Esta obra-prima custa seis cêntimos (a cada português)
A campanha só agora começou, mas isso
não impediu o director do Museu Nacional de Arte Antiga de já lhe ter
reservado um lugar nas futuras galerias. A Adoração dos Magos,
que integra um conjunto de quatro óleos a que os historiadores se
referem como o “testamento” de Domingos António de Sequeira, vai ter a
seu lado outras obras deste que é um dos mais importantes pintores
portugueses do século XIX.
Lá estarão a Alegoria à Constituição, a Coroação da Virgem, o Retrato da Família do 1.º Visconde de Santarém e
o do conde de Farrobo, assim como uma das pinturas que o artista fez
quando, regressado dos seus primeiros anos em Roma, achou que o meio
cultural português era demasiado pequeno e que o melhor mesmo era
tornar-se monge na Cartuxa de Laveiras.
“Se vamos arriscar uma campanha como esta, inédita no país,
temos de ser optimistas. E eu sou um optimista congénito”, diz António
Filipe Pimentel, director de Arte Antiga. “Até já encomendámos a tabela
da obra”, com a respectiva legenda e informação adicional. A campanha a
que se refere destina-se a comprar a pintura Adoração dos Magos
por 600 mil euros a um privado, descendente do primeiro duque de
Palmela, e pretende atrair grandes e pequenos mecenas. Será a primeira
do género em Portugal, embora seja prática comum em vários países há
décadas.
A ideia, explica, é envolver a sociedade civil na
aquisição de uma “obra absolutamente excepcional” para o Museu Nacional
de Arte Antiga (MNAA), a sua “casa natural”, já que Sequeira (1768-1837)
é o artista mais representado na sua colecção – 45 pinturas, embora 23
sejam esboços mais ou menos acabados, e 760 desenhos, mais de metade dos
que lhe são hoje atribuídos (1417).
Durante os próximos seis
meses, instituições, empresas e cidadãos poderão contribuir no museu –
onde a obra vai estar exposta e à volta da qual se organizarão visitas
guiadas –, por transferência bancária ou na página sequeira.publico.pt.
Esta é uma iniciativa do MNAA, do PÚBLICO, da Direcção-Geral do
Património Cultural e do próprio Governo, que tem como parceiros a
agência de publicidade Fuel, a Fundação Millenium BCP, o grupo de amigos
do museu e a RTP. “Queremos mostrar que os museus portugueses estão
preparados para fazer a sua parte no que toca a procurar financiamento
para compras importantes”, assegura Pimentel, referindo-se à campanha
que tem por mote genérico Vamos pôr o Sequeira no lugar certo
e garantindo que se trata de uma oportunidade única para que os
portugueses descubram a obra e o seu autor, que está longe de ter o
reconhecimento nacional que merece. “Os museus não podem ficar à espera
que os governos aumentem as verbas para fazerem crescer as suas
colecções. Muito menos em tempos de crise. Se o fizerem, ficarão
permanentemente reféns. Têm de procurar alternativas.”
Uma obra do fim
Quando António Filipe Pimentel chegou à direcção do MNAA, em 2010, já se discutia – e preparava – a compra da Adoração dos Magos
(1828) desde o ano anterior. O seu dono, que prefere manter o
anonimato, manifestara a intenção de a vender e disponibilizava-se a
fazê-lo directamente ao museu, privando-se do valor mais alto que
poderia atingir no mercado de leilões, sobretudo o português, já que, no
estrangeiro, lembra Isabel Cordeiro, técnica do MNAA e antiga
directora-geral do património, “Sequeira é muito pouco conhecido” e, por
isso, não alimentaria grandes disputas.
Seiscentos mil euros, garante o director do MNAA, é uma cifra
definitiva, que não foi sujeita a qualquer negociação. Porquê este
preço? É o valor pelo qual a obra foi segurada à data da última
exposição que integrou (D. João VI e o seu tempo), no Palácio
Nacional da Ajuda, em 1999, explica Pimentel. “É um preço com mais de 15
anos. Estou convencido de que no mercado nacional encontraria
facilmente comprador e é muito provável que atingisse um valor mais
elevado. O facto de o proprietário insistir que fique aqui é um acto de
generosidade, de cidadania. É preciso não esquecer que o dono desta Adoração está à espera de a vender há seis anos. Tem estado à nossa espera.”
