por João José Brandão Ferreira [TCOR/PILAV (R)]
“Essas
poucas páginas brilhantes e consoladoras que
há na História do Portugal Contemporâneo
escrevemo-las nós, os soldados, lá pelos
sertões da África, com as pontas das baionetas e
das lanças a escorrer em sangue. Alguma coisa
sofremos, é certo; corremos perigos, passámos
fomes e sedes e a não poucos prostraram em terra para sempre
as fadigas e as doenças. Tudo suportámos de boa mente
porque servíamos El-rei e a Pátria, e para outra
coisa não anda neste mundo quem tem a honra de
vestir uma farda. Por isso nós também merecemos
o nome de soldados; é esse o nosso maior
orgulho”.
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe)
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe)
Esta citação foi
retirada da carta que Mouzinho escreveu, em 1901, ao Príncipe
D. Luís Filipe de quem era Aio. Esta carta por demais
notável – e que deveria ser lida e meditada em
todas as escolas do País – constitui a síntese
do seu pensamento de Homem, de Português e de
Militar e reflecte em alto grau a elevada
estatura moral do seu autor, espírito superior que não
cabia no Portugal de então.
A figura de
Mouzinho já foi evocada e estudada de todos os ângulos
possíveis; as suas acções como militar,
administrador e educador, dissecadas por numerosos autores, e bem
assim o seu perfil como Homem, cidadão e o político
que nunca foi.
Personalidade
complexa, era dotado de grandes qualidades e algumas sombras, como é
inevitável em todos os humanos. Mas entre umas e
outras, o saldo recai amplamente nas primeiras e
tudo deve ser avaliado à luz de um todo e de
uma época.
“Aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”
Camões
Joaquim Mouzinho, nascido na Batalha,
a 12 de Novembro de 1855, distinguiu-se entre os
Homens da sua geração e ganhou jús a figurar na plêiade de portugueses que no dizer do poeta
“se vão da lei da morte libertando”.
Evocar Mouzinho,nos dias que
correm,representa um pequeno acto de coragem que me permito –
sem ofensa de lisonja aos leitores – reputar
de adequado, tendo em conta estarmos a evocar
Mouzinho que tinha essa qualidade, a coragem –
tanto física como moral -, no mais alto grau.
Lembro apenas esse memorável
acto de coragem temerária – embora reflectida -, só
possível num ser dotado de grande espírito militar e
capacidade de liderança, que foi o golpe sobre
Chaimite, feito de armas singular, glória
exaltante dos nossos brios patrióticos e cujo
valor encontrou eco nos principais países de
então, confrontados com derrotas dolorosas de importantes
exércitos da época.
Valor que fez reconhecer à
generalidade da população portuguesa o direito que
aqueles 50 bravos passaram a ter de ninguém se lhes dirigir
sem se descobrir.
E tanto é de espantar o golpe
de asa que fez Mouzinho entrar no Kraal do Gungunhana,
protegido pela sua mais aguerrida “impie” de
3000 guerreiros, derrubando com decisão a
paliçada que o protegia, todos petrificando com
assombro; como, já na retirada, sentindo os vátuas
que os seguiam de perto, inquietos por não completamente
dominados, mandou parar a coluna e num gesto intuitivo de
alto risco, ordenou aos orgulhosos negros que
depusessem os seus escudos no chão de modo a
sobre eles poderem os soldados portugueses descansar. E
assim se fez, ficando completa a humilhação vátua
e por arrasto a sua submissão.
Mas hoje não se ensina mais o
significado de Chaimite à população portuguesa e
muito menos à sua juventude. Provavelmente, em muitos
meios, este e outros actos heróicos são
considerados “demodés”; uma acção de violência
que nada justifica; uma aventura imperialista;
um esforço escusado, uma afronta à paz entre os
povos e outras considerações de semelhante
jaez.
Hoje em dia os portugueses deixam-se
dominar pelos pseudo intelectuais de serviço que
primam em aviltar a memória de quem se portou
bem e de exaltar iniquidades aviltantes. E a
prova é que se financiam alguns destes artistas
e se ignorou olimpicamente o centenário da
morte de Mouzinho.
É pois a esta luz, isto é,
fazendo um paralelo entre os exemplos de Mouzinho e alguns
eventos dos nossos dias, que me proponho
alinhavar a prosa restante.
Será mais um serviço que ele indirectamente presta à terra que tanto amou.
Assim antes de fazer uma incursão
nos seus exemplos como Homem, Militar e Administrador,
tentarei situar o personagem no Portugal de
então e concluirei com uma certeza e um apelo.
A introdução fica assim
feita, faltando apenas explicitar duas razões ponderosas da
importância de comemorar a figura de Mouzinho:
-
para se voltar a evocar os nossos heróis,
sábios e Santos, ajudando desse modo a enterrar
definitivamente uma leitura marxista da
História que se impôs entre nós desde a época
conturbada de 1974/5 e que tão perniciosos resultados tem
dado;
- e para ajudar a reganhar a nossa auto estima
como nação, muito abalada por eventos contemporâneos.
O Portugal Contemporâneo de Mouzinho
“Foram-se-nos
mais de três partes do império de Além Mar e
Deus sabe que dolorosas surpresas nos reserva o
futuro ...”
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luís Filipe de Bragança)
(in carta ao Príncipe D. Luís Filipe de Bragança)
Mouzinho, nasceu no reinado efémero
do muito prometedor rei D. Pedro V que a doença ceifou
tão prematuramente.
Portugal tinha
começado a viver, desde 1851, um período de paz
civil, recuperação financeira e desenvolvimento
económico. Este período seguia-se aos terríveis
50 anos anteriores, que tinham visto o país invadido pelos
franceses por três vezes, que deixaram atrás de si um
rasto de morte e destruição; assistido à partida
da família real e de cerca de 10 000 pessoas de
maior condição para o Brasil; à ocupação
inglesa e perda do monopólio do comércio do
Brasil e restantes territórios, para a
Inglaterra; à Revolução Liberal de 1820, que
veio a expulsar o governo de Beresford, e está
na origem da independência brasileira, da primeira constituição
portuguesa e da posterior divisão da família real e
subsequente guerra civil; da guerra civil que
durou de 1828 a 1834, que devastou o país; da
revolução social que se seguiu ao seu termo,
cujo expoente se situa na extinção das Ordens
Religiosas e na reforma administrativa de Mouzinho da
Silveira e ainda na formação de uma nova nobreza e na
emigração da antiga; tudo isto seguido de uma tremenda
e demorada crise, política, social, económica,
financeira e religiosa, que acabou por desembocar
noutra guerra civil, em 1847, a Patuleia,
apenas terminada por uma intervenção militar
anglo-espanhola!
