1. Introdução
Vamos
recordar, nesta intervenção, a figura de Nuno Álvares Pereira como
chefe militar. Este tema, pela antiguidade dos factos, pela notoriedade
da personagem e pela importância que teve para a independência de
Portugal, foi com maior ou menor profundidade muitas vezes escrito e
rescrito, de Fernão Lopes a Oliveira Martins, de Belisário Pimenta a D.
António Reis Rodrigues, de Nuno da Ponte a Alcide de Oliveira no seu
excelente pequeno livro que se chama Aljubarrota Dissecada. Por
isso, irei apenas sublinhar aquilo que me parece mais notável na sua
acção de chefia, mas julgo importante lembrar, previamente, alguns
elementos do quadro temporal, sociológico e psicológico em que os
acontecimentos ocorreram.
Portugal
está a passar por uma transformação social profunda, devido ao
aparecimento de uma população urbana que deseja influenciar os
“negócios” do Reino e cuja palavra ganhará peso e provocará uma maior
relevância (como de forma tão viva Fernão Lopes nos narra), quando parte
significativa da nobreza se coloca a favor do Rei de Castela. É
discutível se os primeiros traços da Nação Portuguesa já existiam quando
da ocupação romana na Península, porque estes podem ter desenhado as
fronteiras da Lusitânia, delimitando uma área e um povo em que se notava
já uma certa individualidade1; se a Nação surge com o pendor
guerreiro do nosso primeiro rei e com a ruptura então conseguida em
relação a Leão e a Castela; ou, até, se não vai surgir mais tarde,
quando da Restauração, época em que de forma inequívoca se manifestou a
nossa vontade autonómica. Mas no final do século XIV, como nos diz
Hernâni Cidade há “uma visão comovida da Nação una, como pessoa
viva, no sacrifício e na glória… Até Fernão Lopes… a crónica contava as
efemérides que nobilitam as famílias e os feitos dos reis e suas hostes.
A figura do poboo meúdo, a entidade abstracta de uma Nação… É a genial concepção e realização de Fernão Lopes”.2
Isto
é, para Fernão Lopes a personagem da crónica passou a ser Nação, sendo
neste sentimento de união das pessoas e de convergência dos propósitos,
nesta “comunidade de sonhos”, como a designou Malraux, que se desenvolve
a acção no nosso Galaaz.
Ao
mencionar Galaaz, falando de D. Nuno (e este é o segundo ponto prévio),
queremos dizer que ele não deve ser visto com as cores de outras
épocas, como sucedeu no retrato que Oliveira Martins fez dele e que
mereceu fundadamente de Eça o seguinte reparo: “Enquanto ao
Condestável, que era o teu objecto, haveria de discutir se não lhe
meteste na alma muita coisa que é só do nosso século” 3. Nuno
Álvares é, de facto, um homem do seu tempo. Tendo passado os primeiros
anos de vida junto do seu pai, D. Álvaro Gonçalves Pereira, Prior do
Hospital, foi certamente sensibilizado pelas narrações deste e dos seus
companheiros sobre a Batalha do Salado, a luta contra os turcos em Rodes
e outras aventuras guerreiras. Educado nesse meio, foi também
influenciado, como muitos jovens nobres do seu tempo, pelos princípios
da Cavalaria, pela fé e despojamento que lhes era inerente, pelas suas
novelas e pelos seus heróis, pela defesa dos fracos, dos pobres, dos
humildes. Armado cavaleiro aos 13 anos, foi ao longo da vida “muito avisado nos feitos da cavalaria”.4 Além
disto, decorrendo há longos anos a guerra que depois se denominou dos
Cem Anos, e tendo no tempo de D. Fernando chegado a Lisboa uma força de
arqueiros britânicos, certamente ouviu os ecos dessa guerra, a
superioridade que a peonagem e o arco longo dos ingleses estavam a
demonstrar face a “pesenteur” física e intelectual da cavalaria
francesa. Assim, ao olharmos hoje para Nuno Álvares, pela reverência que
ele nos merece não devemos trazê‑lo para os nossos dias, mas vê‑lo como
foi naquele tempo e sublinhar aquilo que marca a sua intemporalidade:
os fundamentos ainda hoje sólidos da acção militar que desenvolveu, o
seu perfil de chefe, a sua beatitude.
