«A nossa Constituição não proscreve em absoluto a realeza:
apenas tem como limite material a forma republicana de governo, ou seja,
a maneira de governar republicana – que pode (hipoteticamente)
bem ser comum a república plena ou a uma monarquia que vá incorporando o
princípio republicano: na verdade, no limite, tratar-se-ia de uma
proto-república com uma desinência não democrática no topo da pirâmide.
Na verdade, porém, não seria a única inflexão aos princípios republicano
e democrático: há alguns poderes fácticos, influências e prestígios que
seriam inafastáveis. Mas (em tese) não seria impossível.
Pascal dizia que nascer nobre significa, pelo menos, e mesmo para alguém
inteligente e diligente, poupar pelo menos uns trinta anos que o plebeu
teria, com sorte, a colocar-se em semelhante lugar(PASCAL, Blaise —
Peusées, V, 322: “Que Ia noblesse est un grand avantage, qui, dês
dix-huit ans, met un homme en passe, connu et respecté, comme un autre
pourrait avoir mérité à cinquante ans. C’est trente ans gagnés sans
peine”)
Misturas entre república e monarquia há muitas… Há quem confunda de propósito, e há quem o faça com a melhor das intenções.
Quando a Guernica volta a Espanha, seguindo o testamento de Picasso que
exigia que isso só ocorresse numa Espanha republicana, reconhece-se que
Espanha é “republicana” no sentido que é democrática. E, como dissemos, o
Rei Juan Carlos já foi recebido algures na América de língua castelhana
como rei da República de Espanha. É certo que uma república pode ter um
rei, como uma monarquia pode ter um presidente, como uma ditadura
poderá ser entendida não sendo, em rigor, nem uma coisa nem outra.
Os limites materiais são o que dá feição a uma constituição: se os
tirarmos, dinamitamos as cláusulas pétreas, e tornamos possível que uma
Constituição se desfigure. Por isso, se quisermos mudar de constituição,
façamos a caridade de enterrar como morta a Constituição de 1976 (é um
direito natural, pelo menos desde Antígona, esse de dar sepultura aos
mortos): não lhe enxertemos corpos estranhos e letais no seu sangue
vermelho e republicano. O limite material da fornia de governo não
impedirá que haja um rei, se um partido monárquico conseguir 2/3 para
uma revisão constitucional comme ilfaut. Bonne chance, alors !Já
se fizeram coisas muito piores com a Constituição: como a referida da
dupla revisão (compreende-se porquê, mas não se aceita)… Não falamos em referendo de regime, porque seria inconstitucional.
Mesmo assim, tendo-nos pessoalmente por completo curado da crença
populista no referendo (horrorizado com os referendos do aborto e pouco
edificado com o do porte de armas no Brasil e mais ainda com os
referendos à Europa, pela Europa fora), já nos ocorreu a possibilidade
de se discutirem os termos de uma ruptura constitucional pedagógica:
vamos ao tira-teimas de regime, se de um lado e doutro houver um pacto
de silêncio por, digamos, cem anos. Não se discutiria mais a questão do
regime e do sistema por cem anos. Pronto, ao menos cinquenta anos.
Estariam as partes dispostas a não dispararem mais anátemas de
ilegitimidade se isso ocorresse? É evidente que a questão nunca se
pacificará, a menos que se mude de paradigma, ou seja, que seja coberta
pelo manto pacificador do Letes. Só o esquecimento trará a paz nesta
matéria.
Na verdade, os lados são quatro lados, como bem viu o referendo
brasileiro, no seu tempo: monarquia, república, presidencialismo e
parlamentarismo. A monarquia presidencialista é o absolutismo, e
o presidencialismo republicano é mais monárquico que republicano, a
nosso ver, sendo a monarquia parlamentar uma “aproximação” (imperfeita) à
República. Pessoalmente, preferimos primeiro a república parlamentar,
corrigida pelo que aprendemos das ingenuidades conhecidas, depois a
monarquia parlamentar, depois a república presidencialista e finalmente a
monarquia presidencialista. Embora confessemos, por vezes um benigno e
ocioso rei “absoluto” apenas em teoria, de belas barbas brancas (as
barbas moderam sempre: até as de Fidel Castro moderaram o seu regime – é
a metafísica da barba de que já falava Afonso Romano de Sant’Anna) nos
seja mais simpático que um caudilho despótico, que se permitiria, no
máximo, um bigodinho.»
-Constituição & Política, Paulo Ferreira da Cunha
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