Foi na sequência
desta devastação que o Marechal Saldanha,
conhecido cabo de guerra de outras batalhas e golpes de
estado, forçou, “manu militari” a sua ida para primeiro
ministro, em 1851.
A partir daqui as
forças político-partidárias vendo o descalabro
em que se encontrava a Nação, promoveram um
entendimento em que dois partidos constituídos, um mais à
direita – O Regenerador -, e outro mais à esquerda – o
Progressista -, se alternariam no Poder, numa
tentativa de imitação do parlamentarismo
inglês.
Deu-se assim
início ao “Rotativismo”, que funcionou sem percalços
de maior até 1890, período marcado pela figura do
General Fontes Pereira de Melo. Esse ano de 1890 viu surgir uma
crise financeira o que acompanhado do
“ultimatum” inglês, mergulhou o país em
prolongada crise social e política. A monarquia
portuguesa ia viver os seus últimos 20 anos de
existência em que aumentaram sem cessar os ataques à
família Real e ao Trono a que não eram estranhas as
ideias socialistas introduzidas na sociedade portuguesa e,
sobretudo, a emergência em força do partido
republicano. Tudo veio a desembocar na revolta
republicana gorada de 1891; pelo assassinato do
rei D. Carlos e do herdeiro do trono, em 1 de Fevereiro de 1908 e,
finalmente, no 5 de Outubro de 1910, onde a divisão
e desorientação das forças monárquicas e a
falta efectiva de liderança fizeram soçobrar uma
Monarquia antiga de quase 800 anos, em menos de
24 horas, às mãos de cerca de 500 civis
armados, meia dúzia de peças de artilharia e um
subalterno de Administração Naval. E isto
depois do chefe da revolta, Almirante Reis, se ter suicidado
julgando a partida perdida!
Talvez o resultado
de tudo isto tivesse sido diferente se a espada de Mouzinho
não o tivesse acompanhado no túmulo ...
Quando Mouzinho
nasceu, Portugal mantinha presença em quatro
continentes, mas à excepção da Índia e do
Brasil, o seu controle efectivo dos territórios era escasso. O
esforço estratégico dos últimos 200 anos
tinha-se concentrado no Brasil, território que, à data
da independência tinha um nível de desenvolvimento
idêntico à Metrópole e um potencial
incomparavelmente superior. Por via das invasões francesas e
das guerras civis subsequentes, Portugal falhou
as duas revoluções industriais ao passo que
víu destruído quase tudo o que detinha. A
independência brasileira deu o golpe de misericórdia
na economia e finanças.
Portugal, que no
início do século XIX, se poderia considerar uma
média potência, estava em meados do século quase
desqualificado no concerto das nações e incapaz de
acompanhar o desenvolvimento tecnológico em acelerada
expansão.
Face às
dificuldades existentes o Marquês de Sá da Bandeira,
homem de incontestável valor (mas que se ficou por marquês
enquanto outros de inferior estofo, foram a Duque
...), no preâmbulo do decreto Lei que abolia a
escravatura, apontou a necessidade de se mudar o
esforço estratégico para África de modo a lá
se constituírem novos Brasis. O desafio foi aceite
mas as guerras estrangeiras e internas, já citadas, os
desatinos político-partidários; o caos financeiro; as
querelas religiosas e a desorganização militar e
administrativa fizeram gorar qualquer tentativa
séria de desenvolver os territórios de além
mar, à demasiado tempo entregues à sua sorte.
Tal só veio a mudar quando o interesse sobre a
África e as cobiças internacionais, que
culminaram na Conferência de Berlim de 1884/5,
fizeram com que o governo português acordasse da sua
letargia e intentasse estudar, delimitar e ocupar “de facto”, os
territórios onde a Bandeira portuguesa flutuava
há quatro séculos. Isto só foi possível porém
pelos progressos registados no período de 1851 a
1890 e que se traduziram na estabilidade das
finanças, desenvolvimento da agricultura
(Portugal continuava a ser um país essencialmente
agrário) e na melhoria das vias de comunicação,
transportes e infra-estruturas sociais. E, naturalmente, no reforço
possível do Exército e da Armada.
A partir do início
do século XIX, a África Negra deixou de ser
olhada apenas como reservatório de escravos para passar
a local apetecível de ocupação. Concorreu para
isto a curiosidade científica, a procura crescente de produtos
tropicais, a necessidade de matérias primas e a
cativação de novos mercados que a Revolução
Industrial não só potenciava, como exigia.
A perda de
controle dos territórios que dispunham na América do
Norte, por parte da França e da Inglaterra encaminhou estes
países para outras paragens.
À medida que se
entrava na segunda metade de oitocentos o interesse por
África cresceu desmesuradamente.
Constatava-se a
ignorância sobre tão vasto território,
sobretudo o seu interior. E do interesse dos governos passou-se para
a opinião pública e desenvolveu-se a Geografia. As
viagens de exploração sucederam-se e toda esta
actividade veio a culminar na Conferência de
Berlim de 1884/5, onde se fez a partilha do
continente e se desencadeou uma autêntica
corrida a África.
Sobre forte
pressão dos lobies industriais alemães, Bismark
acabou por lançar os seus olhos sobre o Continente Africano e
em apenas três ou quatro anos, formou-se o império
alemão em África que englobava Angra Pequena,
Camarões, Togo e a África Oriental Alemã.
Portugal cujo ambiente lhe era hostil conseguiu apenas duas vitórias:
-
impediu-se o estabelecimento da Associação
Internacional Africana na margem direita do
Zaire;
- ter sido
retirada do acto geral, a referência inglesa à
internacionalização do Zambeze.
As decisões de
maior peso que afectaram directamente Portugal
foram a declaração sobre a liberdade de culto e a
ocupação efectiva dos territórios. Sabia-se que
só as grandes potências estavam em condições
de fazer isto. Portugal não estava capacitado na altura para
lidar com estas exigências e as outras potências
sabiam-no. Portugal era o país que mais tinha a
perder, percebeu o aviso e encetou numerosas
acções para tornar mais efectiva a sua presença
e salvaguardar os seus interesses.
Os “Ventos da
História” da época outro mito do nosso tempo -,
assim o impunham.
A situação no
Ultramar era confrangedora. E, se no Oriente,
as nossas posições, por modestas, não
despertavam grandes cobiças, já a situação em
África era de molde a suscitar os maiores ataques. Foi isso
que veio a suceder.
