Jesus Cristo aparece a D. Afonso I na véspera da Batalha
de Ourique (1139). Quadro de Domingos Sequeira.
Crenças, religião civil e liberdade em Portugal
[§§1-18] Das origens do reino ao fim do século XV.
II. A época do paradigma da uniformidade
[§§13-19] Do século XVI à primeira metade de XVIII.
III. Facetas do regalismo reformador
[§§20-24] Da segunda metade do século XVIII a 1911.
IV. Emergência do paradigma da separação
[§§25-29] De 1911 até à actualidade (incluindo a questão da regulação administrativa.).
IV. EMERGÊNCIA DO PARADIGMA DA SEPARAÇÃO
§25 [Militâncias católica e laicista] A situação do catolicismo como
religião civil foi deixando de satisfazer as expectativas de alguns sectores da
sociedade que, perante a secularização convivente com o regalismo, ou queriam
um Estado secular (avançando para a laicidade) ou pretendiam instaurar um
catolicismo militante que absorvesse em Portugal o paradigma da devoção das três rosas brancas (eucaristia, Virgem e
papa) [A posição
“pragmática” dos católicos regalistas pode considerar-se representada pelo
constitucionalista J. J. Lopes Praça, que admitia a separação como modelo
teoricamente mais perfeito mas que não deveria ser concretizado, pois
implicaria a tomada da Igreja portuguesa pelo sector ultramontano (Estudos
sobre a Carta Constitucional, II, pp. 62ss)]. O Syllabus errorum (1864) e o I concílio do Vaticano, que em 1870
afirmou a infalibilidade papal, fragilizaram a aceitação ampla do catolicismo
como religião civil e reforçaram a legitimidade do pequeno sector da militância
católica ultramontana que se vinha
organizando com reduzido favor das autoridades – porque nalguns casos ligado a
uma expressão política anti-liberal. A sub-reptícia instalação no País de novas
ordens religiosas agravou esta incompatibilidade entre os católicos
ultramontanos e um sector de opinião laicista cada vez mais militante (de
expressão socialista e sobretudo republicana) que, na transição para o século
XX, conquistara boa parte das elites (influência patente no controlo que ganhou
do Grande Oriente Lusitano Unido, a obediência maçónica portuguesa cuja face profana
e legal era o Grémio Lusitano desde 1869). O grau de radicalização do sector
laicista, que ganhou uma coloração anticatólica fundamentada numa ideologia de
inspiração positivista, ficou patente na sua incapacidade de aceitar a lei de
1901 que possibilitava a legalização de algumas daquelas ordens. A
instabilidade da conjuntura política e económica, que assumiu uma feição
violenta no regicídio de 1908, favoreceu a tomada do poder pelo partido
republicano em Outubro de 1910 e a religião civil católica soçobrou. No
entanto, a liquidação da velha religião civil e a retirada aos bispos das suas
funções constitucionais criou uma oportunidade única à militância católica ultramontana para ganhar o apoio inequívoco da hierarquia e
com ela cooperar numa mobilização de massas, adoptando o modelo de acção dos
próprios laicistas (que, no fim do século XIX, haviam criado associações
militantes a favor da universalização obrigatória do registo civil, pondo em
causa as últimas funções civis do clero). Entre a grande parte da população que
tinha continuado a aceitar, até por razões culturais, a mediação religiosa do
clero secular encontrou este catolicismo mobilizador uma potencial base de
apoio numerosa, que não deixou de impressionar um laicismo que revelou fraquezas
e divisões (patentes no cisma da maçonaria em 1914-1925 e na vida política
caótica e violenta que perdurou até 1931). Com excepções e reservas, acabou por
ser com apoios de ambos os lados que uma nova ordem política foi edificada em
1933, encontrando expressão num nacionalismo (de genealogia republicana) que
funcionou como nova religião civil informal; esta acomodou o catolicismo como
elemento fundamental da identidade nacional, mas tornou o culto da nação e da
sua história no eixo secular do seu universo simbólico e dos ritos e
instituições do regime que o geriam. A militância católica, em grande medida
pela legalização e institucionalização da sua acção mobilizadora (Acção
Católica, 1933-1974), pareceu por vezes hegemonizar o controlado ambiente
cultural da II República vigente até 1974 (HRP,
III, 136-245). Mas a permanência da secularização na sociedade portuguesa
revelou, nas décadas de 60 e 70, os claros limites sociológicos e de eficácia
dessa estratégia de restauração católica;
por seu lado, a simultânea desafectação ideológica de sectores católicos e
laicistas ao nacionalismo da primeira metade do século precipitou um
ajustamento político de tipo revolucionário (1974-1976) que abriu caminho à
actual III República. [Para uma leitura mais aprofundada da primeira metade do século XX em Portugal, ver aqui.]
