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A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO

A CAUSA REAL NO DISTRITO DE AVEIRO
Autor: Nuno A. G. Bandeira

Tradutor

quarta-feira, 26 de abril de 2023

OS MUITOS BERÇOS DE PORTUGAL: O NASCIMENTO DE AFONSO HENRIQUES

Hoje, voltamos a um tema sempre muito popular e controverso, em boa medida porque as evidências são escassas: a infância de Afonso Henriques. Como tal, republicamos hoje um texto onde procuramos corrigir alguns erros muito frequentes, mas poucas vezes desmistificados acerca da questão espinhosa do local de nascimento de Afonso Henriques: muito pouco interessante do ponto de vista histórico propriamente dito na medida em que não passa de um pormenor irrelevante, ganha toda uma vida quando várias cidades portuguesas reclamam o título de “Berço de Portugal” baseado em tal factóide. Por questões relacionadas com o tamanho do texto original, mais longo do que o desejável, decidimos autonomizar as questões relacionadas com Egas Moniz (II) de Ribadouro para outro texto, a publicar aqui no futuro.
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Na Idade Média, e por maioria de razão no século XII, pouco importava a data de nascimento ou a infância de um indivíduo, pelo menos para os clérigos que escreviam a esmagadora maioria das fontes coevas – especialmente quando comparada com a data da morte, muito mais importante por ser considerada o começo da vida eterna. Era no contexto da vida pública que os homens apareciam e mereciam ser citados, quer em crónicas ou outros textos literários, quer nos registos das chancelarias. Por isso, as menções a este tipo de dados são raras – o que faz com que as datas de nascimento tenham de ser as últimas estimadas a partir dos dados possíveis.
Verdade seja dita: pouco importa se Afonso Henriques nasceu na data X ou Y e qual o local exacto, na medida em que pouco acrescenta às nossas perspectivas sobre a personagem histórica ou os períodos em que viveu, embora como veremos poderá haver algum interesse em contextualizar esta questão na complicada sucessão do trono imperial de Afonso VI. Contudo, o pormenor acabou por adquirir toda uma importância desproporcional do ponto de vista da construção da memória: Guimarães proclama-se “Berço de Portugal” em boa medida por esse motivo, como uma espécie de símbolo nacional. Apesar de tal memória ser muito mais recente em Viseu, não tardou a converter-se num “facto” fundamental da História local, que se proclama também “Berço de Portugal”, e mesmo outros locais como Coimbra já tiveram autores a defender tal primazia – quase sempre com conflito de interesses associado.
Ora, é ridículo falar-se em “Berço de Portugal” – e ainda mais toda a luta clubística de manjerico e alho-porro entre Guimarães e Viseu - no sentido de que um reino não nascia num local e data concretos, mas antes formava-se num processo de longa duração em que intervinham toda uma série de grupos de interesse sociais de modo a que pudesse adquirir o mínimo de consistência política. Se nem eventos marcantes como a batalha de Ourique ou a emissão da bula “Manifestis probatum est” chegam para marcar uma data de nascimento, por que motivo o nascimento de um infante – nunca predestinado, ao contrário do que durante séculos se escreveu a partir do milagre de Cárquere – seria quase uma certidão de nascimento de uma Nação, formada muito depois do século XII? Ao fim e ao cabo, quando se disseca o problema, estamos mais perante uma questão de símbolos e identidades locais/nacionais, o que faz com que seja relevante no mundo actual abordar o tema de modo a esclarecer o público.
