Circula a notícia de um abaixo-assinado de oitenta historiadores e estoriadores
muito encanitados pela abolição dos dois "feriados civis". Se é bem
certo que esse lacrimejar apenas se refere ao 5 de Outubro, não é menos
certeira a afirmação da "degradação do sentido de comunidade" que agora
estes indignados trompeteiam. Estranha alegação esta, quando provem
daquele núcleo de excelentes intelectos que dedicaram a maior parte das
suas vidas ao afanoso mester de demolição do legado histórico português,
obcecados em puxar de galões de auto-reconhecido estrangeirismo. Vasco
Pulido Valente não é um desses e são bem conhecidos os seus honestos
trabalhos no âmbito da historiografia, mesmo se as suas interpretações
são recebidas com o desagradado murmurar por parte da estoriografia
sustentada pelo feliz recurso ao subterfúgio da bolsa que faz tanto
pesquisador da moda bolsar inanidades. Passando sobre o lapidar
considerar que VPV nos deixa acerca da 1ª República e as suas
felicidades tonitruantes de bombas, estampidos e traulitadas no lombo, o
autor do texto ontem dado à estampa no Público,
não resistiu à sua indomável condição de solitário "Vencido da Vida"
dos nossos dias, deixando um desabafo acerca da União Ibérica. De facto,
VPV parte de pressupostos erróneos e muito desconfiamos tratar-se esta
prosa de calculada provocação, desejando rápida réplica.
Em 1580, o sucessor directo e legítimo
ao trono vago pela morte do Rei D. Henrique I, era sem qualquer margem
de hesitação, D. Catarina de Aviz, pelo seu casamento Duquesa de
Bragança. Segundo opinião intelectualmente aceite, Portugal é
um "país atrasado, preconceituoso e misógino", mas jamais instituiu a
chamada Lei Sálica que até há poucos anos vigorou na maior parte das
..."civilizadas sociedades do norte da Europa". Se recuarmos no tempo,
em 1383 os portugueses poderiam ter aclamado a sua primeira Rainha, não
fosse D. Beatriz refém de um casamento rejeitado pelo país. Por curioso
acaso, este é um daqueles episódios que faz cair o oportuno e recorrente
mito da periculosidade que a instituição monárquica representa para a
independência nacional, pois há setecentos anos e contra todas as
expectativas de sucesso, aquilo que já era um sólido embrião de "uma
nação", opôs-se à sucessão legítima, impondo o Mestre de Aviz como
soberano. Passando ao caso de D. Catarina, a Duquesa era filha do
Infante D. Duarte, filho do Rei D. Manuel I e irmão de D. João III. Se
fosse vivo à data da Alcácer-Quibir, ter-lhe-ia cabido a imediata
sucessão à coroa, em detrimento do Cardeal-Rei. Filipe II, apontado por
VPV como herdeiro "legítimo" das coroas peninsulares, apenas o seria no
trono português, no caso de D. Catarina jamais ter existido. O Rei
espanhol era filho de uma Infanta, a formosa D. Isabel que foi a segunda
Imperatriz portuguesa do Sacro Império Romano-Germânico e em acumulação
de títulos, Rainha de Espanha. Apenas a exaustão financeira e a
ausência de efectivos militares consistentes, impediram a natural
sucessão na pessoa de D. Catarina. Se Filipe II comprou e conquistou a
coroa, jamais a terá herdado e os acontecimentos de 1640 apenas
repuseram a legalidade exigida pelas normas sucessórias do Reino.
Num insólito ensaio comparativo, VPV
traça um escusado paralelo com aquela outra realidade que foi o Império
Austro-Húngaro saído do Compromisso de 1867. No plano europeu,
os interesses da Áustria e da Hungria eram coincidentes, opondo-se às
investidas pan-germanistas acicatadas pela Prússia hegemónica na
Alemanha e ao pan-eslavismo alimentado por S. Petersburgo. O Ausgleisch de 1867, representou a garantia do controlo de populações não alemãs e não húngaras sob o domínio da dupla coroa da Casa de Habsburgo.