§26 [A regulação administrativa e os seus
antecedentes históricos] Mesmo quando sujeito à vigência de leis gerais, o
poder executivo sempre teve entre nós a capacidade de emitir ordens
(autorizações ou proibições particulares) com força de lei sob a forma de
cartas (ou cartas de lei ou lei), alvarás, provisões, decretos,
cartas régias, resoluções, avisos e portarias (HDP, 368ss); esse facto criou uma margem considerável de
discricionariedade na sua acção administrativa, o que a tornava permeável a
abusos ou a pressões eficazes de interesses fortes, mas também funcionava como
elemento dissuasor da acção dos particulares, dada a incerteza a que assim
ficava sujeita. Este estado de coisas nunca foi completamente ultrapassado, mas
pôde ser disciplinado pela separação de poderes instituída pelo liberalismo;
mesmo assim, no que às crenças privadas diz respeito, a sua expressão e
associação foram limitadas por um clima jurídico-político nem sempre claro.
Como o caso de Robert Kalley na Madeira em 1843 parece demonstrar, a
perseguição que lhe foi movida deveu-se ao facto de todo o processo ter sido
conduzido pelas autoridades administrativas, ignorando o que a autoridade
judicial inicialmente declarara (Kalley, O
catolicismo, 30). Com o Código Civil de 1867, as associações passaram a
reger-se pela regra do contrato de sociedade (Art.º 39, 1240ss), o que não
requeria autorização administrativa para se constituírem; por este facto,
tornou-se comum os grupos religiosos formarem sociedades que detinham imóveis
(para templos ou escolas), jornais e tipografias, etc. [Foi como sociedades que se constituíram, por
exemplo, as protestantes uniões cristãs da mocidade (ver, por exemplo, o Relatório e Contas da U.C.M. do Porto,
1900-1901).] Isto implicava serem “invisíveis” para o Estado
enquanto entidades morais ou religiosas, caindo os eventuais problemas
derivados de pretensas ofensas à religião oficial sobre membros individuais e
sob a alçada do poder judicial – era assim que podiam existir em 1906 cerca de
150 grupos religiosos locais não católicos (frente a um universo de quase 4000
paróquias) e mais algumas colectividades a eles ligadas (HRP, III, 494), sem contar com as 164 casas das 31 congregações
católicas só legalizadas em 1901. A lei de separação do Estado das Igrejas de
1911 alterou radicalmente esta situação, obrigando os grupos religiosos locais
(incluindo as paróquias católicas) a constituir-se como associações cultuais e imiscuindo as autoridades administrativas na
sua vida interna (às quais, segundo o Art.º 24, deveriam submeter aprovação de
estatutos e enviar anualmente orçamento, inventário de bens e valores e
documentos relevantes); ficavam novamente proibidas as ordens religiosas, que
foram expulsas, e às associações legalizadas era limitada a aplicação de
rendimentos e recepção de doações (Art.º 25, 34, 35) e vedado o ensino (cf.
