A Questão dos Adiantamentos à Casa Real foi um dos
principais motivos de contestação à Família Real no reinado de Sua
Majestade Fidelíssima El-Rei o Senhor Dom Carlos I de Portugal, porque,
aproveitando o clima de total liberdade de imprensa e de expressão, em
que não havia censura, foi um episódio instrumentalizado pela oposição
republicana e dissidência progressista para golpear a Monarquia com
propaganda maledicente e jornalismo de comentário difamador e
tendencioso. O republicano Brito Camacho, dizia, ‘quanto mais liberdades nos derem, mais delas usaremos contra eles’.
A questão dos adiantamentos, isto é, das supostas dívidas
da Casa Real ao Estado, foi reavivada pelo próprio presidente do
Ministério, João Franco, que contrariando a intenção que antes
manifestara de resolver o assunto no Parlamento, decide por Decreto de 30 de Agosto de 1907, tratar a questão sem ele.
Ora esta Questão era problema de longa data, porque nesta
nossa boa Terra de Portugal, na qual se está sempre pronto a reparar no
menor foguete que estala nos céus, tem-se em suma atenção o que não
merece cuidado, ficando sempre o principal para segundo plano. Este
quiproquó das dívidas reais não foi problema gerado por uma possível
prodigalidade do Rei Dom Carlos I, que era Monarca bem frugal nos
gastos, ou da Família Real que vivia modestamente, mas antes era um erro
que vinha de longe, do tempo das Constituintes de 1821, que ao colocarem um terminus no Absolutismo, decretam a separação do Tesouro Público do Erário Régio, que até aí se confundiam.
Assim, para manutenção e subsistência da Família Real e despesas com a Chefia do Estado por parte do Rei criaram uma Dotação
que haveria de se manter inalterada durante quase 90 anos, tornando
definitiva uma situação que deveria ser temporária como estabeleceram as
próprias Cortes Constituintes, pois a diminuta soma fora fixada de
acordo com as especiais circunstâncias que o País vivia: depauperado
pelas Invasões Francesas e pela Guerra Civil.
Depois, a Carta Constitucional de 1826 estabeleceu que as Cortes
devem fixar no início de cada reinado a Dotação do novo Monarca,
atendendo aos factores que poderiam contribuir para o aumento do custo
de vida. Mas, a disposição foi ignorada, pois ao contrário dos
presidentes, os Reis estão constantemente submetidos ao escrutínio
público devendo cuidar pela manutenção da probidade… até do parecer ser, uma vez que, como de acordo com Suetónio e Plutarco, César terá dito: ‘César, a mulher de César e qualquer membro da sua família devem estar acima de qualquer suspeita’.
Para não ‘parecer mal’ – diziam os políticos -, o Rei nunca
era aumentado; para mantê-Lo sob a sua asa dizemos nós, pois sofre o Rei
as invejas dos vassalos, sobretudo daqueles que cuidavam nascer para
guias e conselheiros, que se acham já não na predisposição de ouvi-Lo,
mas de mandá-Lo: – É isso, o Rei que ande a pé que eles vão de carruagem!
Ora com o Rei Dom Pedro V inicia-se uma transformação social e
material do País, que haveria de se acentuar no cosmopolita Reinado de
Dom Luís I: ele foi as pontes, os caminhos-de-ferro, a estrada
de macadame, o fontanário, a malaposta e a consagração de direitos dos
trabalhadores que leva à subida exponencial dos salários.
O Estado levou a cabo as obras públicas estruturantes que
modernizaram o País. Tudo isso degeneraria, naturalmente, em inflação e
em desvalorização da moeda tornando, porque quase irrisória,
insuficiente a Dotação Real.