E se na Índia se
tinha enraizado uma casta aristocrática baseada
na rede de famílias portuguesas estabelecidas, as
possessões portuguesas de África, foram quase apenas
ponto de passagem das caravelas, ou lugar de expiação
de condenados durante três séculos e meio. As
estruturas sociais eram, assim, muito débeis.
Foi, portanto, um
povo desmoralizado e governos hesitantes e fracos, que
em meados do século XIX, teve que passar a olhar para África,
por um lado para encontrar alternativas à perda
do Brasil; por outro, para fazer face às
potências que nos queriam esbulhar. Mesmo assim
o que se conseguiu fazer e salvaguardar, foi
espantoso.
Com a Conferência
de Berlim germinou em Portugal, o sonho do mapa cor
de rosa, que encontra os seus primórdios no século XVI.
No entanto este
sonho chocava com os interesses britânicos que
pretendiam ligar o Cabo ao Cairo e daí resultou o “ultimatum”
de 1890. O “Direito da Força” tinha-se sobreposto à
força do Direito. Uma reflexão sempre actual.
A seguir à
Conferência de Berlim, o governo português
desencadeou um conflito de acções de âmbito
militar, administrativo, de investigação e de
delimitação de fronteiras e também de melhoria
de infra-estruturas, comunicações e comércio. As
campanhas militares iriam estender-se até aos anos 30 do
século XX.
Mouzinho de Albuquerque – A voz dos Documentos e o exemplo da Acção.
“Enfim não houve forte capitão que não fosse também douto e ciente”
Camões
Joaquim Mouzinho
não se limitou a ser um homem de acção, foi
também um homem de pensamento e um escritor de mérito.
Este último
aspecto não tem sido objecto de estudo e realce.
Mas ao ler-se a sua vasta correspondência, os relatórios
das campanhas e o livro “Moçambique”, que escreveu em
apenas três meses, podem-se facilmente vislumbrar os
seus dotes para a escrita. Três das suas cartas
podem-se considerar de antologia. São eles, a
carta que escreveu ao Presidente do Conselho de
Ministros, José Luciano de Castro, em que
justifica a sua demissão de Comissário Régio de
Moçambique; a missiva que deixou para o Conselheiro Álvaro
da Costa Ferreira, seu substituto no governo da Província e
esse monumento de sabedoria e honradez que
representa a Carta ao Príncipe D. Luís Filipe,
já referida. E através do que escreveu pode-se
vislumbrar muito do que pensava e sentia. Por
eles podemos constatar algumas constantes:
um cecrisolado
amor Pátrio; a lealdade às instituições e
sobretudo ao Rei; a ânsia pelo engrandecimento do reino; um
grande orgulho por ser militar e o que tal representava e
um desprezo ácido pelos políticos e pela baixa
política.
“Todos sabem os apuros financeiros
do país e sabem por igual que, para segurar o poder
por mais 2 ou 3 anos, V. Exª e o gabinete a
que preside não hesitarão em sacrificar o
futuro”.
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Presidente do Conselho de Ministros)
(in carta ao Presidente do Conselho de Ministros)
Estes desencontros entre militares e
civis não são raros na nossa vivência colectiva e
manifestam-se mais, durante a vigência de governos
fracos e de menosprezo pela Instituição
Militar. Vivemos hoje novamente uma épocas
dessas e o que se tem passado não augura nada
de bom. Reparem: sucessivos governos têm asfixiado
as Forças Armadas através da via financeira,
administrativa e em pessoal; o desinvestimento é quase total;
a Assembleia da Republica ignora normalmente estes
assuntos; durante as campanhas eleitorais as
questões de Defesa e Segurança são
sistematicamente excluídas do debate ou das preocupações
de quem passa horas a fio a falar sobre as coisas mais
desnecessárias; O Presidente da Republica em termos
legais é essencialmente uma figura decorativa
sobre a matéria; o poder executivo já escolhe
os chefes - militares que quer, sem intervenção
da Instituição Militar e, a seguir, demite-os e
até o poder judicial está em vias de ser
retirado às Forças Armadas.
Numa palavra o poder político
em vez de intentar estabelecer regras claras de
subordinação, procura impor caminhos ínvios de
submissão. E isto é apenas uma ponta do
iceberg. Ultrapassa por isso a nossa compreensão
como é que uma instituição fundamentalmente para
o Estado e á Nação possa andar de candeias às
avessas com aquele. Esta realidade é, certamente, um exemplo
típico de menoridade cívica!
Mouzinho como Homem
“Em resumo Exmo Senhor, a minha superioridade consiste em ter só uma cara”
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Presidente de Conselho de Ministros)
(in carta ao Presidente de Conselho de Ministros)
Como disse Júlio Dantas,
Mouzinho era grande demais para caber na sociedade portuguesa de
então, que não sabia o que havia de fazer dele.
E “embora a lealdade desse “chevalier sans
peur et sans reproche” estivesse acima de todos
as dúvidas, temiam-no.
Parece poder apontar-se Robert Clive,
Lyautey, Caldas Xavier e Joaquim Durant, Comandante
da Cavalaria de Napoleão, como inspiradores da
sua acção.
Mouzinho não era simpático
para com o comum das pessoas e que não poderiam assim apreciar
a lhaneza do seu trato intimo.
Era um Homem de carácter e um
Homem de bem. Era rijo e possuía uma resistência fora do
comum à fadiga, ao frio, à fome e era um
trabalhador incansável. Era autocrata: “ninguém
manda aqui senão eu enquanto fôr governador
geral”, chegou a afirmar. Tinha um orgulho
desmedido e uma decisão rápida.
“Audácia e Método”,
é um lema que se lhe aplica e que é bem ilustrada pela
sua frase
“Aproveitar na vida e na guerra as ocasiões e caír-lhe em cima como o milhafre sobre a presa”
Chaimite é o exemplo acabado
desta tese. Joaquim Mouzinho era um chefe nato, um líder
carismático, que arrastava os Homens – que o
respeitavam, atrás de si. E é apropriado o que o
Prof. Marcello Caetano, dele disse
“a figura de Mouzinho de Albuquerque como chefe, tão grande como nenhuma outra”
Por outro lado, Mouzinho como pedagogo
está bem ilustrado na celebre carta ao Príncipe D.
Luís Filipe e que este nunca chegou a ler, já
que só foi divulgada em Maio de 1908, já depois
da sua morte.
D. Carlos ao apresentar-lhe o
príncipe, disse: “Aqui o tens, faz dele um homem e lembra-te
de que há-de ser Rei”. E foi pena que o
príncipe, que nutria grande admiração pelo seu
Aio, não a tivesse lido pois representa uma
extraordinária lição de amor pátrio, nobreza
moral, alta política e inteireza de carácter.
