Carlos Alberto Di Franco* -
O Estado de S.Paulo
O papa Francisco é um comunicador de primeira.
Simples. Directo. Desimpedido. Seu estilo é surpreendentemente solto e
provocador. Seu discurso, coloquial e sincero. É um papa falante, alegre, com
"jeitão" laico. Um papa diferente. Mas é o papa. E tem plena consciência do seu
ministério e de sua autoridade. Não pode ser interpretado pela metade. Ele
demanda contexto. Francisco dá boas manchetes. Mas é preciso ir ao cerne do seu
pensamento. Caso contrário, cria-se a síndrome da esquizofrenia informativa: um
papa fala na manchete, mas outro discursa no conjunto da matéria.
Recentemente, a última edição da revista
italiana La Civiltà Cattolica, editada pelos jesuítas, publicou uma longa
entrevista com o papa Francisco. O rebuliço foi imenso. Sobrou versão. Faltou fazer
a lição de casa básica: ler a íntegra da entrevista. Francisco, como bem
salientou a jornalista Adriana Dias Lopes, editora da revista Veja, "não
mexerá nas doutrinas da Igreja Católica". Mas, sem dúvida, apontou uma
mudança de tom.
O papa, creio, quer provocar uma ruptura com
uma agenda negativa e reactiva. "Não podemos insistir somente sobre
questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e ao uso de métodos
contraceptivos. Isso não é possível. Eu não falei muito dessas coisas e me
censuraram por isso. Mas, quando se fala disso, é necessário falar num
contexto. De resto, o parecer da Igreja é conhecido, e eu sou filho da Igreja,
mas não é necessário falar disso continuamente. A proposta evangélica deve ser
simples, profunda, irradiante. É dessa proposta que vêm as consequências
morais", sublinhou.
Francisco, por óbvio, não minimiza a gravidade
dos equívocos morais. Sua defesa da vida, por exemplo, desde o momento da
concepção, é clara, forte, sem nenhuma ambiguidade. A doutrina é transparente.
O papa está preocupado não apenas com a actuação pública da Igreja, mas com o
cuidado pastoral das pessoas concretas. Que erram. Que sofrem. Que se
arrependem. Seu foco não são os processos, mas as pessoas. Quer uma Igreja mais
compassiva. E isso é cativante.
Com sua humildade desconcertante, Francisco
mostra que a relação com Cristo brota da forte consciência da miséria humana e
da absoluta confiança na misericórdia de Deus. "Sou um pecador. E não é
modo de dizer, um género literário. Sim, talvez possa dizer que sou um pouco
astuto, sei me adaptar às circunstâncias. Sou também um pouco ingénuo. Mas a
melhor síntese, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exactamente esta: sou um pecador para quem o Senhor olhou. Quando vinha a Roma,
visitava a Igreja de São Luís dos Franceses com muita frequência. Lá
contemplava o quadro Vocação de Mateus, de Caravaggio. Aquele dedo de Jesus
assim dirigido para Mateus. Assim sou eu. Assim me sinto. Como Mateus. Este sou
eu: um pecador para o qual o Senhor voltou o seu olhar."
A perspectiva do olhar de um Deus compassivo,
acolhedor, está metida na alma de Francisco e ganha corpo no seu projecto
pastoral. "A coisa que a Igreja mais necessita agora é da capacidade de
curar feridas e de aquecer o coração dos fiéis, aproximar-se. Vejo a Igreja
como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um
ferido grave se o seu colesterol ou a sua glicose estão altos. Devem-se curar
as feridas. Depois podemos falar do resto."
Francisco insiste muito na essência da
mensagem cristã: a misericórdia de Deus. A "plataforma moral" da
Igreja não pode ser erguida sobre os alicerces do legalismo, mas em cima dos
sólidos pilares de um projecto de salvação. Sem isso, e sem o exercício da
liberdade humana, o edifício da Igreja "corre o risco de cair como um
castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta
evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que
vêm depois as consequências morais."
Impressiona, e muito, o tom positivo que
permeia todos os discursos do papa. Impressiona igualmente a transparência de
Francisco em suas entrevistas aos jornalistas. É um papa sem tabus. Ele tirou a
Igreja do "córner". Francisco rasga um horizonte valente e generoso. Deixa claro que
os católicos não são anti nada. E que o cristianismo não é uma alternativa
negativa, encolhimento medroso ou mera resignação. É uma proposta afirmativa,
alegre, revolucionária. Os discursos do papa não desembocam num compêndio
moralizador, mas num desafio empolgante proposto por uma pessoa: Jesus Cristo.
Os jovens entendem o recado e mostram notável sintonia com Francisco.
Os que apostam na descontinuidade vão perder o
jogo. João Paulo II, Bento XVI e Francisco tocam a mesma música, embora com
"gingado" diferente. A formidável cobertura pela imprensa da eleição de Francisco
revela alguns sinais importantes. O primeiro deles, sem dúvida, é a notável
unidade dos cardeais. A surpreendente rapidez do processo eleitoral foi um
testemunho inequívoco de que João Paulo II e Bento XVI, ao longo dos seus
pontificados, investiram generosamente na construção da unidade da Igreja. A
eleição meteórica de Jorge Mario Bergoglio foi, no fundo, um forte chamado à
unidade e à continuidade.
O pontificado de Francisco será, estou certo,
um testemunho de fé, convicção e coragem. Ao contrário dos que dentro da Igreja
Católica cederam aos apelos da secularização, o novo papa sempre acreditou que
a firmeza na fé e a fidelidade doutrinal acabarão por galvanizar a nostalgia de
Deus que domina o mundo contemporâneo. Acredita que o esgotamento do
materialismo histórico e a frustração do consumismo hedonista prenunciam um
novo perfil existencial. Na visão do papa, o terceiro milénio trará o resgate
do verdadeiro humanismo.
*Carlos Alberto Di Franco é
doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra e director do departamento de
comunicação do Instituto Internacional de Ciências Sociais. E-mail: difranco@iics.org.br
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