Efectivamente,
não concordo com a interferência decisiva dos judeus peninsulares nesse
período áureo da nossa existência nacional, embora à célebre Junta dos
Estrólicos, que funcionava junto de El-Rei D. João II, pertencessem
vários astrónomos hebreus. E não concordo porque, posta a questão em
termos gerais, é bom recordar que Renan, na Histoire Générale et Systèmes Comparés des Langues Sémitiques
assegurava, com a autoridade da sua larga competência filológica, que a
raça semita se define quase unicamente por caracteres negativos. O
semita individualiza-se, na verdade, não por qualidades criadoras, que
não possui, mas antes por preciosos recursos de assimilação que ele
valoriza excepcionalmente. Não dispõem assim duma arte, ou duma
civilização, no sentido alto da palavra. Não é outro o juízo de Renan,
ao escrever, no pequeno estudo De la Part des Peuples Sémitiques dans l'Histoire de la Civilisation,
«que o negócio e a indústria foram pela primeira vez exercidos em
grande escala pelos povos semitas, ou pelo menos falando uma língua
semita, – os Fenícios. Na Idade Média, os árabes e os judeus tornaram-se
também os senhores do nosso comércio. Todo o luxo europeu, desde a
antiguidade até ao século XVII, veio-nos do Oriente. Eu digo o luxo, e
não a arte porque duma ao outro lado está o infinito a separá-los».
Entende-se já
porque eu não adiro incondicionalmente à tese do senhor Bensaúde. O
Ocidente possuía uma ciência náutica remotíssima, com memória na
Odyssea. A navegação aqui sobe aos fins do neolítico. É donde derivam as
tradições apagadas que enchem de mistério e encanto o périplo decalcado
por Rufius Festus Avienus na Ora Marítima. Claro que a estas tradições
se ligaria forçosamente uma arte de navegar. Não é por literatura que
Séneca afirma não ser Thule o ponto final do Orbe (non erit terris ultima thule),
conforme o pretendia a geografia antiga. O mar imenso, o oceano sem
limites, é nos Errores de Ulisses que nos aparece pela primeira vez, se
não me engano.
E tão
ocidentais são as impressões contidas no Nostos, tão atlânticas elas
são, que, localizando o poema de Homero no declinar resplendente de
Micenas, as moradas que lá encontramos descritas não guardam em nada a
sumptuosidade da casa típica dos átridas! A habitação de Ulisses é mais
uma cabana nórdica, tal como no-la sugerem as sagas medievais, do que o
palácio dum rei, com o requinte egeano os sabia erigir.
Foi, pois, o
Levante que recebeu o influxo ocidental no conhecimento das coisas do
mar. No descalabro da civilização do Cobre, quando nós mergulhamos na
sombra, para só ressurgirmos depois de Roma, alguma coisa subsistiria no
entanto. Em forma de conto, em forma de superstição, naturalmente. É
que ao espírito empreendedor do ocidental correspondera, decerto, uma
regra, como que uma direcção, tirada do convívio dos astros na
dimensidão das águas. Com o adiantamento das horas da história, essa
herança perdida passa para o património da astrologia. A astrologia é
exercida na Idade Média, cavalheiresca e militante, por judeus e árabes,
visto que a defesa do europeísmo, expressa na fé da Igreja, impunha aos
cristãos o uso exclusivo da espada. Nós não ignoramos por outro lado
que a chamada ciência hebraica e islamita não é mais do que uma
apropriação da filosofia clássica, na sua forma racionalista, – o
Helenismo. É a altura de ouvirmos de novo Renan.
«Fala-se muitas
vezes duma ciência e duma filosofia árabe, – observa ele; na realidade,
durante um século ou dois na Idade Média, os árabes foram nossos
mestres, mas só enquanto não conhecemos os originais gregos. A ciência e
a filosofia árabe nunca deixaram de ser uma mesquinha tradução da
ciência e da filosofia Grega. Desde que a Grécia autêntica despertou,
essas míseras traduções ficaram sem sentido e não foi sem razão que os
filólogos da Renascença iniciaram contra elas uma verdadeira cruzada. De
resto, olhando de perto, essa ciência não tinha nada de árabe. O seu
fundo é puramente grego, e entre os que a criaram não se aponta um único
semita. Eram espanhóis e persas, escrevendo o árabe. O papel filosófico
dos judeus na Idade Média é também o de simples intérpretes.
A filosofia
hebraica desta época é a filosofia árabe sem modificações. Uma página de
Roger Bacon encerra mais espírito científico do que toda essa ciência
em segunda mão, respeitável, sem dúvida, como um anel de tradição, mas
despida de grande originalidade».
Fui longo de
mais na transcrição de Renan. Mas o seu depoimento ajuda-nos a invalidar
a tese geral do rabino Yahuda e ensina-nos, muito particularmente, como
no caso das Descobertas a influência hebraica seria resumida, ao
contrário do que pretende o Senhor Joaquim Bensaúde. Ninguém duvida que
da Junta dos Estrólicos «faziam parte israelitas, Físicos do Rei, mas lá
estava também o bispo de Ceuta, D. Diogo Ortiz».
E tanto as
minhas reflexões ao trabalho do senhor Bensaúde correspondem ao aspecto
definitivo do problema, que o astrolábio náutico não é mais do que a
simplificação do astrolábio plano que os árabes recolheram dos Gregos e
introduziram na Península. De quem o recolheriam os gregos na sua
indicação originária senão das civilizações sepultas em Creta e em
Micenas, da extinta talassocracia do Egeu, impulsionada cá do Ocidente,
talvez da misteriosa Társis de mais uma passagem da Bíblia? Assim não
nos espanta que a construção do primitivo astrolábio que é o plano, se
estude já minuciosamente nos Libros del Saber de Astronomia de
Afonso, o Sábio de Castela. Há a acrescentar, ainda em favor do meu
ponto de vista, que, na necessidade de se ordenarem tábuas de declinação
do sol, para o efeito do cálculo das latitudes, do nosso D. João II é
que partira a ideia, encarregando ele e os seus estrólicos de resolverem
a dificuldade.
António Sardinha in «Na Feira dos Mitos».
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