O
terceiro ponto é que naquela época estiveram presentes em Portugal os
quatro cavaleiros do apocalipse de São João. A peste que acontecia com
frequência, como sucedeu no cerco de Lisboa de 1384, tendo todavia sido
mais sentida nas hostes castelhanas; a guerra, em que D. Fernando e
depois os acontecimentos da sua sucessão nos lançaram contra Castela; a
fome, resultante deste ambiente e que foi particularmente sentida em
Lisboa; e a ocupação que os castelhanos quiseram fazer em Portugal, tal
como, para S. João, os romanos haviam feito na Palestina. Para salvar
Portugal deste apocalipse, ter‑se‑ia que, pela guerra, conseguir a paz e
começar uma nova era, “a sétima idade” como lhe chamou Fernão Lopes: Adam… Noé… Abraão… David… des o trespassamento da Babilónia atta vimda do Sallvador… (a) que
ora andamos que ha mill e quatro çentos e quarenta e tres que dura… mas
nos… fazemos aqui a septima idade… que se começou nos feitos do
Meestre…5
O
quarto ponto prévio refere‑se à escolha que Nuno Álvares fez, a do
caminho mais difícil: escolheu o “poço”. Quando, em 1383, se deu a
revolução em Lisboa, D. Nuno, que ali acorreu, foi “dormir esse dia a
huua aldea que chamom a Ereira; e alli chamou adeparte seus escudeiros e
disse “amigos eu vos quero contar huu segredo… assi he que eu vejo…no
meu emtemdimento huu poço cheo de gramde escoridão e… eu todavia quero
saltar em elle…Ho poço mui alto e escuro que vejo ante meus olhos, he a
gramde demamda que o meestre dizem que quer começar por deffemsom destes
rregnos, contra el‑Rei de Castella.” 6 Esta decisão era a opção pelo Mestre de Aviz, pela“arraia meuda” que o aclamava, pela sobrevivência do Reino que estava em perigo, pelo“amor à terra e afeição natural”, tal como Domingos das Eiras, em nome da população do Porto, respondeu a Rui Pereira, ali enviado pelo Mestre: “…
tudo quanto temos poremos à disposição para tal negócio, que não se
podiam despender em causa mais conveniente que a defesa da nossa Terra e
o nunca ficarmos em poder dos castelhanos” 7. Para Nuno
Álvares, “pôr à disposição” era a doação da sua vida, do seu saber, da
sua aptidão para o comando e chefia em operações militares. Um “poço”?
Certamente “um poço” antes de se conhecer o desfecho, pois era um salto
para o desconhecido, a grande aventura, mas tinha também como conforto o
de se julgar apoiado pelos bons portugueses e pela razão.
2. Acção do Condestável
Nuno
Álvares Pereira, como atrás sugerimos, pelo convívio com os
Hospitalários foi muito cedo sendo informado sobre os condicionamentos,
problemas e agruras da guerra. Este conhecimento, certamente apurado
pelas leituras que fez e pelos contactos estabelecidos com quem tinha
experiência de combate, nomeadamente no moderno teatro de operações
europeu, como era o caso dos arqueiros ingleses do Duque de Cambridge.
Tudo isto, somado às tensões que se agudizavam no Reino, ao difícil
exercício da autoridade e às divisões que ia observando na sociedade
portuguesa, deve ter despertado nele uma aptidão especial para apreender
como era importante o comando e a chefia, a utilização das
potencialidades inerentes a uma força militar e a exploração das
vulnerabilidades das forças inimigas. E isto conseguia‑se elevando o
moral dos combatentes, escolhendo e utilizando judiciosamente o terreno e
usando de forma adequada as armas disponíveis. Com efeito, a “arma de
fogo” (isto é, de lançamento de projécteis), ao tempo o arco e a besta,
conseguia já alcances consideráveis, da ordem dos trezentos metros e,
com a possibilidade de disparar uma dezena de flechas ou virotões por
minuto, tornava‑se bastante letal.
Não
podendo tratar aqui tudo o que foi a acção militar de Nuno Álvares,
irei apenas respigar das crónicas algumas referências que julgo
permitirem avaliar das suas elevadas qualidades para o comando de forças
militares.