Vejamos então o muito pouco que realmente sabemos sobre o nascimento de Afonso Henriques, cuja solução depende inevitavelmente de saber quando D. Teresa pariu o filho e o local por onde andaria, coisa difícil de discernir com os cartulários de inícios do século XII. Tradicionalmente, com base na “Chronica Gothorum”, assume-se que Afonso I teria nascido em 1109. Graças ao trabalho de Abel Estefânio, que retomou a hipótese de Costa Veiga, hoje em dia sabemos que essa data deverá ser erro do analista: isto porque as fontes coevas mais fiáveis apontam o ano de 1106 como o de nascimento, com destaque para a “Vita Theotonii” (composta em 1162-1163) como fonte mais antiga de que dispomos. A data de 1111 surgiu por erro da datação da morte de S. Teotónio com base num registo errado em boa parte das nossas fontes do dia da semana em que se deu o óbito. Ou, no caso dos “Annales Domni Alfonsi Portugallensium Regis”, talvez por confusão entre Afonso Henriques e Afonso VII quando se lê que Afonso I teria menos de 3 anos na data de falecimento do Conde D. Henrique, o que na verdade se aplicaria ao futuro rei de Leão.
Com o ano esclarecido, talvez possamos ir um pouco mais além. Abel Estefânio pensa que o nascimento terá acontecido depois de Agosto de 1106 pelo facto de o conde D. Henrique atribuir à mulher adjectivos usados em contextos marianos como “dulcíssima” ou “gloriosa” em documentos datados de 1108. Mas seria um pouco estranho as celebrações só terem acontecido mais de um ano depois; mesmo considerando a alta taxa de mortalidade infantil, não deixa de ser um pouco implausível para este contexto cronológico específico. Pode corresponder perfeitamente a outro filho da Infanta Teresa com o Conde Henrique, por exemplo, ou mesmo a outras razões hoje ignoradas. Pela nossa parte, gostaríamos de avançar com outra hipótese pessoal, embora este seja um terreno muito movediço: com a excepção da doação dos castelos de Góis e Bordeiro em 1113, Afonso Henriques começou a confirmar documentos da mãe de forma sistemática apenas em 1120. Como o nascimento terá sido em 1106, ele teria cerca de 14 anos, ou seja, provavelmente a idade da róbora quando começou a participar em actos públicos, como Abel Estefânio admitiu. Ou seja, é possível que o nascimento tivesse ocorrido até 18 de Abril de 1106, pois nesse mesmo dia 14 anos depois vemos Afonso Henriques a confirmar a carta de couto da cidade do Porto, outorgada pela rainha Teresa ao bispo Hugo.
A partir destas considerações, voltemos ao lugar, começando pelas atribuições tradicionais, onde cada comunidade e autor parece ter preferido a sua terra. Comecemos por Guimarães, cuja tradição remonta aos tempos medievais, certamente como lembrança da ligação umbilical da casa real portuguesa com vila. Aparece registada pela primeira vez na “Crónica de Portugal de 1419”, quando Egas Moniz vai a Guimarães pedir aos condes para tomar conta da criança pouco depois de D. Teresa ter dado à luz. Ou seja, na corte joanina, em inícios do século XV, esta ideia estava consolidada. Ao longo dos séculos seguintes, a tradição adensou-se, com novos elementos como baptismo na Igreja de S. Miguel do Castelo- igreja paroquial sagrada apenas em 1239, pelo que tal ideia é logicamente impossível, para além de que Afonso Henriques seria naturalmente baptizado na igreja do mosteiro de Guimarães adjacente ao paço dos condes portucalenses, onde pouco depois (c. 1110) se instalaria a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira.
