Infante Santo D. Fernando |
Dos milagres que nosso Senhor fez pelos
merecimentos do Santo Infante D. Fernando, no tempo que estava posto seu corpo
nos muros de Fez.
"Quando meteram no ataúde o corpo deste
virtuoso Senhor, que havia cinco dias que tinha finado, estavam seus membros em
tanta desenvoltura como se estivesse vivo, nem saía dele algum cheiro mau. E
assim lhe cruzaram os braços, e o lançaram sobre uma cama de louro verde, que
lhe dentro no ataúde foi posto em seu lugar, foi coisa certa, e de maravilhar,
que a maior parte das aves, que de toda aquela terra ao redor vinham ali dormir,
porque as ameias, e todo o muro estava cheio de esterco delas logo se dali
afastaram e nunca mais pousaram naquele lugar, nem fizeram alguma imundice na
parte que respeitava ao ataúde, uma braça de uma parte, e da outra; no que todos
atentavam, e se maravilhavam muito, parecendo-lhes que as aves tinham reverência
àquele corpo santo.
Os vigias e roldas da vila, cada semana em
certos dias, viam ao redor daquele ataúde tanto lume e claridade que não podiam
ter os olhos em direito daquele lugar, em tanto que não podiam divisar de que
era aquele lume.
Um renegado natural de Olivença, vindo uma
noite de fora da vila, lhe apareceu aquela claridade e lume, no meio do qual o
Infante estava, e parecia-lhe que o corpo era feito como de pomba e o rosto era
de homem, que bem o conhecia porque muitas vezes o via ali em vida, e lhe falou.
E deu o dito renegado testemunho de si, que viu o Infante estar em tanta glória
que foi movido a se assentar em joelhos [ajoelhar], e de lhe pedir por mercê que
o encaminhasse à salvação, e que o Infante voltou o rosto para outra parte, e
lhe disse: Torna-te ao santo caminho, que deixaste. E nisto adormeceu
ali, até o outro dia com o romper da alva.
Um mouro bárbaro houve arroido com outros, onde
lhe deram duas feridas, uma na cabeça e outra em um ombro. E veio-se de uma
aldeia à vila de Fez fazer queixume ao seu juiz; e quando chegou era já noite e
as portas estavam fechadas. Lançou-se a dormir ao pé do muro, debaixo daquele
ataúde, não olhando por ele nem lhe lembrando do corpo que ali estava. E quando
veio pela manhã que abriram as portas, ele foi perante o juízo; quando desatou a
cabeça e quis mostrar a ferida que recebera do adversário não apareceu sinal
nenhum dela nem da outra do ombro. Perguntaram-lhe como lhe acontecera, e foi
mostrar onde dormira debaixo daquele ataúde, e fizeram-no calar; e não obstante
isto, ele o disse a muitos, e os que entendiam diziam que aquilo não podia ser
outra coisa se não que o Infante se tornara mouro na vontade quando estava para
morrer.
Manifesto é, que muitas pessoas são sãs de
inchaços e de febres com o tocamento da terra donde caiu o pingo daquele corpo.
E assim mesmo a lançam ao pescoço de bois e de alimárias que estão doentes, e
recuperam a saúde; e daquele lugar onde tiram a terra, está já feito numa grande
cova. Isto (conforme ao autor desta crónica) se fazia e acontecia então no seu
tempo, em Fez, quando ainda lá estava o corpo do santo Infante. O que ainda
agora pode ser, pois o lugar e terra aí ficaram.
Em Ceuta aconteceu a um religioso de S.
Francisco, a quem chamavam Fr. Gonçalo, que estava em Santiago confessando um
clérigo que ali viera doente de Roma, e estava em passo de morte, lhe disse:
confiai nos muitos merecimentos do santo Infante D. Fernando que padeceu em
terra de mouros trabalhos e morreu santamente na fé católica. E como se Fr.
Gonçalo partiu, o clérigo tomou seu conselho com muita devoção, e logo nessa
hora se levantou são e se veio ao Mosteiro, onde estava rezando o dito Fr.
Gonçalo e lhe contou este milagre que Deus fizera por ele.
Em Lisboa aconteceu a um bom homem que era
doente de uma grave doença que tinha, e não achando já quem o curasse ouvi-o
falar a Fr. Rodrigo Pregador de Jesus (assim lhe chama a antiga crónica) em S.
Domingos, de quanto este santo Infante padecera, e teve tanta fé em seus
merecimentos que, um dia à noite, lançando-se na cama com grande devoção se lhe
encomendou e adormeceu, e quando veio pela manhã achou-se são e sem sinal onde
tivera a enfermidade. E estando Fr. Rodrigo uma sexta feira para pregar, o homem
que era seu confessado lhe contou este milagre, o qual dito Fr. Rodrigo disse e
divulgou na pregação.