Ainda
muito jovem, no tempo em que estava na corte “morador em casa de
El‑Rei”, estando D. Fernando em Santarém e com ele o Prior do Hospital,
D. Álvaro Gonçalves Pereira e mais cavaleiros da sua ordem “… e
porque as gentes del rey de Castela passavam pera acerca… pera Lixboa… o
priol por ensayr dom Nun’Alvarez, seu filho, … lhe mãdou que
cavalgasse… pera verem as gentes del rey de Castela… que gentes eram e a
maneyra que levavã…” Quando Nuno Álvares regressou do reconhecimento“respondeo q lhe parecia muyta gente mal acaudellada: e que pouca gente cõ boõ capitam bem acaudellada os poderia desbaratar”.8
Ao
ouvi‑lo, a Rainha entusiasmada tomou‑o para seu escudeiro, mas esta
resposta, de um jovem de treze anos, dá‑nos a ideia de como ele já
entendia que um bom comando poderia ter mais valor do que a
superioridade numérica em combatentes.
A
sua capacidade de comando e chefia, aqui desperta, vai ser amplamente
demonstrada ao longo da sua vida e, graças à opção que tomou pela causa
do Mestre de Aviz e ao amor à sua terra, vai contribuir decisivamente
para a independência do Reino e para o sucesso da nova dinastia. Ainda
tentaram conseguir os seus serviços para a causa de Castela, tendo‑lhe
seu irmão, Pedro Álvares Pereira, que sucedeu a seu pai como Prior do
Hospital (do Crato como se passou a chamar) prometido em nome do Rei de
Castela o condado de Viana e outras terras e rendas. Mas a opção de Nuno
Álvares, como disse sua mãe, era clara: “Nunca pôde mudar
Nun’Alvares, seu filho… dizendo que Deus num quixesse… ele fosse contra a
terra que o criara mas que antes despenderia seus dias e asparegeria
seu sangue por amparo dela…” 9
Depois
da revolução em Lisboa, porque muitos dos que tomaram partido por
Castela causavam danos no Alentejo, foi necessário nomear um “fronteiro”
para esta região, para defesa do reino e das suas gentes e por a
charneca alentejana ser um caminho fácil para os castelhanos marcharem
sobre Lisboa. Apesar de Nuno Álvares ter pouco mais de vinte anos, “o Meestre veo a dizer (que o cargo de fronteiro) que
pera ello mais perteemcemte, nem que o com melhor desejo fezesse, que
NunAllvarez Pereira… Joham da Regras era muito contra esto, dizemdo que
pêra tamanho emcarrego cumpria huu homem de madura autoridade, muito
avisado e sabedor da guerra… (mas)o Mestre num curou dos que o contradeziam… NunAllvarez avia dhir por fronteiro aa comarca d’antre Tejo e Odiana.10
Esta
decisão do Mestre de Aviz mostra o apreço que o futuro rei tinha pelo
futuro Condestável e, apesar de ainda não estarem muito diferenciados os
níveis político e militar, o valor que a confiança entre as personagens
destes dois níveis tem para o desenvolvimento das acções de defesa
(ensinamento ainda hoje muito válido).
Consciente da importância da sua missão D. Nuno conseguiu chamar e concentrar em Estremoz uma força que “… nom seriam mais de cavallo que huus trezentos… e pouco mais de mill homees de pee, e ataa cem besteiros.”11 Mas tendo sabido que uma hoste castelhana marchava sobre Fronteira, reuniu o seu pessoal no Rossio de São Braz e disse‑lhe “amigos,
creo que já sabees todos como o Meestre, meu Senhor e vosso, me mandou a
esta terra com a aajuda de Deos e vossa a defemdermos…” e referindo‑se à força invasora inimiga, acrescentou: “minha voomtade he pellejar com elles…” 12. Os vários responsáveis dos “logares” por terem conhecimento que a força invasora era muito superior à deles, com “gramdes
senhores por capitaães… mill lanças e mais, mui bem corregidos e muitos
genetes e besteiros e gram soma dhomees de pee…”disseram “que nossa teençom he nom hirmos convosco a tal obra.” 13 Depois
de os ter ouvido D. Nuno reiterou as suas razões e acabou por dizer que
aqueles que quisessem ir para suas casas se fossem embora “ca eu com esses poucos de boõs portugueeses que comigo vêem lhe entemdo de poer a praça.” 14 E
pretendendo ali no Rossio separar os que iam com ele e os que não iam,
acabaram todos por passar para o lado daqueles que o acompanhariam.
Neste diálogo está bem patente o ânimo e a determinação de Nuno Álvares,
pois apesar do risco que consistia enfrentar uma força castelhana muito
superior, conseguiu que aqueles homens acabassem por aderir ao seu
projecto, que é a mais simples e eloquente definição de chefia.