Numa palavra de grande pedagogia política moral
e social. Bastava esta carta, mais tarde
apelidada de “entre mortos”, para que D. Carlos tivesse dado por
bem julgada a decisão de tornar Mouzinho preceptor do
seu herdeiro, numa tradição que vinha de D.
Afonso III, que foi o primeiro rei português a
dar a casa a seu filho – o esclarecido D. Dinis
-, e a ter a noção da necessidade de cedo o
preparar para ser Rei. E Mouzinho queria fazer do príncipe
um soldado, dizia: Por isso repito, primeiro que tudo tem
Vossa Alteza que ser um soldado”.
E outros paralelismos se podem fazer
com o presente: a falta de preparação das “elites”
políticas para a governação; a ignorância
de muitos sobre matérias fundamentais e até do próprio
país e da sua gente, por terem sido formados
em universidades estrangeiras, alguns deles por
terem fugido aos seus deveres militares para
com a comunidade; outros por saírem
directamente dos partidos políticos, que em vez de serem
escolas de cidadania, se deixaram transformar em agências de
empregos. Isto, claro, sem referir a evidencia
de que a esmagadora maioria de todos eles nunca
ter passado pelo serviço militar. E temos que
considerar a coragem, qualidade que Mouzinho possuía
em elevado grau. Coragem física, sim, mas, sobretudo, coragem
moral, que o levava a arrostar com a
responsabilidade independentemente das
consequências e a só ter uma cara.
Qualidades raras em todos os tempos,
onde imperam os pseudo chefes que preferem “burro que
os louve, a cavalo que os critique” e as
personalidades que respondem a uma simples
pergunta “que horas são”, qualquer coisa do género
“são as horas que V. Exª Senhor Ministro, quiser que
sejam ...
Joaquim Mouzinho não era
ambicioso, senão outro teria sido o desfecho do drama. O seu
desaparecimento constituíu um alívio para os
medíocres.
Até o suicídio aparenta
ter sido um acto de estoicismo de quem, inconformado, estiolava,
levando uma existência que não gozava e
impotente para evitar os desmandos políticos e
afastar a intriga da sua pessoa.
Dele se pode dizer o que Eça de Queiroz disse sobre Guerra Junqueiro:
“Concluindo que a vida lhe não convinha, saíu dela voluntariamente”
Mouzinho libertou-se assim do “sol negro da melancolia”, no dizer de Roberto de Morais.
Mouzinho sempre teve uma relação
estreita com a morte, queria “morrer bem” e era seu ideal
“morrer a tempo”. E muitas vezes se tentou
interpor entre a morte e os seus homens. Eis
alguns dados elucidativos: após o combate de
Coolela, dizia “chega-se a ter inveja dos mortos”; depois de
Macontene: “Maria José que bela oportunidade perdi hoje de
morrer”; após a prisão do Maniguana, ao
lamentar-se de que a bala que ferira Vieira da
Rocha na perna, não lhe tenha acertado na
cabeça; Falhou-me em Macontene desabafava, com o
seu intimo amigo Bernardo Pindela, referindo-se à morte
desejada, “porque os pretos não sabem atirar, falha-me agora
a guerra do Transval. Só resta o fuzilamento no
Rossio”; e em passagens da nunca por demais
citada carta ao seu príncipe. “Do cativeiro
infamante salvou-o a morte, única libertadora
invencível porque não há algemas que prendam um
morto”; e “... nomeado por Deus, só ele o pode render e
então envia-lhe a morte a chamá-lo ao descanso”.
É ainda Mouzinho que escreve,
ao evocar o Natal que ele passou em Languene na véspera da
partida para a jornada de Chaimite:
“Tivesse
eu a esperança de outro Natal semelhante e
veria correr os anos sem desgosto, olharia
cheio de animo para a vida, sem a considerar apenas como um caminho
lento mas seguro para a morte, consoladora suprema
do que se sofre neste mundo, destruidora
providencial de quantos enfados, desgostos e
desilusões.
E dele também disse o também grande militar, general Gomes da Costa:
“...
desse grande soldado chamado Mouzinho de
Albuquerque que teve a coragem de se meter na sepultura
quando começou a derrocada que conheceu não poder
sustar ...”
E até na morte, quis Mouzinho
demonstrar a sua determinação e perfeccionismo.
Possuindo um revolver regulamentar, usou um outro,
“Bulldog”, de calibre (45) superior e
velocidade inicial mais lenta a fim de ter a
garantia que não falhava (munições que comprou
na rua do Ouro, na casa Reynolds).
Mesmo assim o suicídio
continuou pelos tempos fora, a constituir um enigma para muitos e a
frase do seu intimo amigo Conde de Arnoso, ao
afirmar que tinha morrido de “Mouzinhice”, não
ajudava a esclarecer o mistério.
Três cartas expedidas no dia da
sua morte uma à sua mulher, outra ao Conde de Tarouca –
escrita no Turf Club -, e a terceira à Rainha D.
Amélia, esclareceriam, por certo, o mistério.
Mas a primeira foi para o túmulo com D. Maria
José; a segunda foi queimada e nunca lida, após
a morte do seu destinatário por decisão
testamentária e a última desapareceu, sendo
encontrada, mais tarde na Torre do Tombo. Dizia:
“Minha Senhora
Perdoe-me
Vossa Majestade e não me ache cobarde pelo que
fiz. Mas ser tido em mau conceito, ser
desprezado é mais do que posso. Não creio que o
suicídio nestas circunstancias não seja um
direito. Minha Senhora! Vossa Majestade nada perde senão um
homem que no seu serviço fazia tudo e de tudo era capaz.
Mas não poude ser. Paciência.
Perdoe-me
Vossa Majestade e reze por mim, se acredita
que existe alma. Eu não acredito. Beijo as mãos
de Vossa Majestade cheio como sempre de reconhecimento e
dedicação.
Seu Maior criado
Mouzinho de Albuquerque”.
Mouzinho de Albuquerque”.
Foi no entanto a Rainha D. Amélia
que nutria especial afeição por Mouzinho que melhor
levantou o véu do mistério, no livro que escreveu
antes da sua morte: “Eu, Amélia, Rainha de
Portugal.” Por ele ficamos a saber que era
convicção da soberana que Mouzinho pretendeu
com o seu sacrifício, pôs fim definitivo às
atoardas postas a correr e que atentavam contra
a honra de ambos.