Oliveira, Lei). A lei não reconhecia
personalidade jurídica a nenhuma confissão, nem sequer à Igreja Católica, que
assim se tornava, no seu todo, uma realidade inexistente para o Estado; por
essa razão, algumas das consequências da aplicação da lei foram afastadas por
revogações parciais em Fevereiro de 1918 e Julho de 1926, que permitiram um
reconhecimento de facto da Igreja
Católica, que abriu caminho para uma concordata. Com a II República, a
possibilidade de constituição de associações religiosas de diferentes
confissões manteve-se (Código Administrativo de 1936, Art.º 387 [ed. 1941,
Art.º 449, constituindo-se «por simples participação escrita ao governador
civil» (Art.º 450) e administrando-se livremente se cumpridas «as normas
aplicáveis às pessoas morais perpétuas do direito civil português» (Art.º 452)]),
embora, dado o reforço da margem de manobra das autoridades, não se tenha
instalado a confiança que fizesse as minorias ultrapassarem a «situação de mero
facto» em que viviam (Varela, Lei,
15ss); como explicou um dos juristas que teorizou a legitimidade desta ampla
regulação administrativa, «o sistema dos órgãos administrativos recebe, pois,
da lei a faculdade de definir a sua própria conduta para realização dos fins que
lhe estão designados e de impor à generalidade dos cidadãos o respeito dessa
conduta, podendo exigir deles a adopção do comportamento adequado à eficácia da
acção administrativa» (Caetano, Manual,
16).
§27 [As concordatas de 1940 e 2004]
Na concordata celebrada com a Santa Sé em 1940, a República Portuguesa
reconhecia à Igreja Católica personalidade jurídica, permitindo aos católicos
portugueses o que nunca fora claro que a coroa/Estado tivesse antes pretendido:
que «em tudo quanto se refere ao seu ministério pastoral» aqueles pudessem
«comunicar e corresponder-se» com a Santa Sé, «sem necessidade de prévia
aprovação do Estado para se publicarem e correrem dentro do País as bulas e
quaisquer instruções ou determinações» da cúria romana (Art.º 2); tratava-se do
fim do beneplácito. Da mesma forma, era isentada da tutela do Estado a
organização da Igreja, conferindo-se automática personalidade jurídica às
associações ou institutos aprovados pelos bispos (Art.º 3); era o fim do
regalismo. O Estado, embora reconhecesse o direito dos cidadãos de solicitarem
isenção deste regime, estabelecia como norma nas escolas públicas o ensino da
moral católica (Art.º 21); por outro lado, embora reconhecesse o casamento
católico e a sua indissolubilidade, só o validava por registo civil (Art.º 22,
posteriormente modificado pelo protocolo adicional de Abril de 1975, que
possibilitava o divórcio civil dos casados catolicamente). As dioceses e as
circunscrições missionárias eram subsidiadas pelo Estado para colaborarem na
administração ultramarina (Art.º 27 e acordo missionário) e era reconhecida a
nomeação dos bispos pela Santa Sé – embora, numa inversão do processo
tradicional, passasse a ser o Estado a confirmá-la. Se a I República destruiu o
edifício regalista, excluindo a Igreja Católica de um espaço público que só o
Estado deveria ocupar (uma pretensão inverosímil que não pôde manter-se muito
tempo), a II República completou aquela liquidação, mas dando à Igreja uma
inédita autonomia num regime de parceria com o Estado, que também teve
problemas. De facto, os sectores laicistas nunca deixaram de contestar esse
aspecto do regime concordatário, o que se acentuou com a crise da plataforma
nacionalista que apoiava a Constituição de 1933 e da qual também muitos
católicos se dessolidarizaram. Assim, a concordata de 2004 veio a reconhecer
situações de facto decorrentes do esboroamento do modelo de parceria após 1974:
o fim da confirmação pelo Estado da nomeação dos bispos, a presença da religião
no ensino público como opcional e por solicitação das famílias (o contrário de
1940), a existência de facto da conferência episcopal portuguesa (Art.º 8), o
reconhecimento em 1971 da universidade católica (Art.º 21) e o completo
desligamento das circunscrições civis das eclesiásticas, embora mantendo a sua
coincidência com as fronteiras nacionais (Art.º 9) e o conceito de um regime
fiscal não penalizador das actividades propriamente religiosas (Art.º 26, 27).