A datação do nascimento em 1106, como veremos a seguir, impossibilita o nascimento em Guimarães, mas talvez a explicação para esta memória promovida pelas elites de Guimarães se encontre na ligação da ama do infante portucalense – Ausenda Sandines - à colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, cuja memória seria distorcida e ampliada pelas elites de Guimarães em finais da Idade Média para fazer radicar o rei na terra… e não deixa de ser curioso que S. Miguel do Castelo fosse renovada em meados do século XV pelo primeiro duque de Bragança, pelo que seria interessante no futuro investigar até que ponto a casa ducal brigantina poderá ter pegado e moldado estas tradições de modo a promover os seus interesses senhoriais.
Também a tese de Viseu, defendida “indubitavelmente” por A. de Almeida Fernandes, é muito duvidosa, apesar da sua solidez interna no sentido de a rainha Teresa ter estado realmente em Viseu em 1109, pois baseia-se numa premissa problemática: a datação da “Chronica Gothorum”, completamente isolada nas fontes medievais.
Então, vejamos por andaram os condes portucalenses em 1106. Parecem ter seguido ou pelo menos estado próximo da corte leonesa; passaram a maior parte do ano em Sahagún, da qual só saíram para Oviedo, onde estavam a 15 de Março. Depois, voltamos a ter notícias em Junho, quando estavam de volta a Sahagún. Talvez o conde D. Henrique pudesse ter saído em finais de Julho para o Condado Portucalense, mas esta hipótese é improvável pelo facto de pelo menos um dos documentos ser interpolado de acordo com Rui de Azevedo. Para além disso, seria impossível o conde portucalense deslocar-se de Sahagún, onde sabemos que estava em 28 de Julho pela sua confirmação de um documento autêntico, a Seia em 3 ou 4 dias, mesmo a velocidade de galope, para outorgar outro texto na mesma vila leonesa no dia 1 de Agosto! Por isso, Afonso Henriques não terá nascido em território portucalense, mas sim em Leão. A maior dúvida, assumindo a nossa hipótese no relativo à data, é entre Sahagún e Oviedo. Em qual dos sítios teria nascido? Não sabemos: é bem possível que D. Teresa se tivesse deslocado de Sahagún para Oviedo e de volta numa liteira, mesmo com uma gravidez avançada, dada a curta distância entre os 2 povoados (c. 50 km) e qualquer dos povoados no caminho será aceitável. Por enquanto, com a documentação a que temos acesso, não conseguimos avançar muito mais nesta temática...
De qualquer forma, o que interessa aqui assinalar é que por volta de 1106 nascia um filho varão do Conde Henrique e da Infanta Teresa, que terá sido o único a chegar à vida adulta: um muito obscuro irmão chamado Henrique terá morrido até 1110. Deste modo, o “timing” deste nascimento não poderia ser mais conveniente politicamente. Relembremos que Afonso VI teve um único filho varão com Zaida-Isabel, o Infante Sancho, cujos direitos não eram bem aceites pelos Condes Raimundo e Henrique. Os dois genros de Afonso VI uniram-se por volta de 1105, mediados pelo Abade Hugo de Cluny, num Pacto Sucessório pelo qual juravam repartir o reino leonês entre si – ficando Henrique com Toledo ou a Galiza mais um terço do tesouro régio - e excluir o filho varão do imperador hispânico. Como tal, o nascimento de um novo filho com nome de rei/imperador permitia reforçar a posição do casal condal portucalense como eventuais sucessores de Afonso VI contra os familiares rivais, sendo que o conde portucalense nunca desistiria das suas ambições políticas até à sua morte em 1112 - que nunca passariam pelo nascimento de um reino de Portugal independente.

