente pela
federação do Banco Alimentar, é apenas facilitar a doação de muitos milhares de
pessoas, que dão para Isabel Jonet distribuir. Se o que ela faz é
«caridadezinha» que merece ser ridicularizada, então os ridicularizados são
esses muitos milhares de pessoas que, sem se cansar, repetidamente têm vindo a
dar; e os que aceitam receber. Digam lá, esses mal-dizentes, se querem acusar
todos estes milhares de cidadãos de «caridadezinha». Algumas vozes anónimas até
disseram que vão deixar de dar, sinal de que já deram para a caridadezinha —
obviamente, ninguém dá nada pessoalmente a Isabel Jonet. Terão dado? Vão deixar
de dar?
7. Se o que se pretende atingir é o humanismo ou o credo
cristão — que, na nossa sociedade, possa estar por detrás destas iniciativas
caridosas —, então é preciso responder bem alto e destemidamente que os cristãos
não podem ceder perante a tentativa de ridicularizar [1] a sua verdade, [2] a
sua liberdade e [3] a sua história.
8. A sua verdade é que confessam sem vergonha Deus e o amor
ao próximo, como indissociáveis. A sua liberdade é que estão dispostos ao
martírio final, se necessário, o que definitivamente os liberta perante tudo e
todos. A sua história é que, com muitos erros e muitos acertos, muitos pecados e
muita virtude, confessam-se diariamente pecadores perante Deus, mas não se
envergonham perante quaisquer juízes humanos que agora pretendam ter descoberto
a suprema iluminação e a suprema perfeição que os legitima para julgar e
condenar sumariamente.
9. A doutrina cristã da Igreja tem um conteúdo teológico de
fé, de esperança e de caridade, que engloba não apenas a relação com Deus, como
solidariamente também a relação fraterna entre os homens. E acerca da
fraternidade, as obras de caridade dos filhos da Igreja, por todo o mundo e ao
longo de séculos (bem como a Doutrina Social da Igreja, mais sistematizada na
Contemporaneidade), pedem meças com o património histórico dos que hoje se
apresentam como julgadores perfeitos e detentores da justiça automática,
eficiente e perfeita, das máquinas estatais.
10. O pensamento social cristão — constantemente proclamado
pelos Papas e por mil instâncias dentro da Igreja, como por exemplo as
conhecidas Comissões Justiça e Paz —, não é apenas pensamento; é também acção
politicamente fecunda, de muitos modos, designadamente em partidos e em
sindicatos, na Contemporaneidade. Não é possível agora aqui invocar os legítimos
títulos de cidadania política e social dos católicos, na experiência histórica
ocidental da Contemporaneidade (embora erros concretos também haja). Baste
lembrar que a mais antiga internacional sindical é de origem cristã; que a União
Europeia e a defesa da ONU e da paz e cooperação internacional são bandeiras
destacadamente levantadas pelos católicos; que, no Parlamento Europeu, o maior
grupo parlamentar é ainda hoje de ascendência cristã.
11. Os católicos, com erros e acertos como todos os homens,
não se envergonham do seu passado em Igreja; não se envergonham da sua fé, da
sua esperança e da sua caridade. E não faltarão com o seu testemunho contra
aqueles que se erguem como censores totalitários do pensamento caridoso. Merece
aprovação que os católicos sejam pacientes. Sobretudo a hierarquia católica.
Mas, paciência é uma coisa; deixar passar sem crítica pública e destemida o erro
agressivo e prepotente, permitindo a impressão de que esse erro tem razão, seria
covardia na defesa da Verdade da Fé e da liberdade da Cidade.
Mário Pinto
(Prof. jubilado do ISCTE e da UCP)
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