Os castelhanos e o Prior do Hospital, seu irmão, ao saberem que D. Nuno vinha dar‑lhes batalha, marcharam sobre ele. Mas “Nuno
Allvarez com suas gemtes era já em huu logar bem convinhavell… omde
chamom os Atolleiros… fez logo descer pee terra todollos homees darmas; e
dessa pouca gemte que tiinha, comçertou suas batalhas da vamguarda, e
rreguarda, e allas dereita e ezquerda; e fez comçertar os besteiros e
homees de pee pellas allas, onde emtemdeo que melhor estariam pera bem
pellejar.” 15
Depois de dizer as suas orações, armado de lança, tomou o seu lugar na vanguarda, como prometera, e disse: “amigos,
nenhuu nom duvide de mim, e todos aquelles que me ajudardes, Deos seja
aquele que Vos ajude; e sse eu aqui morrer per vossas culpas e mingua,
Deos seja aquelle que vos demande minha morte.16
Desta descrição do nosso cronista faz‑se notar a necessidade da “ajuda de Deus e vossa para a defemdermos”; a escolha de um terreno “bem comvinhavell”, o dispositivo em quadrado, o combate apeado e o incitamento que fez aos seus homens.
A
ajuda de Deus e dos seus homens era resultado da fé que sentia e da
consciência que tinha de necessitar do concurso deles, segundo o
conselho evangélico de não poder esperar tudo de Deus, mas haver que
“por a sua mão” para obter o apoio divino. E neste “pôr a sua mão”
estava a utilização do seu saber, mas também o concurso dos homens sob o
seu comando.
A
escolha de um terreno que lhe desse vantagem, o dispositivo em quadrado
que lhe garantisse a segurança, e o pessoal combatendo a pé, de arma em
riste, com os besteiros a fustigar o avanço inimigo, pois “foi ho primeiro que… ataa este tempo pos batalha pee terra em Portugall e a vemçeo” 17,
era a manifestação do seu saber e da sua habilidade táctica, pois
impediu desta forma que a superioridade numérica e a maior mobilidade do
inimigo fossem exploradas.
O
exemplo que deu ao colocar‑se na vanguarda e os incitamentos que fez
aos seus homens, deu‑lhes o moral necessário para enfrentarem um inimigo
superior e saírem vencedores. Segundo a crónica os castelhanos tiveram
72 mortos, entre eles o Mestre de Alcântara, e os portugueses nenhum.
Nuno
Álvares venceu esta primeira grande prova, como comandante e chefe,
aumentando por esta forma a sua autoridade, condição fundamental para um
eficaz exercício do comando. Se esta autoridade lhe fora
institucionalmente atribuída pelo Mestre de Aviz ao nomeá‑lo
“fronteiro”, Nuno Álvares sentiu bem, nas convulsões pelas quais
Portugal passava, na forma como os portugueses estavam divididos, nas
razoáveis dúvidas que João das Regras apresentou para a sua nomeação,
que era necessário “conquistar” essa autoridade. E conseguiu‑a,
exemplarmente, em Atoleiros.
Em Março e Abril de 1385, com base na inteligente argumentação de João das Regras e“porq todo o povoo miudo do Reyno dizia e bradava q o fezessem Rey” 18,
D. João, Mestre de Aviz, foi eleito Rei de Portugal. E logo no dia 9 de
Abril, aniversário da Batalha de Atoleiros, Nuno Álvares foi nomeado
Condestável – Comandante do Exército Português.
Quando
o Rei de Castela invadiu nesse ano o País, o Condestável com os seus
homens foi juntar‑se a D. João I, em Abrantes. No conselho que o Rei ali
promoveu, o parecer avisado, o sentido estratégico e a determinação de
Nuno Álvares (que pelos ensinamentos que contem, tenho citado numerosas
vezes) são dignos de realce. Ouçamos a saborosa descrição do nosso
cronista sobre o debate realizado nesse conselho.