Assim, quando em 19 de Outubro de 1889 falece El-Rei Dom Luís I e Dom
Carlos I ascende ao Trono de Portugal, como escreveu A. Oliveira
Martins in “El-Rei D. Carlos I – Semana de Lisboa”, 1/1/1893:
‘Foi uma coroa de espinhos a que o moço rei teve
para colocar sobre a cabeça, e nem o brio da juventude lhe permitiu um
instante o gozo da vaidade, a que se chama fortuna. (…) E antes, depois e
sempre, em todo o decurso deste já longo terramoto, cujo fim não vimos
ainda, o moço rei, sozinho, desajudado de homens prestigiosos que lhe
amparassem o trono, com partidos desconjunturados que na hora do perigo
se demitem, confessando meritoriamente a sua impotência, ouvia estalar
os tiros sediciosos do Porto e crescer a vozearia, confundindo os erros
da sociedade com a responsabilidade da Coroa, esperando a salvação da
queda da monarquia. Como se, no jogo mais ou menos imperfeito
das instituições vigentes, houvesse alguma espécie de tirania! Como se o
homem, que ontem se sentou no trono, pudesse ser responsável pelos
erros acumulados em dezenas, em centenas de anos! Como se a
desesperança, a apatia, o abandono com que a sociedade portuguesa se
submete à oligarquia das clientelas e cabalas que a exploram, fossem
filhas da acção perniciosa da Coroa! Como se, pelo contrário, não
pudesse o Rei queixar-se de tantos que desertam o seu posto…’
O pretexto de João Franco em trazer a Questão a jogo era
válida e justa, em nome da transparência que anunciara no início do
mandato de Presidente do Ministério ao manifestar a intenção de governar
à inglesa, ou seja, com equidade e dentro do espírito das leis, com
harmonia, mas também com firmeza… O problema é que escolheu mal o
momento!
Na sessão de 12 de Novembro de 1906, João Franco divulga no Parlamento os Adiantamentos feitos à Coroa. A oposição republicana que há muito aguardava o casus
que lhe daria o motivo para atacar a Casa Real, clamou violentamente;
Afonso Costa, surdo às admoestações do Presidente dessa Câmara, berrou: ‘E
mais ordena o Povo, solenemente, que logo que esteja tudo pago, diga o
senhor Presidente do Conselho ao Rei: Retire-se Senhor, saia do País,
para não ter de entrar num prisão, em nome da lei’. Era o princípio do calvário que levaria ao trágico episódio no qual o Rei tombaria, em serviço, às balas do terrorismo.
João Franco para evitar mais complicações do género, logo a seguir,
tenta dirimir o problema, que originara, em sede apenas de governo.
O Decreto do Governo de 30 de Agosto de 1907 tinha apenas o
propósito de resolver de uma vez por todas as Finanças da Fazenda Real,
regularizando-as através da passagem para cargo do Estado das despesas
de representação da Nação por parte da Família Real, das viagens de
Estado, das recepções a chefes de Estado estrangeiros mantendo-se tudo o
resto a expensas do Rei, desde despesas com o pessoal, como as mais
particulares. O Decreto foi combatido pelas Cortes que se quiseram
imiscuir no processo e exararam uma Lei. A Lei de 3 de Setembro de 1908
prevê o essencial do texto do Decreto transferindo para o Estado os
mesmos encargos e despesas, apenas não lhe fixando limite. O grande
problema colocou-se como se resolveria a questão dos Abonos já feitos, uma vez que a Casa Real havia muito tempo já não conseguia satisfazer as despesas de representação com a Lista
e foi recebendo ao longo dos anos diversos Adiantamentos uns ao abrigo
de Leis como as de 13 de Maio de 1896 e de 12 de Junho de 1901, outros
com simples autorizações ministeriais dos sucessivos titulares da
Fazenda, que agora se teriam de liquidar.
A infâmia propalou-se sobre o Rei Dom Carlos I e a Casa Real foi injusta e insultuosamente apelidada de ‘Grande Cancro’
das Finanças Públicas, atirando-se-Lhe até a responsabilidade de
Adiantamentos feitos noutros reinados, mas ignorando-se que El-Rei
realizara inúmeras visitas oficiais de Estado às Cortes e nações
estrangeiras, das quais resultariam inúmeros benefícios políticos e
financeiros para o País e consolidando a posição politico-estratégica da
Nação, não só no domínio europeu, mas, também, enquanto Império
Ultramarino. Recebera-se na Corte Portuguesa os Reis de Inglaterra
Eduardo VII e a Sua Família, o Kaiser Guilherme II, El-Rey Afonso XIII
de Espanha, o Presidente Francês, o Rei do Saxe, etc., e para os receber
da forma digna e condizente com o seu estatuto precisara El-Rei Dom
Carlos I de abrir os cordões à bolsa e por manifesta insuficiência da Lista Civil
e como a Sua bolsa se encontrava vazia para suportar esses ónus foi
necessário os governos fazerem os adiantamentos indispensáveis. Também,
as deslocações do Príncipe Real, como à boda do Rei de Espanha ou a
viagem às colónias, e que eram serviço de Estado, precisaram de ser
provisionadas.