Num balanço rápido pode
afirmar-se que Mouzinho foi sobretudo um português e patriota,
outra característica que nos faz muita falta nos
tempos que correm.
Joaquim Mouzinho – O Militar
“Este reino é obra de soldados”
Mouzinho de Albuquerque
(in, carta a S. Alteza Real o Príncipe D. Luis Filipe de Bragança).
(in, carta a S. Alteza Real o Príncipe D. Luis Filipe de Bragança).
A carreira militar de Mouzinho,
ilumina-se através das seguintes acções
militares. Todos elas vitoriosas:
participando no combate de Coolela e ocupação do Manjacaze;
Comandado pessoalmente:
- o golpe de mão sobre Chaimite e aprisionamento do Gugunhana;
- a pacificação do Maputo;
-
a campanha dos Namarrais onde se travaram os
combates de Mujenga, Naguema, Ibrahimo e
Mucuto-Munu;
- a campanha de
Gaza onde se registaram os combates de Macontene, Mapulanguene
e Calapati;
- as campanhas da Zambezia em 1897 e 98.
Em todas estas acções
que espantaram o mundo, tendo em conta os nossos muito limitados
recursos e as derrotas que outros mais fortes que
nós, tinham sofrido, e cujo espírito é
ilustrado pelo seguinte diálogo, que antecedeu o
combate de Magul:
“guia civil, António:
- meu capitão, 6500 negros, são muitos negros ...”
Paiva Couceiro:
- “mas 275 portugueses também são muitos portugueses
Em todas estas acções
Mouzinho demonstrou as suas extraordinárias qualidades de
chefe e de militar das quais se destacam a sua serenidade
e bravura debaixo de fogo, como é ilustrado
pela sua postura na batalha de Coolela fumando
charuto à direita do Coronel Galhardo, que
tinha à sua esquerda o Tenente Pinheiro, que empunhava a
primeira bandeira que acompanhou as forças expedicionárias
em África e que está hoje à guarda da Sociedade
de Geografia. Mouzinho viu o seu cavalo ser morto
nesta acção.
Além de corajoso, era intrépido
e bravo. Recorde-se a famosa carga de Macontene em que
Mouzinho sai do quadrado à frente dos seus 50
lanceiros, levando apenas um ... stick! Mas
sabia ser temperado; quando em Mujenga intentava
liderar uma perigosa carga, foi detido por Gomes da Costa que lhe
chamou a atenção de que os seus deveres de
comandante o impediam de se arriscar tanto.
Mouzinho apesar de contrariado acatou o
alvitre.
Mouzinho tinha, enfim, um conjunto
alargado de virtudes militares: iniciativa, capacidade
de decisão, sangue frio, estoicismo etc.
comandava pelo exemplo e tinha estofo de
general:
Aliava a visão estratégica
á flexibilidade táctica as quais eram suportadas por
vasta cultura e capacidade intelectual e organizativa. E
punha em tudo a mais estrita ética.
Mouzinho não estava apenas
eivado de espírito militar: ele era o espírito militar,
como bem demonstrado por mais uma passagem da carta,
tantas vezes citada:
“Porque ser soldado não é
arrastar a espada, passar revistas, comandar exercícios,
deslumbrar as multidões com os doirados da farda.
Ser soldado é dedicar-se por completo à causa
pública, trabalhar sempre para os outros”
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança)
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança)
Mouzinho não deixava nada ao
acaso e preparava as suas acções. Antes de ser
mobilizado para Moçambique, estudou as campanhas que outras
potências europeias já tinham realizado em
África e aconselhava-se com quem sabia,
nomeadamente Caldas Xavier. Obtinha informações
sobre o inimigo, o armamento e as tácticas e
tentou preparar o seu esquadrão o melhor possível
para o que ia encontrar e em fazer dele “uma boa tropa”. Quando
embarcou já tinha ideias assentes sobre como se
deveriam processar as operações e disso deu
conta em artigos que escreveu no jornal
Novidades e expôs o que pensava ao próprio
ministro do Ultramar. Mas não o conseguiu fazer ao governador
de Moçambique António Ennes, quando aportou a Lourenço
Marques. A nomeação de Ennes tem uma história
curiosa: Quando os Vátuas cercaram Lourenço
Marques, em 1894, o governo português não sabia
muito bem o que fazer. Ennes estava em Lisboa e
era jornalista, na altura. E como tal zurzia o
governo. D. Carlos chamou-o e disse-lhe: “Se tu dizes tão
mal do governo é porque és capaz de fazer melhor”, ao
que aquele respondeu, afirmativamente, desde que o
governo lhe desse plenos poderes. O rei
convenceu o governo a nomeá-lo Comissário
Régio. António Ennes, que chegou a Moçambique
em Janeiro de 1895 não tinha experiência de
África nem percebia nada de tropa, mas teve a inteligência
e a humildade de ir escolher os melhores oficiais que havia
na Marinha e no Exército. As operações que
vieram a ser planeadas estão assim,
competentemente delineadas (e já tinham
começado, tendo-se ferido o combate de Marracuene, em 2
de Fevereiro) e ajustavam-se ao pensamento de Mouzinho, que
entretanto chegou em Maio. Este, porém, não
gostava, de Ennes, embora nunca deixasse
transparecer isso em público.
Mas com os seus íntimos
tratava-o por “chungo-congolo”, expressão depreciativa que
no dialeto Quitonga, de Inhambane, quer dizer, europeu
grande. Mouzinho era teimoso acreditava no
valor dos militares e não gostava em geral dos
paisanos, especialmente dos políticos, que
acusava de terem duas caras. Sem embargo, acabou derrotado por
eles.
Finalmente, Mouzinho era um inovador.
Sendo o primeiro a utilizar e a desenvolver o
conceito de armas combinado, utilizando o
movimento, o choque e a manobra e adequando a
infantaria, a cavalaria, a artilharia, as metralhadoras, a
engenharia, a intendência e até a marinha, às
necessidades de cada acção; desenvolveu novas tácticas,
como foram por exemplo, as cargas de cavalaria em
mato cerrado (contra tudo o que se ensinava); e
a formação de pequenos grupos de atiradores
que procuravam limpar o terreno à volta do
quadrado. E a campanha de Gaza foi considerada por numerosos
especialistas, a mais bem concebida e levada a cabo, de
todas as que se realizaram no Sul da África.
Este espírito de inovação e gosto pelo risco
são características que muito fazem falta nos
dias que correm ...
Pode-se considerar como epilogo da
vida militar activa, de Mouzinho a ordem à força armada
do exército da África Oriental datada de 30 de
Julho de 1898, após a sua demissão de
Comissário Régio.
