No final de 2009 visitei
pela sétima vez a capital da Finlândia, e mais uma vez fui reencontrar o
meu amigo Timo Riiho, professor de línguas românicas na Universidade de
Helsínquia e um dos maiores divulgadores da língua e cultura portuguesa
naquele país nórdico. O nosso ponto de encontro foi num pequeno bar na
Liisankatu, o “Harry Bar”, bem perto da universidade. Este local de
aspecto típico, tosco mas acolhedor, algo raro naquela cidade do báltico
onde quase tudo parece igual, é frequentado por pessoas de diferentes
idades e estratos sociais – estudantes, professores, “marinheiros”,
oficiais da marinha, reformados e bêbados, uma mescla de
individualidades e de comportamentos que tornam aquele espaço especial.
Nesse dia quando fui entregar a revista Raia Diplomática ao Timo,
pois ele também pertence ao conselho editorial, estávamos a poucos dias
do final do ano, e a excitação para antecipadamente dar as boas-vindas
ao novo ano era bem audível, e uma crescente algazarra irrompe no
“Harry” ao que o Timo interroga-se – O que se passa? Ao que de imediato
repliquei – Estão um pouco contentes. E o nosso Timo respondeu – Boa
Bruno, muito diplomático!
Não sei também se quem engendrou o acordo ortográfico (AO) também
estava muito “contente” ou estava a fazer uma diplomacia descrente.
Voltando à conversa com o nosso “Vainamöinen” das línguas que para
além de saber falar e ensinar o português, também como é óbvio o
finlandês a sua língua materna, o espanhol, basco, catalão, italiano,
francês, alemão e sueco, perguntou como ia Portugal, eu suspirei e disse
– Na mesma, olhe agora querem implementar o acordo ortográfico.
No nosso diálogo sobre essa temática, ele finalizou-o dizendo o
seguinte – Para mim como linguista é impossível retirar um simples
acento só porque sim! E acrescentou – Vou continuar a escrever conforme
ensinaram-me.
Esta coisa que alguns chamam de acordo ortográfico pode ser analisada em três vertentes – técnica, económica e política.
Em primeiro lugar quero acreditar na boa-fé dos agentes que
promoveram o AO, só assim posso compreender tamanha anormalidade, pois
pensaram que removendo um acento, um “c”, um “p” não estariam a fazer
grande mal pois só representava 1,4% das alterações. Partiu-se do
princípio que a língua portuguesa, não forma um sistema, é uma espécie
de uma coisa descartável que possuí apêndices supérfluos, e que
praticamente tudo pode ser manipulado ao livre arbítrio das vontades e
continuará a funcionar na perfeição. Para exemplificar, é como construir
um edifício não respeitando as normas do projecto vai-se adicionando ou
eliminando elementos ao seu gosto, e com o tempo verificar-se-à que
quando finalizado não terá as características nem a finalidade
previamente concebidas.
Há imensos exemplos sobre esta barbaridade linguística e aconselho
vivamente a quem tem dois dedos de testa a ler e a ouvir as opiniões da
professora Maria do Carmo Vieira que são esclarecedoras quanto ao
imediato e quanto ao futuro da língua.
Apenas quero frisar um exemplo em que sou várias vezes oprimido na
minha visão, nomeadamente quando a televisão pública que tem o desplante
de projectar algumas maldades. Será que “espectador” tem o mesmo
significado que “espetador”?
Interrogo-me se estou a ver um programa televisivo ou se querem
espetar-me algo. É claramente uma incongruência absurda, pois o simples
facto da remoção de uma humilde letra faz destoar por completo o sentido
da palavra. E só mais um exemplo do grotesco a que chegamos. Há semanas
o jornal Expresso, um dos poucos jornais de referência que aderiu a
esta moda anacrónica, muito possivelmente por razões de interesse
económico e das parcerias do grupo Impresa que tem no Brasil, tinha como
título de uma notícia o seguinte “Assage para a máquina”. Depreende-se
que o fundador do Wikileaks vai para uma máquina, um movimento activo,
mas não, o verdadeiro sentido da frase é precisamente o contrário, a
forma passiva, de interrupção da acção. É extraordinário como a simples
omissão de um acento desvirtua a construção de uma frase, e afinal o
Timo Riiho tinha toda a razão.
Em conclusão, do ponto vista técnico o AO não tem ponta que se lhe
pegue, e a longo prazo, a fonética vai-se transformando, pois não é a
mesma coisa ler “directo” e “direto” porque é uma falsa sílaba muda.
Cegos, surdos e mudos foram aqueles que inventaram esta “coisa”.
Bruno Caldeira
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