“Estando
el‑rei em Abrantes, onde o deixamos entrou em conselho, com o
Condestável e os outros com quem habitualmente falava seus segredos
sobre se daria batalha a seus inimigos ou se usaria da “guerra
guerreada” por ser a batalha cousa arriscada…
Os
mais deles concordavam em que não devia haver batalha, dizendo o
seguinte. Que pois el‑rei de Castella entrava no reino, fosse el‑rei de
Portugal ao Alentejo e entrasse pela Andaluzia; e quando el‑rei de
Castela isto soubesse iria procurá‑lo para socorrer sua terra, sendo
desta guisa desviado de atacar Lisboa; e ao voltar entraria por outra
fronteira. Que desta forma se evitaria a batalha que era cousa muito
perigosa e duvidosa, porque el‑rei de Castela vinha muito orgulhoso com
poderio de muitas tropas; enquanto que el‑rei de Portugal se encontrava
em situação desfavorável. E que fazendo‑se a guerra por esta forma
passaria tempo, e poderiam entretanto vir tropas inglesas em sua ajuda
(pois era certo que viriam, e cada dia as esperavam); ou então chegariam
a algum acordo com el‑rei de Castela, a que se poderia seguir paz e
tranquilidade…
Para
demover os da maioria do Conselho, o Condestável disse muitas e boas
razões tendentes a mostrar quanto era proveito do Reino e honra de
el‑rei oferecer batalha a el‑rei de Castela, pois que o tinham consigo
dentro do Reino. Não o fazendo mostrariam grande míngua e cobardia o que
quebraria os corações dos Portugueses, que esperavam ser defendidos, e
daria grande ânimo a seus inimigos. E deixando que estes chegassem a
Lisboa podia ser que a cidade se entregaria vendo‑se posta em aperto. E
perdida Lisboa era perdido todo o Reino…
Parece
que no meio do trigo limpo daquela cidade está alguma má semente, em
que el‑rei de Castela põe a sua esperança. E esta seria muito maior nele
e mais poderosa nos corações dos que têm alguma traição preparada, se
vissem que el‑rei nosso senhor não se atrevia a pôr‑lhe campo, e em vez
disso ia passear a Sevilha para cortar duas oliveiras podres. Depois das
aflições e atribulações que Lisboa padeceu e padece para levar este
feito por diante por honra do Reino e serviço de el‑rei nosso senhor,
dizeis a este que como prémio de tão grande serviço vá a Sevilha, gastar
gente e tempo, sem qualquer proveito, e que deixe Lisboa à mercê de
seus inimigos sem capitão e tropas que a defendam, morrendo de fome como
cães…
Ficando
este conselho indeterminado naquele dia, no seguinte bem cedo pela
manhã, ouvidas primeiro as suas missas como costumava, mandou o Conde
dar às trombetas, e com o coração bem agastado, mas cheio de virtuosa
ousadia, sem mais falar a el‑rei nem a ninguém, partiu com a sua gente a
caminho de Tomar, para onde el‑rei de Castela vinha…” 19
Deste
curioso debate, em que se confrontam duas atitudes totalmente opostas
quanto ao que fazer face à invasão castelhana – furtar‑se à batalha e
invadir a Andaluzia, ou ir à batalha, com os riscos que isso comportava –
deve salientar‑se da posição defendida pelo Condestável, o seguinte:
–
A noção de que Lisboa é o objectivo decisivo – perdida Lisboa é perdido
todo o Reino (ideia que tem sido comprovada ao longo da nossa
História); por essa razão dever‑se‑ia barrar o passo ao invasor antes
que a atingisse;
– A determinação em travar a batalha com o Rei de Castela, nem que para isso tivesse que ir apenas com os seus homens;
–
A coragem em enfrentar uma força inimiga muito superior e a confiança
em que a autoridade que já possuía como chefe militar lhe garantiria a
obediência daqueles que com ele iam partilhar essa aventura.