Eis um pequeno excerto:
“Srs. Oficiais, oficiais inferiores e mais praças desta guarnição ...
Tenho
a consciência que, enquanto estivestes sob as
minhas ordens, não teve o vosso brio de
soldados portugueses que sofrer a afronta de ver pactuar com
rebeldes, poupar o castigo a traidores, nem recuar perante
os inimigos de El-Rei e da Pátria. Entregando o
comando resta-me a esperança de que continuem a
manter-se intactas nesta província a honra da
nossa bandeira e as gloriosas tradições do
Exército e da Armada portuguesa”
Caros leitores, que grande contraste
encerra esta missiva com muitos outros exemplos que
conhecemos! ...
Mouzinho o administrador
Mouzinho, o herói militar, veio
a revelar-se também como um excelente administrador e,
como nos outros campos, também neste estava à
frente do seu tempo. Esta fama obteve-a como
Comissário Régio em Moçambique, nomeação algo
forçada pelo rei, não sem que tivesse de
ultrapassar alguma oposição surda de políticos
influentes. A sua fama deveu-se não só ao
trabalho desenvolvido mas também ao modo como
decorreu a sua demissão do cargo. Mouzinho, porém tinha
já basta experiência dos assuntos ultramarinos, por ter
exercido o cargo de Secretário Geral, do Governo da
Índia, por três anos, a partir de 1886 e
governador do Distrito de Lourenço Marques
entre 1890 e 1892. E conhecia ainda muito bem o
modo de funcionamento do Ministério da Marinha e Ultramar,
que se veio a revelar o seu pior inimigo.
Mouzinho era grande adepto dos métodos
de administração colonial inglesa e pretendeu impôr
as ideias de descentralização administrativa
em África que apenas vieram a ser adoptados, e
por pouco tempo, após a Republica, ensaiados em
1914 e reforçados em 1920, com a nomeação de
Altos Comissários para Angola e Moçambique.
O seu pensamento é bem,
ilustrado pelo seguinte extracto de uma circular enviada aos
governadores de Distrito, em 29 de Julho de 1896:
“A
grande distância e morosidade e pouca
frequência de comunicações e o pouco
conhecimento e defeituosa compreensão que há na
Europa das necessidades e circunstâncias mais atendíveis
nos países do Ultramar, tornam improfícua, quando não
nociva, a administração directa do governo da
Metrópole nas colónias”.
E aqui está outro ponto
importante que podemos aproveitar para os dias de hoje, a
dificuldade em descentralizar, ou, fazendo-o a
incapacidade que tem sido demonstrada em
fiscalizar a autoridade delegada. E temos numerosos
exemplos destes no Ensino, na Saúde, na Administração
do Estado, etc. Enfim uma questão que percorre
transversalmente a sociedade portuguesa consequência directa
da falta de autoridade que é o problema
número um, com que se debate o país. Cito mais
uma vez Mouzinho:
“... mais ensejo dera
de provar que sabia, custasse o que custasse,
obedecer ao que lhe era ordenado e que também
sabia, doesse a quem doesse, fazer cumprir as
ordens que dava”
Mouzinho anteviu e vislumbrou as reais
intenções inglesas relativamente a Moçambique e
tomou as suas medidas, exactamente o contrário
daquilo que os sucessivos governos de hoje
fazem relativamente à União Europeia e
sobretudo em relação à Espanha. Agem como se
Portugal não tivesse interesses a defender que as
restantes potências são todas nossas amigas e que as
ameaças são coisas do passado. Não cuidam de ter
um sistema de informações minimamente capaz e nem
sequer aprendem com os percalços do passado, em que a
falsa posição do governo francês perante nós,
aquando do conflito da Guiné-Bissau, é um dos
exemplos mais recentes.
Muita da configuração
actual de Moçambique se deve a Mouzinho, que viu o seu sonho
de poder continuar o engrandecimento da província,
coarctado pelo decreto lei de 7 de Julho de
1898, que lhe cerceava a autoridade como
governador. De imediato se demitiu, demissão apenas
aceite depois de algumas tentativas para o demover. A aceitação
do “statuos quo” pelo rei, causou alguma mágoa no
nosso herói, como é revelado na sua
correspondência para o Conde de Arnoso, seu
particular amigo e secretário de D. Carlos.
A carta que escreveu ao Presidente do
Conselho, Luciano de Castro é mais um documento de
grande nobreza de carácter e rara altivez, que
contém verdades como punhos, e constitui um
libelo contra a política dos mediocres.
Nela Mouzinho desmonta todas as
intrigas e conluios de bastidores, daqueles que
conspiravam contra a sua pessoa e o bom governo
de Moçambique. Mouzinho desafronta-se. Mas a
carta é também uma justificação que sentiu
dever dar, ao seu Rei e ao povo português que nele
tinham confiado, por via da sua renúncia ao cargo.
Numa atitude única, todos os
principais colaboradores do Comissário Régio,
demitiram-se com ele. A carta era também na declaração
de guerra aos políticos e José Luciano de Castro ainda
tentou, junto do Rei, levar Mouzinho a
Conselho de Guerra. Mas este escusou-se
alegando que
“não haveria no exército
português oficiais que se prestassem a juízes
de semelhante réu”.
Uma última carta escreveu
Mouzinho antes de abandonar Moçambique. Dirigiu-a ao
Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira, seu sucessor no
governo da província.
É mais um notável
documento em que vem ao de cima a sua integridade e saber. Nele
Mouzinho coloca o novo governador ao corrente da
situação do território ao mesmo tempo que se
permite dar-lhe alguns conselhos fundados na
sua experiência.
E bem se pode dizer que seguiu a ordem de D. João IV ao vice-rei da Índia Conde de Sarzedas:
“Dareis
a posse do dito Governo e as notícias e
informações que julgardes convenientes ao meu
serviço e ao bem e segurança desse Estado”
Da dita carta vamos escolher três
trechos que nos dão uma ideia do que era a vida em
Moçambique naqueles tempos e das preocupações
de Mouzinho.
“Uma das coisas que pior regulada
andava nesta Província ... era a administração
da justiça aos indígenas, para com quem, segundo a lei
vigente, se devia proceder como para os
europeus. Era impossível considerar este
absurdo, pois cada estado de civilização dum
povo corresponde o conjunto de leis por que se deve reger e não
há pior ilusão do que supor que pela simples aplicação
de leis e regulamentos inadequados se passa do
estado de selvajaria para o de civilização
completa”.