§28 [As mutações na assistência e no ensino] Ao
longo da evolução histórica que acompanhámos, o Estado manteve uma presença
muito forte e absorvente na sociedade; tratou-se de uma construção de vários
séculos, que lhe permitiu desligar-se da Igreja e da confessionalidade,
mantendo as funções simbólicas e providentes que se atribuiu no passado. Sob o
regime de separação, até à actualidade, o Estado manteve a tradicional tutela
sobre as instituições de assistência, incluindo as Misericórdias. Estas, dada a obrigatoriedade
instituída em 1866 de converterem as suas receitas em títulos da dívida pública,
foram profundamente afectadas pela inflação monetária da década de 20 do século
XX, que desvalorizou aqueles títulos, empobrecendo-as e forçando-as a
restringir as suas actividades numa época em que a procura dos serviços de
assistência pública era mais premente; por outro lado, a desconfessionalização
do Estado tornou problemática a articulação das políticas estatais de
assistência com a rede das misericórdias (306 em 1924), muito embora a I
República não a tenha hostilizado. Ainda consideradas os órgãos coordenadores
da assistência a nível concelhio no decreto de 23 de Julho de 1928 [e no Art.º
372 da ed. 1936 do Código Administrativo], as misericórdias viriam a ser
consideradas organizações «canonicamente erectas» pela edição de 1941 do Código
Administrativo [Art.º 433], sendo os respectivos compromissos ou estatutos aprovados pelo Governo (cf. também Art.º
372 do D.L. 27424 de 31.12.1936, Art.º 433 do D.L. 31095 de 31.12.1940 e o D.L.
119/83 de 25 de Fevereiro, que manteve basicamente este quadro jurídico). Esta
«confusão histórica e jurídica» (Lopes, «As misericórdias», p. 102), que
colocou as misericórdias na esfera eclesiástica e, pela primeira vez,
facilitava a sua sujeição à tutela episcopal católica romana num contexto de
separação com o Estado, levou a uma confessionalização e clericalização das
misericórdias que acabou por chocar com a vontade política de criação de um
serviço de assistência puramente estatal, instituído pelos decretos 413/71 e
351/72 e prosseguido pelo decreto 618/75, que nacionalizou os hospitais
concelhios, esvaziando as funções das misericórdias. Outro processo de estatização
directa aconteceu no campo do ensino, no qual a intervenção estatal era mais
antiga, com a criação de instituições de ensino médio (organizadas na reforma
de 1836) e, já numa lógica de fundamentação cultural e simbólica do Estado e da
integração cívica dos cidadãos, com investimento numa rede escolar primária na
I e II Repúblicas, que instituíram também o monopólio curricular e o licenciamento
dos privados e cooperativos. Este processo deu-se num campo em que outras
iniciativas eram escassas e débeis, sucumbindo à expansão da oferta e da
regulação do Estado. Mesmo sem a componente de formação nacionalista que
teve na I e II repúblicas (e que era, em termos práticos, um suporte importante
de uma religião civil informal), este sistema de ensino tem funcionado como um
meio de reprodução e regulação cultural de que o Estado na sua organização
actual também não abre mão.
§29 [As leis de liberdade
religiosa de 1971 e 2001] O catolicismo, cuja vitalidade religiosa
sobreviveu às funções civis que desempenhou, teve de ser acomodado, pelo regime
concordatário, a estas mutações históricas, redefinindo-se o seu espaço social.
As outras expressões religiosas, minoritárias, só puderam ter mais tarde um
processo de acomodação similar, à medida que se tornaram mais visíveis e
representativas – em 1999, existiam já cerca de 2500 grupos locais não
católicos (HRP, III, 494). Essa
necessidade foi reconhecida na lei de liberdade religiosa de 1971, que lhes
permitiu constituírem-se como pessoas colectivas religiosas organizadas de
acordo com as suas regras internas mediante uma inscrição no ministério da
justiça (bases IX, XI, XV), e foi aprofundada pela lei n.º 16/2001 de 22 de
Junho, que estendeu a estas expressões os direitos reconhecidos aos católicos
nas duas concordatas: dia de descanso semanal e feriados religiosos próprios
(Art.º 14), equiparação para efeitos fiscais dos ministros do culto aos membros
de institutos de vida consagrada católicos (Art.º 16), reconhecimento do efeito
civil do casamento religioso (Art.º 19), educação religiosa opcional nas
escolas públicas (Art.º 24) e benefício fiscal das actividades propriamente
religiosas (Art.º 32).
PARTE 4 DE 4 Parte 1 Parte 2 Parte 3 Parte 4
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
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VARELA, Antunes – Lei da Liberdade Religiosa e Lei de Imprensa [592 p.], Coimbra: Coimbra Editora, 1972.
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