Como
sabemos D. João I foi‑se‑lhe juntar em Tomar, tendo ambos seguido para
Aljubarrota. Por tão conhecida não vamos lembrar essa batalha decisiva
para a independência de Portugal, mas dela sublinharemos apenas alguns
pontos que são importantes quando tentamos esboçar a figura do
Condestável:
–
Depois do reconhecimento feito em 13 de Agosto, D. Nuno teve
oportunidade de escolher o “terreno mais comvinhavel” para travar a
batalha, sem que a superioridade numérica do inimigo pudesse ser
livremente utilizada;
–
Mais uma vez criou um dispositivo lógico, aqui sobre o itinerário que o
exército castelhano deveria percorrer, num esporão sobre o rio Lena,
numa posição por tal forma forte que o inimigo não ousou atacá‑la;
–
Começando o exército castelhano a tornear a posição, com grande
oportunidade, flexibilidade e num prazo de apenas duas horas, foi
ocupada nova posição com o dispositivo invertido, dois quilómetros mais a
sul;
–
Novamente foi posta à prova a sua lealdade ao Rei e a Portugal, quando o
seu irmão, antes da batalha, cerca das 16 horas, tentou dissuadi‑lo de
servir o “Rei de Aviz”, como em Castela, depreciativamente, chamavam a
D. João I;
–
Mais uma vez usou o conhecimento da personalidade dos chefes inimigos,
que com elevada probabilidade iriam (como sucedeu e ao que parece muito
pela influência de Afonso Telo, irmão de D. Leonor, junto do Rei) atacar
a hoste portuguesa em vez de prosseguir sobre Santarém e Lisboa;
–
A clareza, certamente, das instruções transmitidas (que não conhecemos)
mas que foram essenciais para o sucesso da batalha, já que depois de
iniciado o combate era muito difícil fazer alterações de fundo, pela
dificuldade de comunicação;
–
O exemplo que deu combatendo na vanguarda, a esforçada acção quando da
rotura da frente e quando acudiu à ameaça sobre a retaguarda, o que
somado às suas qualidades de comando, foram decerto importantes para o
moral, para a disciplina dos combatentes, para a vitória alcançada.
Tanto
em Atoleiros como em Aljubarrota a exploração do sucesso, que se
deveria seguir a cada uma das vitórias, foi muito limitada. Em
Atoleiros, “… NunAlvarez a cavallo com mui poucos dos seus, porque
tam a pressa nom poderam todos aver bestas, e seguir o encalço huua
grande legoa ataa que per noite foi forçado a se tornar, dizemdolhe
alguus dos seus, que aquello era temtar Deos, nom sse comtentar da
mercee que lhe Deos fezera…” 20. Em Aljubarrota, porque
também a noite impediu essa manobra, tanto mais que esta foi
particularmente escura, como nos diz Froissart.
Apesar
das duas vitórias, em Atoleiros e Aljubarrota, as condições de luz
impediram a manobra táctica de consolidação dos êxitos alcançados, que é
a exploração do sucesso. Mas o Condestável com a sua intuição guerreira
iria fazê‑la, a nível estratégico, invadindo por sua vez Castela. “…o
Comde como hera home sages e percebido e muy avisado nos feitos da
guerra, que vendo o desbarato e grão trovação em que el Rey de Castela e
a gemtes do seu reino por estomce herão postos, a huus per semtido a
outros per ouvida… Podia fazer hua emtrada com muito sua homrra e
serviço do Reino…” 21
Com
esta acção, parece que Nuno Álvares decidiu fazer a manobra que ele
condenara no conselho que acontecera em Abrantes, antes de Aljubarrota;
de poder não estar agora a respeitar o princípio do objectivo, que o
levou a barrar o passo ao exército castelhano que marchava sobre Lisboa.
Só que as condições agora eram diferentes das de Agosto: Aljubarrota
fora uma derrota tão pesada para Castela que o rei decretara dois anos
de luto nacional; o exército castelhano tinha retirado de Portugal; Nuno
Álvares como chefe militar e os portugueses como combatentes tinham
ganho fama; a independência de Portugal e a Dinastia de Aviz estavam
agora mais afirmadas e tinha‑se criado as condições para a consolidação
desses dois objectivos. Por estas razões o Condestável invade Castela,
onde permanece 18 dias, desloca‑se sem oposição até à região de Mérida e
tem um recontro importante em Valverde, no qual a morte do Mestre de
Santiago foi factor de desmoralização das forças inimigas que ali
sofreram mais uma derrota.
Uma
vez mais D. Nuno Álvares Pereira demonstrou as suas qualidades de chefe
militar, o sentido de oportunidade, o conhecimento do inimigo.
3. Conclusões
Em conclusão e para terminar, julgo dever sublinhar alguns pontos.
– Durante a sua vida D. Nuno Álvares Pereira, idealista místico e arrebatado, tanto
se recolhe em oração durante o combate de Valverde como, nos esponsais
do Rei de Castela e D. Beatriz, …. Derruba irreverentemente a mesa, por
não lhe terem assegurado o lugar que ali lhe competia22. Íntegro e modesto, muito exigente consigo e com os outros, sóbrio, valente, leal e muito determinado, D. Nuno, o Homem merece bem ser objecto da nossa curiosidade e admiração.