A
relevância desta compra para o museu não tem a ver com valores de
mercado, que dependem sempre das circunstâncias, sublinha Cordeiro,
defendendo que o que interessa é o peso simbólico que a pintura tem para
Portugal e para a colecção do MNAA. “Trata-se de uma obra de grande
qualidade de um dos maiores pintores portugueses do século XIX, para
muitas pessoas o maior. É vital para dar coerência e força ao discurso
do museu sobre a pintura portuguesa, que começa um pouco antes dos Painéis de São Vicente
[c.1470] e acaba em meados do XIX. Esta obra vem preencher uma lacuna,
uma cratera, fechando com uma peça-chave a história que as galerias
novas vão contar [a partir de 2016].”
Essa “lacuna” diz respeito à fase final de Sequeira – os últimos anos em Roma, de intensa experimentação – que, com a Adoração,
passaria a estar representada “ao mais alto nível”. É impossível falar
da sua carreira, argumenta Pimentel, sem nos demorarmos neste testamento
que tem um “lado de exegese muito grande”, um “sentido profundo de
fim”.
A “série Palmela”
A pintura que o
MNAA quer agora comprar faz parte da chamada “série Palmela”, um
conjunto de quatro telas sobre a vida de Cristo (todas com 100X140cm) – Descida da Cruz, Adoração dos Magos, Ascensão e Juízo Final
–, que terão sido executadas entre 1827 e o começo da década de 1830 (o
que se sabe ao certo é que, devido à doença que o deixou física e
mentalmente incapaz, em 1833 Sequeira já não trabalhava e que o óleo do Juízo,
o último, está inacabado). As obras foram compradas por D. Pedro de
Sousa Holstein, duque de Palmela, à filha do artista, em 1845, e estão
ainda hoje nas mãos dos seus descendentes (estiveram todas no MNAA na
última exposição ali dedicada ao artista, em 1997).
“Começa aqui a
compra das quatro”, brinca Pimentel, sem deixar de sublinhar que basta
que cada português contribua com seis cêntimos para que a Adoração passe a ser um privilégio de todos – e não apenas de alguns. “Se tudo correr bem, daqui a seis meses só nos faltarão três.”
Também
Alexandra Markl, conservadora de desenho do MNAA e autora de uma tese
de doutoramento sobre Sequeira (2013), gostaria de ver toda a “série
Palmela” a título permanente nas paredes do museu. Em primeiro lugar,
pela qualidade pictórica, em segundo pela coerência que é capaz de
imprimir ao discurso da própria colecção. Sequeira é, lembra, um pintor
formado na melhor tradição, que vive num tempo de profundas
transformações, em que o neoclassicismo está a chegar ao fim, em que os
artistas procuram novos caminhos e o romantismo dá os primeiros passos.
“Esta Adoração, tal como a Descida,
é uma obra nocturna, com muitas figuras. Tem uma luz mística,
intimista, e uma paleta quente. Faz lembrar Rembrandt [pintor holandês
do século XVII]”, diz Alexandra Markl. “Ela é um epílogo natural para a
história da pintura antiga portuguesa que começamos a contar um pouco
antes dos Painéis de S. Vicente. E porquê? Porque ela vem do passado mas está à procura de algo que é inteiramente novo.”
Como se tudo isto não bastasse para justificar a compra da Adoração,
Markl lembra que o museu tem já dezenas dos desenhos preparatórios e os
quatro cartões da série (estudos finais para as pinturas), resgatados
dos cofres do Montepio de Roma, em 1859, pelo marquês de Sousa Holstein
(1838-1878), filho do primeiro duque de Palmela e autor de uma
biografia, possivelmente inacabada e hoje desaparecida, de Sequeira.
Quando a colecção da família foi a leilão, 20 anos mais tarde, estes
cartões foram comprados para a Real Academia de Belas-Artes, integrando
depois o acervo do MNAA. “Estes cartões provam que Sequeira era um
mestre do desenho, muitíssimo ousado e inovador. Provam também que o
tratamento da luz tem uma importância absolutamente central na sua
produção, sobretudo nos trabalhos finais.”