Iluminura com representação do Conde Henrique da Borgonha, pai de Afonso Henriques, proveniente do Tumbo A da Catedral de Santiago de Compostela.

A rainha Teresa, mãe de Afonso Henriques, representada no Tumbo do Mosteiro de Toxos Outos, na Galiza (fol. 6v).

Mapa com o itinerário simplificado dos condes portucalenses entre Julho de 1103 e Julho de 1109. Como se pode ver, os condes portucalenses preferiram nestes anos finais do reinado de Afonso VI, pelo menos até à famosa "ira régia" do imperador contra o Conde Henrique, a corte leonesa e as oportunidades que lhe davam de controlar os acontecimentos. Ou seja, o Conde Henrique não era um mero guerreiro, mas também um político importante nestes anos no conjunto peninsular. Nota ainda para as raras deslocações aos territórios que governavam à distância.
Retirado do artigo de 2014 de Abel Estefânio citado na bibliografia.

Igreja de São Miguel do Castelo, em Guimarães. Na mitologia afonsina, teria sido aqui o baptismo, o que não faz sentido: esta é uma pobre igreja paroquial sagrada em 1239.
Isto, contudo, não impede a Câmara Municipal de Guimarães ou outros organismos públicos de mentir deliberadamente aos portugueses. No caso da Câmara, a pouca vergonha chega à organização de recriações do baptismo na Feira Afonsina.
Fotografia de nossa autoria.

Interior da igreja de São Miguel do Castelo, em Guimarães.

Pia baptismal do período moderno, identificado desde o século XVII com a pia baptismal de Afonso Henriques, sem qualquer fundamento.

Placa explicativa da Igreja de São Miguel do Castelo, paga por dinheiros públicos e europeus (!). Mais uma vez, os poderes públicos espalham o mito e confundem a população incauta.

Igreja da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. Antes de 1107, este espaço albergava o famoso mosteiro fundado por Mumadona Dias. O paço dos condes portucalenses, dos quais não restam vestígios, seria a Norte da actual colegiada.

A Torre Velha da Catedral de São Salvador de Oviedo (século IX). Junto com a Câmara Santa e umas poucas divisões do paço episcopal, é do muito pouco que resta da catedral que viu D. Teresa em 1106, pois foi reconstruída mais tarde no estilo gótico.

Restos do Mosteiro de Sahagún, um mosteiro fundado com o apoio de e patrocinado pelo imperador Afonso VI, onde a corte leonesa passava boa parte do seu tempo e Afonso Henriques pode ter nascido.


Itinerário dos condes portucalenses em 1106, quando Afonso Henriques nasceu.
Retirado do artigo de 2014 de Abel Estefânio citado na bibliografia.


BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA:
Amaral, Luís Carlos; Barroca, Mário Jorge (2012). “A Condessa-rainha Teresa”. Círculo de Leitores, págs. 67 e 158-163.
Azevedo, Rui de (1958-1962). “Documentos Medievais Portugueses, Documentos Régios”, vol. I, “Documentos dos condes portucalenses e de D. Afonso Henriques: A-D. 1095-1185. Academia Portuguesa de História, Lisboa, 2 tomos, Documento 53, págs. 66-67.
Calado, Adelino de Almeida (1998). “Crónica de Portugal de 1419. Edição Crítica com Introdução e Notas de Adelino de Almeida Calado”. Universidade de Aveiro, Capítulos 3-6 e 8-11, págs. 5-11 e 12-14.
Estefânio, Abel (2010). “A data de nascimento de Afonso I”. “Medievalista” [Online], 8 | 2010, posto online no dia 01 dezembro 2010, consultado no dia 12 maio 2019. URL: http://journals.openedition.org/medievalista/465 ; DOI : 10.4000/medievalista.465.
Estefânio, Abel (2014). “De novo a data e o local de nascimento de Afonso I”. “Medievalista” [Online], 19 | 2016, posto online no dia 01 junho 2016, consultado no dia 11 maio 2019. URL: http://journals.openedition.org/medievalista/996 ; DOI : 10.4000/medievalista.996.
Gonçalves, Iria (1988). “Viajar na Idade Média: através da Península em meados do século XIV”. In “Imagens do Mundo Medieval”. Livros Horizonte, Lisboa, págs. 157-176.
Marques, Maria Alegria (2009). “A Corte dos primeiros reis de Portugal. Afonso Henriques, Sancho I, Afonso II”. Editorial Trea, Gijón, págs. 206-209.
Mattoso, José (2007). “D. Afonso Henriques”. Temas e Debates, 2º edição, págs. 35-38 e 72.
Nascimento, Augusto Aires do (1998). “Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra. Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de Martinho de Soure. Edição crítica de Augusto Aires Nascimento”. Edições Colibri, págs. 60-61 e 200-201.
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~ José Luís Pinto Fernandes


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