–
Da Ordem da Cavalaria, D. Nuno Álvares Pereira absorveu os ideais,
seguiu as virtudes, cultivou os valores e partiu em demanda do Santo
Graal. Na época cruzava‑se ainda a memória da terceira era, a do
Espírito Santo, da convicção de Joaquim de Flora, toda ela cheia de
espiritualidade, com a iniciada sétima idade do mundo, que se começou nos feitos do Mestre e
que alimentava a esperança de um Portugal renascido em Aviz. Para D.
Nuno, o Graal que demandou, cálice de veneração, símbolo de sacrifícios,
era a salvação do Reino. Aliás, a crermos na Crónica de Sant’Ana ele teria dito ao embaixador de Castela que só despiria o hábito se El‑Rei de Castela outra vez movesse guerra contra Portugal (se non è vero è ben trovato…). Para D. Nuno, o Homem do seu tempo, o Graal que procurou foi a grande demanda que o Mestre… quer começar por deffemsom destes rregnos…. O seu graal foi Portugal.
–
Clausewitz, o militar e pensador que tratou a guerra com maior
profundidade, naquela que se chamou a definição ternária ou trinitária
de guerra, diz que a guerra é constituída por três elementos
fundamentais: o racional, o emocional e o aleatório. O racional sustenta
a lógica das decisões e do conhecimento; o emocional resulta das
paixões e dos estímulos produzidos; o aleatório traz para a guerra a
manifestação do acaso. D. Nuno, o Guerreiro, com
racionalidade conseguiu encontrar as melhores soluções para os difíceis
problemas com que foi confrontado; usou a emoção para despertar nos seus
a vontade de defesa, para lhes aumentar o moral, para lhes dar ânimo
para vencer; e o acaso rendeu‑se‑lhe, colaborando com a “fortuna” (como
lhe chamava Maquiavel) que acompanhou a sua acção guerreira.
– Como um cavaleiro templário que se lançava no combate invocando Deus e dizendo “… para glória do Teu nome”, D. Nuno ofereceu‑se a Deus e a Portugal para glória de ambos. D. Nuno, o Militar, empenhou‑se no Portugal independente, a terra que o criara, com aquela bela forma de juramento que sua mãe lhe ouviu: antes despenderia seus dias e asparegeria seu sangue por amparo dela…
–
Comando é a autoridade conferida a um indivíduo para a condução das
forças militares. O Mestre de Aviz atribuiu a Nuno Álvares o comando da
região antre Tejo e Odiana e, já rei aclamado de Portugal, o comando do exército – nomeou‑o Condestável. Porque comando é autoridade, D. Nuno, o Comandante,
foi buscá‑la ao seu saber das coisas militares, à reflexão e depois à
sua própria experiência. Usando essa autoridade, que lhe permitiu ser
obedecido, conduziu com sucesso as Forças e aumentou o seu prestígio e
autoridade.
–
Se a eficácia do exército é a resultante da conjugação da força
material com a força moral dos seus elementos, as forças portuguesas do
fim do século XIV, sempre mais fracas do que as castelhanas, tinham que
ir buscar às forças morais o complemento de poder que necessitavam para
enfrentar o adversário. Mas as forças morais variam com a motivação e
com a qualidade da chefia. D. Nuno, o Chefe, conseguiu
que as suas ideias, planos e acções para defender o país passassem a ser
os projectos dos homens que comandava, conseguindo dessa forma o
diferencial de moral, logo de força, que os conduziu à vitória.
–
Naquele tempo, como ainda hoje, debatiam‑se no combate dois dos seus
principais protagonistas: o fogo e a manobra. Naquela época o fogo
manifestava‑se através do arco e da besta, e a manobra no deslocamento
montado e apeado. D. Nuno, o Táctico, utilizou judiciosamente o fogo e o terreno para dificultar a manobra do inimigo e para o vencer.
– Quando se debate ir à batalha, com todos os riscos que isso comporta, ou fazer uma guerra guerreada,
e se está numa situação de manifesta inferioridade, o senso parece
indicar que não se vá à batalha. Mas a defesa daquilo que é fundamental
pode exigir os sacrifícios da batalha. Como perdida Lisboa era perdido todo o Reino, D. Nuno, o Estratega, escolheu o modo de agir que a defesa do Reino exigia – foi à batalha, e venceu‑a.