Este trecho do final do século
XIX traz-nos duas reflexões apropriadas para o inicio do
século XXI, uma de ordem internacional e outra de
âmbito interno. A primeira sendo a de que os
países do chamado primeiro mundo, continuam a
querer impor a Democracia como ela é entendida
no Ocidente, a numerosos povos da África, Ásia e
América Latina que não estão preparados para
ela, alguns deles vivendo ainda no pós Neolítico ou na
baixa Idade Média. E intenta-se tal desiderato tal como se a
Democracia fosse mézinha para todos os problemas;
quanto à coisa doméstica, semeou-se o país de
leis pouco apropriadas aos usos e às gentes,
eivados de idealismos bacocos, baseados na
“Teoria do Bom Selvagem” e atravessadas por
utopismos fora das realidades originadas nos sobreviventes do Maio de
68, em França e afins. Piorou-se o quadro
desantorizado as polícias e permeabilizando o
acesso à magistratura de uma quantidade de
meninos e meninas que ainda nem sequer sabem o que
é a vida. Isto claro, sem falar da organização
superior da justiça que origina conflitos de competência
constantes, resultando de tudo isto uma barafunda geral, a
desmotivação dos agentes, a paralisia dos
tribunais e o facto de ninguém, aparentemente,
em Portugal se preocupar com o fazer-se justiça
e com a prevenção do crime, e satisfazer-se
apenas com o exercício deletério do Direito.
Mouzinho tinha razão, mas também ninguém lhe ligou.
“Os piores inimigos para a sua
administração nesta Província são os
especuladores que sem sacrifícios de capitais, que não
têm, nem trabalhos, e fadigas em que não são
capazes de se meter, pretendem enriquecer à custa da
Província, que nada lhes deve, alheando-a a
estrangeiros cujos capitais conseguem assim
aliciar para á sombra deles, em jogos de bolsa e
golpes de agiotagem, adquirirem a cobiçada
riqueza”.
A que se pode acrescentar uma outra frase do grande apóstolo da Índia, S. Francisco Xavier:
“No
acabo de admirar los nuevos modus y tiempos,
sobre las comunes y regulares que há inventado
la avaricia de conjugar este verbo – Rapio, Rapies”
Que dizer de tudo isto? Não lhes sugere uma grande similitude com o presente?
Não queria deixar de vos contar
um episódio – também ele revelador do espírito
de Mouzinho -, que se passou com o cônsul alemão em
Lourenço Marques. Este, que nos era hostil, ao
assistir à passagem de uma procissão, enterrou o
chapéu na cabeça.
Tal facto originou o apedrejamento das
janelas do consulado por uma multidão irada.
Perante a queixa do cônsul, o governo português
enviou a Mouzinho instruções para que fosse
apresentar desculpas, o que este depois de
informado de como as coisas se passaram se recusou a
fazê-lo enviando o seguinte telegrama: “Cumprirei as ordens
de V. Exª, mas perante tanta inépcia e cobardia, peço
a minha demissão”. Intervém o Rei e pede a
Mouzinho o sacrifício de cumprir as instruções.
E em atenção ao
soberano, Mouzinho, no dizer de Aires de Ornelas “... cumpriu a
ordem governamental por modo tão insólito que as
desculpas mais foram manifestações de altivez”.
Mas quando dias depois, Mouzinho
embarcava em direcção ao Norte despediu-se
afectuosamente de todo o corpo consular, excepto do cônsul
alemão que deixou de mão estendida.
De facto é preciso ter brio e é preciso ter vergonha.
Um último aspecto que Mouzinho focou ao seu sucessor:
“As
companhias recrutavam-se de indígenas vadios,
agarrados a cordel em Angola e na própria
província. O resultado de tam mau recrutamento era serem os
soldados da guarnição uma quadrilha de bêbados
miseráveis, sem instrução nem disciplina de
espécie alguma, pessimamente armados e equipados e fardados à
europeia!... e é indispensável que o Governo
desta vez seja honesto, cumpra o contrato
doutra forma nunca terá recrutas em termos”
Conclusão
“Verba vólant
scripta mánent exempla traúnt”
Aforismo Latino
| “As palavras voam os escritos permanecem o exemplo arrasta” |
Passou a ser chavão dizer-se
que já tudo foi dito sobre Mouzinho. E se calhar
foi. As pessoas dizem isto para tentar
encontrar algo original para afirmar ou como
desculpa para o não terem feito.
E, no entanto, Mouzinho é uma
personalidade tão rica e a sua vida encerra tão grandes
exemplos e virtudes, e ensinamentos que falar dele,
em diferentes épocas, não é falta de
imaginação nem recordação de passadesimo
serôdio. Não. Trata-se de rejuvenescer
conceitos de sempre – por intemporais -, e de
alimentar a alma com a comida do espírito, que é uma
necessidade intrinsecamente humana. E de apontar o caminho aos
mais novos.
A vida de Mouzinho é uma
bíblia. É uma bíblia de pundonor, de nobreza, de
altos valores políticos, morais e sociais e de bem fazer. Por
isso os seus escritos ficam e o seu exemplo
arrasta.
É mister terminar.
Pretendia fazê-lo, porém,
deixando uma certeza e fazendo um apelo. A certeza é esta:
Mouzinho continuará vivo e lembrado através dos
tempos e dos seus detractores e dos maus
políticos, ninguém falará deles nem fixará o
nome, a não ser para serem apostrofados.
Quanto ao apelo, ele prende-se com o
pagamento de uma divida que a nação portuguesa tem
para com Mouzinho e sua esposa e que é esta:
cumprir o seu desejo de ser sepultado no
Mosteiro da Batalha, onde foi baptizado, desde
que sua mulher pudesse ficar a seu lado.
Creio que os seus familiares não
se iriam opor a semelhante desígnio que devia ser de
todos nós.
E se a
Mouzinho assiste todo o direito de repousar na
Batalha, não menos direito goza sua mulher de o
acompanhar.
D. Maria José Gaivão
Mouzinho de Albuquerque foi esposa amantissima e dedicada que sempre
acompanhou seu marido mesmo nas condições mais
difíceis, chegando a chefiar um hospital de
campanha no Chibuto onde orientou e ajudou nos
cuidados a prestar aos feridos. É pois digna de
ombrear com as várias Filipes de Vilhena e
Marianas de Lencastre, da nossa História. E seria também
um tributo que a Nação prestava a todas as mães
de Portugal que seguravam a família na retaguarda, quando a Diáspora portuguesa espalhou, durante seis
séculos, os seus filhos e maridos pelos quatros
cantos do mundo.