Passando sobre o evidente anacronismo
que definitivamente separa a chamada União Ibérica do arranjo engendrado
na Europa Central, o caso peninsular era bem diverso, nem que apenas o
fosse tendo em conta a evidente discrepância dos interesses das duas
coroas. A Portugal interessava a manutenção do pacífico e rendoso
comércio com as potências do norte, cujas frotas mercantes arribavam a
uma Lisboa a abarrotar de possibilidades de negócios, daqui saindo
especiarias e outros apetecidos produtos de luxo. As questões
continentais eram avessas ao interesse português, precisamente no
momento em que a Espanha e os seus monarcas iniciavam o fatídico caminho
da luta pela hegemonia continental, atolando-se em conflitos na França,
Inglaterra, nos Países-Baixos em secessão, na Itália e no imbróglio de
uma Alemanha devastada pelas guerras religiosas. Já aparentemente
consolidada aquilo a que os historiadores além-fronteira teimam em
chamar de Monarquia Hispânica - numa evidente rejeição da tal
"independência portuguesa" que VPV aponta e é baseada no mero aspecto
formal -, o ministro Olivares quis desfazer o que considerava ser uma
organização ineficiente dos recursos da Monarquia. No plano
territorial, União de Armas pressupunha a submissão de todas as
componentes europeias às leis de Castela, procedendo-se à definitiva
anexação dos Estados que como Portugal, mantinham a ficção de uma união
dual, aliás em clara contradição com aquilo que se passava na política
real, fosse ela comercial ou militar. Contra todo o interesse da Coroa
de Portugal, a partir de 1580 as nossas possessões foram de imediato
atacadas - quando não o próprio território nacional - por holandeses,
ingleses, franceses e nórdicos, na ânsia da conquista de um quinhão
daquele Novo Mundo - em sentido lato, neste se compreendendo as Índias
orientais - recentemente subjugado pelo ímpeto português. Neste aspecto,
esquece VPV o descuido perante os compromissos assumidos em Tomar e
poucos anos após a subida ao trono de Filipe I de Portugal, já os
principais navios da Invencível Armada, precisamente aqueles
que maior valor militar tinham, eram requisitados para uma aventura de
funestas consequências para a nossa incipiente talassocracia. O abandono
dos arsenais portugueses, a incúria na manutenção das guarnições
ultramarinas - perda de Ormuz, de feitorias na Índia, Insulíndia e
Ceilão, conquista holandesa de Angola, de S. Tomé e do nordeste
brasileiro -, o exaurir de recursos canalizados para as guerras
continentais que a Casa de Áustria mantinha desde os Pirenéus à
Alemanha, do Mar do Norte ao Mediterrâneo Central e Oriental,
inevitavelmente conduziram ao 1º de Dezembro que alguns historiadores e
os estoriadores de serviço, hoje juram querer defender a memória. Nada
mais falso, pois a verdadeira questão é aquela que se prende com a
opípara manjedoura que o 5 de Outubro significa. É mesmo aquela peonagem
do 5 de Outubro "liquida pátrias" que ergueu os seus alicerces no Casino, rejubilou com o Ultimato
como óptimo recurso demolidor e não hesitou por um momento, em esmagar o
Estado liberal que tanto sustento material e intelectual lhes
propiciara. Tudo isto, recorrendo a inomináveis torpezas que tinham nos
costumes e vida privada de fulano e sicrano, ignóbil recurso para
discursatas, obras de grande divulgação difamatória e propaganda
comicieira.
O tal espírito do Casino está
bem vivo, espante-se! Se fossem os tais estoriadores sinceros defensores
da memória do liberalismo que negregam dia após dia, dedicar-se-iam
agora à defesa da inclusão do 24 de Julho como festa nacional, aliás
aquela data marcante que fartamente lhes tem alimentado ambições e
barrigas.
publicado por Nuno Castelo-Branco em Estado Sentido
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