Desenhador exímio, pintor talentoso, Domingos Sequeira fez a
sua formação em Portugal e em Itália, trabalhou para príncipes,
aristocratas e burgueses, e chegou a pintor régio, no meio de um
percurso tantas vezes conturbado que incluiu um breve período de vida
monástica, acusações de colaboracionismo (com os franceses das Invasões)
e até a prisão, na noite de Natal de 1808. Liberal entusiasta, acabou
por optar pelo exílio em 1823, vivendo em Paris os três anos seguintes e
em Roma, que conhecia bem como estudante de pintura, a última década de
vida.
Controverso, impulsivo e pouco disciplinado quando se
tratava de ensinar – assim o descreve Markl – Sequeira trabalha muito,
procurando sempre aperfeiçoar-se e, nos últimos anos em Roma, entrando
no debate sobre o futuro da pintura a que a comunidade artística se
dedicava.
“O bom Domingos Sequeira é certamente dos bons pintores
da Europa do seu tempo”, defende Pimentel, citando como obras de
referência, além da Adoração dos Magos e das restantes da “série Palmela”, o Retrato da família do 1.º Visconde de Santarém ou os do conde de Farrobo e de João Baptista Verde, amigo e cunhado do artista.
O papel do Estado
Envolver
a sociedade civil na compra de uma pintura para a colecção de um museu
público é, à partida, uma boa ideia, mas é algo para analisar caso a
caso e não deve, em cenário algum e por melhor que seja a receptividade
das pessoas, substituir uma política coerente e consistente de
aquisições por parte do Estado. Esta é a opinião de Raquel Henriques da
Silva, historiadora de arte que dirigiu o antigo Instituto Português de
Museus entre 1997 e 2002. Para esta professora universitária, que dedica
boa parte do seu tempo ao estudo da arte portuguesa dos séculos XIX e
XX, o lançamento da campanha do MNAA é uma “boa notícia”, desde logo
pela qualidade da obra em causa, e uma oportunidade para reflectir sobre
o mecenato e o papel social do património.
“O destino natural de obras tão extraordinárias como esta é,
sem dúvida, um museu. Mas até lá chegarmos é preciso que muitos dos
intervenientes concertem vontades. A participação de todos nós – sim, eu
farei questão de contribuir – é o fim do processo.” O primeiro acto de
mecenato, explica, parte do próprio proprietário que, querendo vender,
se disponibiliza a adequar o preço do bem não ao valor que poderia
atingir no mercado aberto, mas ao valor que o museu pode pagar, mesmo
que para isso tenha de recorrer, como aqui, a uma campanha pública de
angariação de fundos.
“Os Palmela sempre mantiveram contactos
importantes com os museus portugueses e é grande, para o nosso contexto,
a sua tradição coleccionista. Creio que, neste caso, o dono da pintura
compreende que o seu capital simbólico não deve estar indexado ao
preço.”
O “capital simbólico” desta Adoração dos Magos,
precisa a historiadora de arte, prende-se com a importância do seu autor
para a história da arte portuguesa e com as características da própria
pintura, e prende-se também com as circunstâncias da sua aquisição no
século XIX e com o lugar que ocupa no percurso de Domingos Sequeira. “É
uma obra de uma qualidade pictórica absolutamente extraordinária. O
acerto entre o tema e a sua execução é primoroso, com as figuras a
dissolverem-se sob a acção da luz. É de uma grande modernidade,
transformadora, e foi comprada para uma colecção que fez história na
arte portuguesa, a dos Palmela.” A modernidade a que se refere tem como
referente, no passado, Rembrandt, e, no tempo de Sequeira, William
Turner (1775-1851).
Tal como Francisco de Goya (1746-1828), diz
Raquel Henriques da Silva, Sequeira passou de artista do Antigo Regime a
pintor da revolução, viveu uma guerra civil, foi perseguido e emigrou
por motivos políticos. “Nos tempos que vivemos hoje, a história do
Sequeira é fácil de passar, mesmo a um público que não o conheça e que
não morre por isso. É uma boa altura para falar nele e esta campanha é
também uma oportunidade de levar as pessoas a descobrirem uma obra que
vale mesmo a pena, de que se podem orgulhar.”
A professora
universitária lembra ainda que acções deste tipo, até aqui inéditas em
Portugal, são prática comum noutros países e defende que o envolvimento
dos cidadãos deve vir depois da intervenção do próprio Estado: “Quando
falamos da possibilidade de comprar para Arte Antiga um tesouro como
este, o Estado deve dar o exemplo e dar o exemplo significa ser o
primeiro subescritor da campanha. Dar o exemplo não é chegar no fim e,
caso a campanha tenha ficado aquém do objectivo, pôr o dinheiro que
falta.” Acrescenta esta académica que, por princípio, a participação
estatal não deve ser inferior a um terço do custo da obra a adquirir.