E como epitáfio para o herói,
sugiro a ideia do seu íntimo, Conde de Aruoso que defendeu
para tal, no Parlamento, as palavras de D.
Carlos, quando soube da sua morte:
“De Mouzinho ficará sempre a
memória do homem que prestou ao País e ao seu Rei os
mais relevantes serviços”
Cumulativamente, dever-se-ia
transformar a quinta de Mouzinho, na Batalha num Museu. E
quanto à sua estátua que desde 1940 se
encontrava uma praça de Lourenço Marques, já
ouvi dizer que se deveria transportá-la também,
para a Batalha.
Permito-me discordar, por duas razões
principais: primeiro porque Mouzinho também pertence
à História de Moçambique, território que a ele
muito deve e que, sem a sua acção, não seria o
que é hoje. Por isso é importante que Mouzinho
lá fique, para lembrar ao povo moçambicano,
isso mesmo. Por outro lado, porque é do nosso
interesse. Apaziguados eventuais fricções da
História, importante se torna que ambos os
povos, que em tempos formaram uma mesma nação,
tomem consciência do que os une de molde a perspectivar um
melhor entendimento e cooperação futura. E se se
pretender ter uma estátua de Mouzinho, pois que se faça
outra.
Mouzinho pode ombrear, salvo as
distâncias da canonização, com D. Nuno Álvares
Pereira.
Fica bem a cavalaria ao lado da infantaria. Como devem estar os verdadeiros camaradas de armas.
Para
terminar,e sobre este assunto, bem gostaria de
lançar o grito de Mouzinho, ao quadrado,
quando regressava da carga de cavalaria em Macontene: “Rapazes esta partida está ganha; viva sua Majestade El-Rei!
________________________________
[1]
O cavalo do Coronel Galhardo, Comandante da coluna norte,
chamava-se “Mike” e tinha sido comprado por Aires de
Ornelas, no Transval, por 35 libras. Este
magnífico animal veio a passar para a posse de
Mouzinho que com ele fez toda a campanha dos
Namarrais.
CRONOLOGIA
1855 – Nasceu
Mouzinho de Albuquerque na Quinta da Várzea, freguesia de
S. Maria da Vitória no concelho da Batalha, a 12 de Novembro.
1871 – A 23 de Novembro, com 16 anos,
assenta praça como soldado no Regimento de
Cavalaria 4; frequenta de seguida a Escola
Politécnica e a Escola do Exército, onde concluiu o
curso de cavalaria.
1876 – Promovido a alferes graduado;
continua a estudar em Coimbra, nas faculdades
de Matemática e Filosofia, sendo transferido
para o Regimento de Cavalaria n.º 6
1884 – Promovido a Tenente, em 31 de
Outubro, e no mesmo mês nomeado regente de
estudos no Real Colégio Militar.
1886 – Embarca para a Índia, a fim de
fiscalizar o caminho de ferro e o Porto de
Mormugão, tenso sido graduado em capitão.
Durante cerca de três anos foi Secretário-Geral
do Governo da Índia.
1890
- Nomeado governador do distrito de Lourenço Marques, em 10 de Julho.
- Promovido a capitão em 12 de Setembro.
1892
– Regressa ao Reino em Abril;
- Colocado no Regimento de Cavalaria n.º 8, em
Castelo Branco e depois no Regimento de
Cavalaria n.º 4 onde ficou até Janeiro de 1895.
1895
– 2 de Fevereiro – combate de Marracuene;
- Setembro, combate de Magul (275 portugueses contra 6500 vátuas);
- 7 de Novembro combate de Coolela (300 portugueses contra 6000 vátuas);
- 26 de Dezembro, acção sobre Chaimite;
- 25 de Novembro, - nomeado Comissário Régio;
- 10 de Dezembro, nomeado Governador Militar do Distrito de Gaza.
- Apresenta-se no Regimento de Lanceiros n.º 1,
em Janeiro, a fim de comandar o esquadrão
expedicionário a Moçambique, para onde embarca a
15 de Abril;
- Mouzinho chega em Maio, a Moçambique;- Setembro, combate de Magul (275 portugueses contra 6500 vátuas);
- 7 de Novembro combate de Coolela (300 portugueses contra 6000 vátuas);
- 26 de Dezembro, acção sobre Chaimite;
- 25 de Novembro, - nomeado Comissário Régio;
- 10 de Dezembro, nomeado Governador Militar do Distrito de Gaza.
1896
– Fevereiro e Março, pacificação do Maputo;
- 19 de Outubro, combate de Mujenga;
. Promovido por distinção a Major, em 17 de Março;
- Nomeado governador de Moçambique, por decreto de 25 de Novembro.
- 19 de Outubro, combate de Mujenga;
. Promovido por distinção a Major, em 17 de Março;
- Nomeado governador de Moçambique, por decreto de 25 de Novembro.
1897
– Negoceia com o Transval a primeira convenção sobre o trabalho emigrante;
- Desembarca em Lisboa a 14 de Dezembro onde foi recebido festivamente e, mais tarde, no Porto, a 16 de Janeiro nomeado Ajudante de Campo honorário; convidado para o Conselho de sua Majestade; Aio do Príncipe Real D. Luis Filipe e oficial mor da casa Real, por inerência.
- Desembarca em Lisboa a 14 de Dezembro onde foi recebido festivamente e, mais tarde, no Porto, a 16 de Janeiro nomeado Ajudante de Campo honorário; convidado para o Conselho de sua Majestade; Aio do Príncipe Real D. Luis Filipe e oficial mor da casa Real, por inerência.
1898
– 23 de
Julho escreve uma carta ao presidente do Conselho de
Ministros, conselheiro José Luciano de Castro, solicitando a
exoneração de Comissário Régio em
Moçambique;
- 30 de Julho escreve uma carta ao seu sucessor Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira no governo de Moçambique, expondo a situação da Província;
- Decreto de 7 de Julho, do Ministério da Marinha e Ultramar que restringia as funções dos Comissários Régios;
- Exonerado do Comissário Régio em Moçambique, por decreto de 30 de Julho.
- 30 de Julho escreve uma carta ao seu sucessor Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira no governo de Moçambique, expondo a situação da Província;
- Decreto de 7 de Julho, do Ministério da Marinha e Ultramar que restringia as funções dos Comissários Régios;
- Exonerado do Comissário Régio em Moçambique, por decreto de 30 de Julho.
1901
– Promovido a tenente coronel do estado-maior;
- Escreve a célebre carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança.
- Escreve a célebre carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança.
1902- Faleceu a 8 de Janeiro, com 46 anos.
Fonte: Alameda Digital
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