No primeiro dia do mês de Junho da era de mil e
quatrocentos e cinquenta e um anos, chegou a Santarém João Alvares (autor desta
crónica, e secretário deste senhor, onde então estava o rei D. Afonso V deste
nome, e sobrinho do santo Infante) e trazia as relíquias da freçura, coração,
tripas, e tudo o que foi tirado do corpo deste Infante, quando em Fez os mouros
o fizeram abrir: as quais relíquias tirou de lá secretamente o dito João Alves,
e as trouxe a estes reinos. E estas relíquias vinham metidas em uma caixa de
madeira coberta de damasquim preto, com o forro preto, acairelado de retrós com
fechadura e pregadura dourada. E o dito senhor rei mandou que o dito João Alves,
e João Rodrigues colaço do santo Infante que aí estava, levassem as ditas
relíquias ao Mosteiro de S. Domingos de nossa Senhora da Vitória da Batalha,
onde está a sepultura do dito Infante, e dos Infantes seus irmãos, na Capela
real, e mui sumptuosa d’El-Rei D. João I de boa memória pai deles, e da rainha
D. Filipa sua mãe, que também aí jazem. E chegaram também aí jazem. E chegaram a
Tomar, onde acharam o Infante D. Henrique governador da Cavalaria e Ordem de
Cristo, e irmão deste santo Infante, que estava de caminho para outra parte, e
mandou tornar suas azémolas do caminho que levavam, e se foi ao dito Mosteiro da
Batalha. E ali fez o dito senhor pôr as relíquias mui honradamente sobre o altar
de sua sepultura, com tochas e velas ao redor (porque nesta capela d’El-Rei seu
pai tem os Infantes, como El-Rei, cada um sua sepultura, é seu altar dedicado a
cada qual, por sua ordem, e antiguidade das idades.) E mandou cantar as matinas,
e uma Missa Plurimorum Martyrum, antes da manhã; e isto era quinta feira
nove dias do dito mês de Junho. Acabado de se cantara Missa, foi ordenada uma
solene procissão, onde o dito João Alvares abriu a caixa, e perante todos
mostrou as relíquias. E des que tornou a cerrar a caxa deu a chave dela ao
Infante D. Henrique, que a logo ali entregou ao Prior do dito Mosteiro da
Batalha. E depois abriram a sepultura, e o Infante se assentou em joelhos
[ajoelhou] ante as relíquias e fez sua oração, e tomou-as nas mãos, e trouxe-as
por meio da procissão, e meteu-se com elas na sepultura, e assentou-as sobre um
banco, coberto de cetim aveludado carmesim. E ao despedir, assentou-se em
joelhos, e beijou-as, e mandou cerrar a sepultura. Em quanto ele isto fazia, os
da procissão cantavam o responso dos Mártires, que diz: Posuerunt mortalia
servrorum tourum escas volatilibus coeli, carnes Sanctorum tuorum bestiis
terrae: Essuderunt sanguinem snctorumtuorum tamquam aquam in circuitu Jerusalem,
et non erat qui sepeliret, com seu verso, e oração dos Mártires; e logo o
dito senhor Infante deixou ordenado que cada dia naquele altar de seu irmão se
cantasse Missa à conta de sua esmola, até que o senhor rei encaminhasse esta
capela perpétua, em lembrança deste virtuoso senhor. O que hoje em dia se faz é
que neste seu altar, e dos mais Infantes seus irmãos, e de seu pai, e mãe, se
diz no dos Infantes em cada qual dos altares cada dia do mundo à prima, missa
rezada, e no altar d’El-Rei seu pai cantada, com responso no fim dela, além dos
ofícios que se lhes fazem no dia dos defuntos, e outros, com muita solenidade. E
dos do Infante santo D. Fernando fazem os Religiosos do Mosteiro da Batalha, com
capas de brocado de cores alegres, de que há muitas, e mui ricos ornamentos, que
estes senhores, e outros Príncipes, que aí jazem, deixam; ainda que ofício do
Infante sempre é de defuntos.
Em Pernes aconteceu, que à mulher do oleiro do
dito lugar nasceu um grande lobilho em uma mão, e cresceu-lhe tanto que lhe
estorvava o ficar, e o exercício de outras coisas. Estando um dia chorando,
perguntou a uma Brites Eanes mulher de um Afonso Ribeiro, se sabia algum remédio
para aquele mal que tinha, e ela lhe disse que se encomendasse com devoto
coração ao santo Infante D. Fernando, e que ela lhe ficava por fiador, que lhe
alcançaria do Senhor Deus saúde. Ela se foi para sua casa, e assentou-se em
joelhos [ajoelhou-se], e com lágrimas se lhe encomendou, prometendo-lhe de levar
à igreja um pão e uma candeia à sua honra. E pela manhã se achou sã, e sem sinal
de lobinho.
E disse a dita Brites Eanes, que neste tempo em
que o trigo era muito caro, tendo ela recebido do celeiro certos alqueires de
trigo do mantimento de sem(seu?) marido, disse que pelos muitos milagres que
Deus fazia acerca do seu provimento, que ela conhecia, que era pelos
merecimentos deste santo Infante, a que se ela encomendava, tanto que se via em
alguma necessidade, queria daquele trigo dar de esmola dois alqueires e meio a
pessoas pobres. E mediu todo, que não era muito, e tirou aqueles dois alqueires
e meio cada meio sobre si e depois que os repartiu aos pobres, foi-lhe logo
necessário torná-lo a medir e achou de sobejo aqueles dois alqueires e
meio.
Outras muitas coisas contou a dita Brites Eanes
de milagres que viu e lhe aconteceram porque teve grande devoção neste santo
Infante, e porque eram de causas miúdas (diz o autor desta crónica) não curei
aqui de escrevê-las. E eu (que esta crónica solicitei ser de novo imprensa) sou
testemunha da vista de muitos, e miraculosos sucessos, que aconteceram a alguns
Religiosos doentes, e sãos, que se a este santo Infantes encomendaram no
Mosteiro da Batalha, que hoje em dia são vivos, e conhecem assaz bem quantos
milagres o Senhor faz por merecimentos deste santo infante. Em cuja sepultura
está um buraco, e metem os seis uma cana que vai tocar no corpo do santo, e
beijam e põem nos olhos e cabeça. E assim atando na pontada cana contas de
rezar, e relicários, os metem pelo buraco para serem tocados nas santas
relíquias, em que tem muita devoção..."
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