“Um terço é o mínimo, sem isso não há credibilidade, não há como o
Estado esperar que o comum dos cidadãos faça da compra de uma pintura de
um artista de quem até poderá nunca ter ouvido falar uma causa sua.”
O
que tem acontecido nos últimos tempos, explica Henriques da Silva, é
que, sem uma estratégia de aquisições, a Secretaria de Estado da Cultura
(SEC) tem reagido ao mercado sempre em cima da hora. Ainda que
reconheça que, apesar de tudo, tem feito algumas compras, houve pelo
menos um caso em que “acordou tarde de mais”: O Almoço do Trolha,
de Júlio Pomar, ícone da pintura neo-realista portuguesa, que foi
leiloada em Maio por 350 mil euros e que agora faz parte da colecção do
Centro de Arte Manuel de Brito, “em vez de estar no Museu do Chiado”.
João Fernandes, director-adjunto do Museu Rainha Sofia, em Madrid, classifica a campanha para a compra da Adoração
como uma "iniciativa interessante de cidadania" mas, tal como José Luís
Porfírio, crítico e antigo director do MNAA, alerta para o facto de ela
não isentar o Estado de assumir as suas responsabilidades.
"O
ónus não pode recair apenas sobre os cidadãos e a participação do Estado
é um indicador de que a obra vale a pena", diz Fernandes, que dirigiu o
Museu de Serralves, no Porto. Se deve pôr uma verba à disposição do
museu à cabeça ou chegar no fim da campanha "é indiferente, desde que
participe".
O Rainha Sofia nunca organizou nada do género mas, ao
contrário de Arte Antiga, conta com um orçamento para compras, verba que
o curador não consegue precisar porque o dinheiro para obras de arte e
para agrafadores ou esferográficas sai do mesmo bolo. "É claro que o que
temos sabe sempre a pouco", diz, ressalvando que a falta de
investimento dos museus nas suas colecções não é um exclusivo de
Portugal: "É um problema europeu e prende-se com a falta de
sensibilidade dos políticos para a importância de fazer crescer hoje as
colecções públicas, o que as fragiliza, sobretudo quando vemos nascerem
museus de iniciativa privada que são produto de uma grande especulação
nos mercados. Os políticos têm de perceber que a Europa não pode ser só
um continente de ruínas. Bonitas, mas de ruínas."
Essa falta de
investimento preocupa também José Luís Porfírio, que não faz previsões
quanto ao resultado da campanha, "louvável", que tem para já o "mérito"
de tentar ligar as pessoas a um património que é seu. "Este não é um
Sequeira qualquer", acrescenta. "A Adoração é absolutamente
excepcional, uma peça de indiscutível raridade. Seria bom, aliás, que
toda a série [Palmela] estivesse no museu", defende, acrescentando que
cabe ao Estado "dar o pontapé de saída" neste esforço público.
António
Filipe Pimentel não avança detalhes sobre uma eventual participação da
SEC na aquisição da pintura, mas garante que “a tutela está a fazer um
esforço” e lembra que, apesar das enormes contingências orçamentais, as
compras para os museus portugueses aumentaram a partir de 2012 e já
contemplaram, mais do que uma vez, o MNAA, embora com obras longe do
valor desta Adoração (o Tríptico de Santa Clara, 30 mil euros; uma papeleira do século XVIII, 20 mil; e uma pintura do maneirista espanhol Francisco Venegas, 22 mil).
O
PÚBLICO tentou saber junto do gabinete de Jorge Barreto Xavier se há
planos definidos para um eventual contributo financeiro nesta campanha,
mas o secretário de Estado da Cultura preferiu não fazer comentários.
Optimista,
uma vez mais, Pimentel acredita que, no final, muitos mais conhecerão
Sequeira e que a resposta dos portugueses ao repto “seja mecenas por um
euro ou por 100 mil” vai ser adequada à importância da Adoração.
“Temos de ser nós, todos nós, a fazer dos museus lugares onde vale a
pena ir, onde vale a pena estar. E a boa pintura, uma obra-prima como
esta, torna os museus melhores.”
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