–
Pátria, ou Mátria, se quisermos, é a terra dos seus pais, do seu
sangue, do lar, dos sonhos comuns. Nos actos de posse de cargos de
direcção importantes jura‑sedesempenhar com lealdade as funções… Não
conhecemos o que o Condestável disse ao ser empossado, mas pelo que se
passou posteriormente, ele desprezou bem‑estar, mordomias e a própria
vida, pela sua lealdade aquele povoo miúdo do Reyno (que) dizia e bradava que o fizessem Rey (ao Mestre de Aviz). D. Nuno, o Patriota, leu Torga antes de Torga e disse – Pátria é um palmo de terra defendida.23
* Conferência proferida na Universidade Católica, em 20 de Abril de 2009, na semana anterior à canonização de Nuno Álvares.
** Presidente da Assembleia Geral da Revista Militar.
1 Como a legenda da ponte de Alcântara sugere.
2 CIDADE, Hernâni: Portugal Histórico Cultural, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973, p. 54.
3 Da “Correspondência”, in “Nun’Álvares Condestável e Santo”, de António Reis Rodrigues, Serviço Histórico‑Militar, Lisboa, 1985, p. 32.
4 SARAIVA, A.J., As Crónicas de Fernão Lopes, Portugal Editora, Lisboa, p. 332.
5 FERNÃO LOPES, Crónica de D. João I, Vol I, Livraria Civilização, Barcelos, 1983, Cap CLXIII, p. 349 e 350.
6 Id., Cap XXXVII, p. 74.
7 SARAIVA, A.J., op. cit., p. 250.
8 Crónica de Condestabre de Portugal, M.E.N., Lisboa, 1969, Cap II, p. 3.
9 Id., Cap XIX, p. 54.
10 FERNÃO LOPES, op.cit., Cap LXXXVII, p. 166 e 167.
11 FERNÃO LOPES, op.cit., Cap XCII, p. 174.
12 Ibid.
13 Id., Cap XCIII, p. 175 e 176.
14 Ibid.
15 Id., Cap XCV, p. 180.
16 Id., Cap XVC, p. 181.
17 Id., p. 183.
18 Cronica do Condestabre de Portugal”, Cap. 42, p. 32.
19 SARAIVA, A.J., op.cit., p. 345 a 349.
20 FERNÃO LOPES, op. cit., p. 182.
21 Id., Vol V, p. 139 e 140.
22 OLIVEIRA, Alcide, Aljubarrota Dissecada, Lisboa, 1988, D.S.H.M., p. 51.
23 [Poema Nun’Alvares], TORGA, Miguel, Poesias Completas, Lisboa: Edições D. Quixote, 2000, p. 710.
Causa Monárquica
A Empresa da Revista Militar foi fundada no dia 1 de Dezembro de 1848 por um grupo de 26 Oficiais do Exército e da Armada, dirigido pelo então Tenente do Real Corpo de Engenheiros Fontes Pereira de Mello.
A Revista Militar – com o primeiro número publicado em Janeiro de 1849 – foi um dos primeiros títulos da imprensa militar portuguesa, sendo actualmente o mais antigo Órgão da Imprensa Militar Mundial com publicação ininterrupta.
Os estudiosos do seu acervo confrontam-se com a influência exercida pelos Fundadores e por grande parte dos colaboradores da Revista na dinamização das Forças Armadas, e do próprio País, desde 1 de Dezembro de 1848, quando se assinou o Contrato.
(Tenente Fontes Pereira de Mello, Introdução, do Primeiro Número, Janeiro 1849)
Fonte Revista Militar
Causa Monárquica
Revista Militar – 159 anos de História
A Empresa da Revista Militar foi fundada no dia 1 de Dezembro de 1848 por um grupo de 26 Oficiais do Exército e da Armada, dirigido pelo então Tenente do Real Corpo de Engenheiros Fontes Pereira de Mello.
A Revista Militar – com o primeiro número publicado em Janeiro de 1849 – foi um dos primeiros títulos da imprensa militar portuguesa, sendo actualmente o mais antigo Órgão da Imprensa Militar Mundial com publicação ininterrupta.
Os estudiosos do seu acervo confrontam-se com a influência exercida pelos Fundadores e por grande parte dos colaboradores da Revista na dinamização das Forças Armadas, e do próprio País, desde 1 de Dezembro de 1848, quando se assinou o Contrato.
“O século em que vivemos tende, sem dúvida,
a consomar o grande pensamento humanitário,
que tem por base o predomínio da inteligência
sobre a força”.
a consomar o grande pensamento humanitário,
que tem por base o predomínio da inteligência
sobre a força”.
Fonte Revista Militar
Causa Monárquica
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