Persiste a cómoda lenda de imputar à Inquisição, ao terremoto e aos
franceses o atraso cultural e científico do país. Lenda bela,
apaziguadora que não deixa melindres, impoluta para bons portugueses,
aquietadora de fantasmas. Porém, há um véu espesso cobrindo a verdade
histórica, há responsáveis facilmente enumeráveis, há actos deliberados,
legislados até, que qualquer historiador honesto pode desvendar sem
grande dificuldade. O descalabro de Portugal não aconteceu, como alguns
ingenuamente repetem, quando Pombal - figura sinistra - ascendeu ao
poder, como não aconteceu quando a corte rumou ao Brasil perante a
iminência da entrada de Junot. O verdadeiro pesadelo aconteceu depois,
no início da década de 1830, quando todo o país foi submetido aos
"freedom fighters" de então, recrutados no Havre e em Bristol para
libertarem Portugal da "tirania" e do "absolutismo".
Não, Portugal de D. João V não era, como diz a historiografia
oitocentista, um país bisonho, um "reino cadaveroso", "supersticioso" e
fora das grandes correntes do pensamento ocidental do tempo. Para
contrariar tais estórias, leia-se a obra de Henrique Leitão, que vai ano
após ano lapidando as fanadas mentiras que se foram acastelando desde
há mais de século e meio sobre aquele monarca a quem Lisboa deveu dois
observatórios astronómicos e a mais persistente política de mecenato
cultural, tecnológico e científico da nossa história. Portugal era,
ainda no século XVIII e graças à Companhia de Jesus - verdadeira
internacional de conhecimento - um país tocado pelas musas do engenho,
do experimentalismo e da curiosidade.
O atraso, o desinteresse pelo estudo e pela leitura, o desprezo pela
cultura e pela promoção pelo mérito das canseiras do espírito começou
naquele fatídico 1834 com a confiscação por atacado dos bens das Ordens
Religiosas, acompanhado pelo saque, queima e venda de um património
riquíssimo em terras, alfaias, paramentos, aparelhos científicos,
pintura, estatuária, cartografia e bibliotecas existentes em mosteiros e
conventos que cobriam a geografia do país. O insuspeito Ernesto José
Caldas (ver História de um fogo morto (...), Porto, Imprensa Moderna,
1903) afirmava: "livrarias a monte. Tudo roubo. Primeiro acudiam os
que se tinham na conta de autoridades; depois os curiosos; por último a
canalha rara que roubava para vender a peso. As mercearias encheram-se
de missais, de breviários, de sermonários (...)". Nessa hecatombe
perderam-se para sempre incunábulos, códices, arquivos, impressos, mas
perdeu-se, até hoje, a quadrícula de ensino, a selecção dos mais
inteligentes e das elites naturais que permitiam à sociedade portuguesa
nutrir-se dos seus melhores, indiferentemente da sua origem social.
Paulo Barata publicou há anos um importante estudo intitulado Os livros e o Liberalismo
(2003), verdadeira história de terror que deve ser lida, meditada e
divulgada. Barata faz o inventário do colapso de um país e de uma
sociedade, oferecendo copiosa safra de testemunhos arquivísticos -
recitativo abracadabrante - que explica, sem devaneios, sem "teoria" e
sem preocupações literárias o saque e destruição das livrarias
conventuais portuguesas, política de quase terra-queimada e latrocínio
que Portugal viveu ao longo da década de 1830. Tudo o que existia
desapareceu num curto período. As elites locais foram privadas de poder e
substituídas por "funcionários públicos" pagos por Lisboa, os centros
de decisão local decapitados, os viveiros de gente letrada assassinados.
Entre 1833 e finais da década de 1870, ou seja, durante meio século, a
província regrediu, perdeu o contacto com o ensino, esqueceu-se das
letras, das artes, foi culturalmente decapitada. O atraso da província
data dessa época. Em Lisboa, uma nova elite (política, mas não social]
passou doravante a mandar, mas o país deixara de ser, a liberdade
proclamada nas constituições, nas leis e nas tribunas deixou de
corresponder as gentes que, alheando-se, estupidificado-se, remeteram-se
ao cinismo, à acrimónia e à desesperança. Assim tem sido Portugal desde
então, um desfiar de mentiras institucionalizadas, com os portugueses
de costas voltadas, desconfiados e embrutecidos por um crime cometido
contra a nossa terra pelos avós dos nossos bisavós.
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