Já aqui, por duas vezes, aludi a um pequeno ensaio da autoria de Umberto Eco intitulado A Nova Idade Média.
Em meados da década de 1980, Eco diagnosticava certeiramente o processo
de decomposição do Iluminismo, pressentindo o advento de uma nova era
cujos primeiros passos balbuciantes lembram esse longo período a que
erradamente designamos como "Idade Média". Eco não exibe qualquer parti-pris
a respeito da chamada "Idade Média", pois, soberbo medievalista, sabe
que a má vontade, tinta de hostilidade e arrogante ignorância que por aí
se continua a debitar sobre esses gloriosos mil anos de existência da
civilização Ocidental foi uma invenção das "luzes". Como sabem, a alusão
a um medium tempus foi cunhada por Petrarca (um homem
"medieval"), mas só passou ao jargão historiográfico em finais do século
XVII como sinónimo de trevas, superstição, clericalismo e violência.
Seria fastidioso proceder aqui ao enumerar de erros que fizeram o mito
dessa "Idade Média". Romano Guardini deixou, nos anos 40, o Fim da Idade Moderna,
ensaio filosófico que define com precisão as características do
pensamento e visão do mundo "medievais", por oposição à modernidade. Em
Guardini há o refutar dos mitos anti-"medievais" da modernidade. Mais,
Guardini afirma que a Idade Média conseguiu um notável equilíbrio entre a
autoridade (cultural, política, religiosa) e a liberdade.
A "Idade Média" a que aludiam Burkhardt e Michelet no século XIX nunca
existiu; ou antes, foi construída como ideologia oposta ao
"Renascimento" e movimentos que se lhe seguiram (racionalismo,
iluminismo, liberalismo, marxismo, etc). A Idade Média - cedamos à
convenção - foi a mãe da civilização Ocidental. A velha história da
herança grega e latina não resiste à mais leve acareação. A Idade Média
foi reformista, foi inovadora sem chamar pelo nome e deixou as grandes
instituições e institutos que ainda hoje são cimento do que resta do
Ocidente. Para isso, basta lermos a fascinante biblioteca que é a obra
de Jacques le Goff para raspar os cascões do preconceito. A literatura,
tal como a entendemos (e sobretudo o romance) é criação da "Idade
Média". A Universidade, sede de saber, transmissão, formalização e
polémica em torno do conhecimento, é uma invenção medieval. A arte, neta
de Deus como lhe chamava Dante, muito embora o conceito só fosse
estabelecido no século XIX, é também uma conquista medieval. Até o
"capitalismo" - passando por cima do errado lugar-comum que afirma a
oposição da Igreja à economia, ao dinheiro e ao lucro - nasceu do
processo de legitimação do dinheiro, fenómeno que ganhou expressão a
partir do "renascimento do século XII. Coube, também à Idade Média, a
invenção do trabalho entendido como valor moral. Ou não foi a Idade
Média a inventora de uma sociedade que repousava sobre a organização do
trabalho, de que as corporações, as guildas, as comunas, as liberdades
burguesas e concelhias, raíz daquilo a que se vulgarizou chamar de
"democracia"?
Tenho adquirido ao longo dos anos o Lexikon des Mittelalters,
enciclopédia de 9 volumes de que possuo os seis primeiros. Folheio-a
ludicamente, como quem lê antes de dormir, sem qualquer preocupação
outra senão o entretenimento. Não há dia em que não leia uma ou duas
páginas, saltando entradas. Faço-o para praticar o alemão - a mais
inteligente das línguas - e não há leitura em que não me deixo de
espantar com a pujança, a grandeza e a simpatia contaminante dos avós
dos nossos avós, os medievais. A "Idade Média" é viciante, tão viciante
para mim como a matéria do Sudeste-Asiático pré-contemporâneo, com a
qual, aliás, se assemelha em variadíssimas perspectivas sobre o
entendimento da vida. Como estou cansado da ganga "moderna", do
linearismo e da chocarreira banalidade do mundo sem o véu do sagrado e
das grandes interrogações ! Viva a Idade Média.
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