O que a vil propaganda não referia eram os milhares de contos de réis
com que, desde Dona Maria II, os monarcas contribuíam para a Subscrição
Nacional; tal-qualmente, olvidava, a calúnia, o episódio pelo qual em
29 de Janeiro de 1892, em documento dirigido à Presidência do Conselho
de Ministros, El-Rei Dom Carlos I delibera:
‘Meu caro Dias Ferreira. – Querendo eu, e toda a família
real, ser os primeiros nos sacrifícios extraordinários, que as
circunstâncias do tesouro impõem à nação, previno-o de que resolvemos
ceder 20 por cento da nossa dotação, enquanto durar a terrível e
dolorosa crise, que actualmente atravessamos.’
O que o reclame anti-dinástico, convenientemente, não mencionava era que, pelo Decreto de 30 de Agosto de 1907, Dom Carlos I renunciou a favor do Estado do seu direito de propriedade sobre imóveis que de acordo com a Lei de 16 de Julho de 1855
concedia aos soberanos o direito de arrendar em seu proveito, o que
desde 1901 já tal não acontecia, mas ao invés esse enorme rendimento
enchia os cofres do Tesouro Nacional, e que com o Decreto passou a sê-lo
de forma definitiva e irrevogável. E como tal esqueciam-se de mostrar o
Diário do Governo de 1894, que corroborava isso mesmo, pois aí
foi oficialmente enunciado que os débitos do Estado com a Família Real
importavam na quantia de 573.981,381 contos de réis.
Também, ignorava a detracção que até o Yacht Amélia,
Dom Carlos I transferiu para a propriedade do Estado, o mesmo iate que
tinha comprado com dinheiro do próprio bolso, depois de andar a juntar
durante uns anos os poucos contos de réis que lhe rendia o último
morgadio que no seu tempo era ainda, legalmente, permitido em Portugal: o
Morgadio da Casa de Bragança, e que salvara com muito empenho e com
dois empréstimos a bancos ingleses, da qual, mesmo depois de tornar
lucrativa essa propriedade particular e inalienável do Duque de
Bragança, depois de pagar os juros dos empréstimos, retirava apenas os
mencionados cinco mil contos de réis.
Assim, com a respectiva contabilidade apurada tenha-se em conta, que existia um Superavit em relação ao Output e ao Input na Lista Civil,
pelo que com as transferências realizadas da Família Real Portuguesa
para o Tesouro resultava, claramente, uma mais-valia financeira para o
Estado.
Ora, por patente maleficência, tudo isto fora ignorado, e na Câmara
Baixa os deputados republicanos, tonitruavam imprecações contra o Rei.
Lembremos ainda Afonso Costa – caracterizado, mais tarde, pelo irmão e co-revolucionário Machado dos Santos como ‘o mais audaz, o mais inepto e o mais imoral de todos os tiranos.’– que vociferou a mãe de todas as execrações – que deveria, também, servir como alarme para o que ele e os primos da Carbonária urdiam na sombra – esganiçando em plena sessão da Câmara, naquele 20 de Novembro de 1906: ‘Por menos do que fez o Senhor D. Carlos I. Rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XIV.’ Com
isto, com este crime de Lesa-majestade, os republicanos estavam a pedir
sabre dos Lanceiros d’El-Rei, mas os Deputados republicanos foram
apenas suspensos durante um mês. Relembre-se a afirmação do republicano
Brito Camacho, já acima citado, ‘quanto mais liberdades nos derem, mais delas usaremos contra eles’. Assim foi!
Miguel Villas-Boas – Plataforma de Cidadania Monárquica
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